Entrevista com Luana Malheiro

Luana Silva Bastos Malheiro é antropóloga, mestra em Antropologia pela UFBA e atualmente  doutoranda em Ciências Sociais pela UFBA em doutorado sanduiche na Facultad de Ciências Humanas da Universidad de la Republica del Uruguay (UDELAR). É sócia-fundadora do Coletivo Balance de Redução de Danos e membra-fundadora da Rede LatinoAmericana e caribenha de Pessoas que Usam Drogas (LANPUD) e da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA). Compõe a Secretaria Executiva da Plataforma Brasileira de Políticas Sobre Drogas (PBPD). Conselheira da Iniciativa Negra Por uma Nova Políticas de Drogas.

Realiza pesquisas no campo do uso de crack, acesso a políticas públicas, proibicionismo, redução de danos, gênero e feminismo. Autora do livro “Tornar-se mulher usuária de crack: cultura e política sobre drogas” da Editora Telha.

Demais siglas:

CETAD – Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas 

UFBA – Universidade Federal da Bahia

RD – Redução de Danos

PCC – Primeiro Comando da Capital

HIV – Vírus da Imunodeficiência Humana

RENFA – Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas

Quimera: Este número da nossa revista tem o tema Cenas e um dos motivos de nosso convite para você participar dessa edição é a variedade de cenas em que atua ou atuou. Queria então iniciar nossa conversa perguntando como foi sua aproximação com o tema das drogas, que já é presente na sua graduação em Ciências Sociais com uma pesquisa em Ayahuasca.

LM: Eu entro nesse debate a partir de meu contato com a maconha, que fez com que me interessasse a estudar a questão das drogas pelas Ciências Sociais. 

Porém minha família que é do interior da Bahia descobriu sobre meu uso e me internou em uma clínica. Fiz diários de campo da internação, das conversas com psiquiatras e outros profissionais, inclusive em meu livro faço uma releitura deste momento. E também foi deste lugar de paciente que ocorreu meu encontro com esta pauta, o que começou a despertar em mim várias questões para as quais fui buscar respostas nas Ciências Sociais. 

Nesse processo eu encontro com Edward MacRae1, que ministrava uma disciplina de Socioantropologia dos usos de droga na São Lázaro2. Então conheci a Ayahuasca e a RD, a partir do trabalho de Edward com estes temas. Inclusive ele tem um texto antigo relatando como a experiência do ritual era uma experiência de redução de danos pois organizava o consumo do chá. 

Participei então de uma pesquisa com ele que visava entender os novos usos de Ayahuasca, cheguei a frequentar alguns rituais e fazer trabalho de campo neste contexto também. 

Quimera: Em relação ao trabalho de campo, tem um texto seu que fala das dificuldades relacionadas a uma etnografia urbana. Como você observa as diferenças de entrada em campos variados, de acesso e barreiras para conseguir realizar o trabalho etnográfico nestes diferentes contextos: de uso ritualístico, de cenas de uso urbano, de festas?

LM: Primeiro, sobre a etnografia, acho importante dizer da importância de olhar para este método de maneira crítica. No momento de colonização, ela foi utilizada também como ferramenta de dominação. Era o antropólogo europeu que vinha descrever o comportamento de povos bárbaros e atrasados. Brinco que toda vez que chega um antropólogo nessa ideia de que ele não participa, com seu caderninho, sem se colocar, sem dizer de onde veio ou para onde vai, ele incorpora esse etnógrafo colonizador europeu que está naquele território para sugar conhecimento e ir embora. Lutamos contra esse modelo de etnografia.

Mas sabemos que ela existe, que há trabalhos em diversas cenas de uso que não vão estabelecer uma espécie de troca nessa relação, que é assimétrica quando estamos em um campo com pessoas em situação de rua e o pesquisador é alguém de classe média, universitária. Então é importante se atentar para quais são os tipos de acordo que serão feitos a partir de cada campo de investigação.  

Essa é uma premissa básica, deixar os acordos nítidos. Primeiro, a etnografia parte destes acordos, você pede autorização, diz que está fazendo uma pesquisa, se apresenta. Existem casos em que o pesquisador tenta se vestir igual e se misturar com a população que está estudando e descrever essa experiência. Eu não acredito nesse tipo de trabalho pois parte de uma premissa que “eu posso sentir o que o outro sente”, e nós só sentimos e entendemos a realidade a partir de nosso lugar de fala, de nosso lugar geográfico, de nosso lugar cultural. 

“Então quando enxergo uma cena, o faço deste lugar de mulher nordestina com a minha história. Então quando uma escrita começa, uma etnografia, é importante dizer primeiro quem é você, de onde vêm, o que está fazendo ali”

Então quando enxergo uma cena, o faço deste lugar de mulher nordestina com a minha história. Então quando uma escrita começa, uma etnografia, é importante dizer primeiro quem é você, de onde vêm, o que está fazendo ali. E tentar fazer com que esse diálogo seja traduzível de alguma forma.

Por isso que cada contexto vai exigir um tipo de linguagem, um tipo de acordo. Quando fiz trabalho de campo em cena de uso de crack, a minha presença afastava a polícia. Pois a existência de uma pessoa universitária, antropóloga, que assumia essa posição criava uma outra situação etnográfica. É preciso estabelecer essa relação de reciprocidade e reconhecimento. Reconhecimento de qual é o seu lugar, de qual é o lugar do outro e de qual é o seu objetivo naquele campo. Não vou para a cena descrever uma situação de violação de direitos e apenas desenvolver na minha dissertação. Têm-se um compromisso político com o que se escuta e com a produção de conhecimento feita. 

Pois à medida que estamos registrando saberes que existem e que são válidos, é preciso estabelecer um sistema de troca com a comunidade e território. Então tenho elaborado a ideia de que na etnografia temos de trabalhar com o processo de co-teorização. Construir com o outro, trazendo conceitos internos à cena de uso e, a partir do meu lugar, poder estabelecer relações de troca para que possamos deixar alguma coisa, especialmente em relação às pessoas entrevistadas.

Hoje estou com um projeto no Uruguai com mulheres usuárias de pasta base.  Fez parte dele estudar quais eram as necessidades encontradas neste campo e elaborar um projeto e conseguir a sua aprovação; este segundo tempo faz parte do processo etnográfico, para deixar uma contribuição. Estamos tentando, por exemplo, contratar algumas dessas mulheres para serem investigadoras nativas e serem remuneradas.  Cada contexto pede que seja elaborado um acordo, adotando essa perspectiva ética de que o trabalho de campo implica uma troca. 

Quimera: A criação do projeto Balance, um dos pioneiros da RD em contexto de festa, foi nessa direção de troca, de criação coletiva?  Como foi sua fundação?

LM: O Balance foi o primeiro coletivo do Brasil, inspirado no Energy Control da Espanha. Quando estava começando a minha trajetória, Marcelo Andrade que fazia seu doutorado no tema de estratégias de RD em festas de música eletrônica me entrevistou, pois trabalhava nestas festas. Ajudei-o a entrar neste campo e como parte da tese dele é criado o Balance, do qual fui convidada a participar. 

Para montar o projeto foram convidados não só frequentadores, mas produtores e trabalhadores destas festas.  Com a proposta construída, começamos a trabalhar primeiro em festas locais depois no Universo Paralello3, já com uma estrutura mais sólida com equipe de saúde, psicólogos, psiquiatras, para fazer uma atenção a crise que pudesse diminuir abordagens violentas que por vezes aconteciam nos postos médicos. Introduzimos uma outra forma de lidar com a crise que é a partir da conversa, da troca, da ideia da RD de que o saber do usuário importa, que a partir da experiência de quem já teve uma bad trip pode-se construir ferramentas e meios de cuidado qualificados para fazer esse acompanhamento. Fizemos inclusive formações com Marcus Matraga4 sobre AT. 

Então desenvolvemos essa estrutura no Universo Paralelo, com informações sobre RD, também incluindo de maneira pioneira as testagens de substância, com apoio fundamental do CETAD que garantiu nossa segurança, visto que havia o medo de sermos presos, por conta dessa ação de cuidado de crise.

Convidamos então outras organizações de RD para construir a ação no Universo Paralello, como o É de Lei de São Paulo, e então foi sendo construído um espaço de encontro e disseminação do trabalho de RD em contextos festivos. 

E o ponto de partida foi uma pesquisa etnográfica! 

Quimera: Algo que compõe e experiência etnográfica é a vivência que o Roberto Damatta vai chamar de Anthropological Blues. Como é sua experiência frente a isso?

LM: O Anthropological blues é esse sentimento de estar imerso em uma outra cultura, mas essa cultura não te pertence e você tenta criar ferramentas para lidar com processos de solidão. É esse momento em que você está com sua vida pessoal completamente imersa em um trabalho científico e aparece uma sensação de desamparo, de se desfazer dos seus laços, estar imerso no campo estabelecendo relações a partir do termo da outra cultura. Isso nos forma, aprendemos no corpo. Desde as formas de falar de se portar, como também em como as pessoas entendem, por exemplo o uso de drogas, o uso problemático, a saúde mental. Há um processo de desapego de alguns conceitos para reaprender outros.

O Anthropological blues é esse sentimento de estar imerso em uma outra cultura, mas essa cultura não te pertence e você tenta criar ferramentas para lidar com processos de solidão. (…) Isso nos forma, aprendemos no corpo. (…) Há um processo de desapego de alguns conceitos para reaprender outros.

Uma vez imersa em campo com este sentimento de solidão, a elaboração pode ser feita pelo processo de escrita. A escrita etnográfica é a forma de materializar essas relações, de entender que essa produção da ciência antropológica parte do olhar de uma pessoa que sente, reflete, que está posicionada em um determinado lugar. 

Este olhar posicionado é importante pois se contrapõe ao olhar panorâmico, que Donna Haraway5 fala como o olho de Deus, de um olhar hegemônico de uma ciência que fala, mas que não é em primeira pessoa. Existe essa narrativa de uma ciência masculina, que se colocava como sujeito universal, logo como sujeito que não tinha cultura. O que faço é uma antropologia situada, que se organiza dentro da identidade de cada um. Não é um “sujeito neutro”, um “Deus” que está pensando, mas alguém que pensa, sente e produz ciência em seu contexto específico, estabelecendo uma relação de alteridade com as outras comunidades sempre se posicionando. 

Quimera: Dentro deste tema de onde se vêm, de quem somos, há uma discussão que sempre aparece na ABRAMD que é a respeito das diferenças regionais. Queria saber das suas reflexões a respeito disso, das peculiaridades do Nordeste, diferenças nas trocas com os colegas do Sudeste, em relação ao proibicionismo, aos contextos das diferentes cenas.

LM:  Quando falamos de política de drogas, tivemos um polo produtor de conhecimento concentrado no eixo do Sudeste, inclusive da antropologia urbana, com uma maior visibilidade destes trabalhos em detrimento dos trabalhos de outras regiões. Por conta disso, muitas vezes São Paulo é vista como a totalidade do Brasil.

Aqui no Uruguai isso fica claro. Um exemplo é quando se repete que no Brasil tem Cracolândia. Em São Paulo tem Cracolândia. No Rio não tem Cracolândia, na Bahia não tem Cracolândia. E quem me ensinou isso foi um usuário em um trabalho de campo, para quem perguntei como ele nomeava esse território, se ele chamava de Cracolândia. Ele respondeu: “Cracolândia é lá em São Paulo. Lá que a hora que você for tem crack, a boca não fecha, é o melhor crack, é tipo uma rave… Aqui não tem isso…”

Vários autores falam de cenas de uso a céu aberto nomeando de Cracolândia, mas se você vai à cena de uso da Luz para qual se dá esse nome e vai para a cena de uso do Pelourinho, é completamente diferente. São duas cenas de uso urbano, mas são diferentes e precisamos explicitar isto. Se não tomamos São Paulo como o Brasil inteiro e isto não produz um diálogo saudável nem para a Ciência. 

 Tem muita teoria sendo produzida no Norte e no Nordeste que precisa ser visibilizada. Pois tem diferenças regionais marcantes, em todas as cenas de uso, questões de mercado… O jeito que o PCC é em São Paulo é diferente do jeito que ele é em Salvador, a linguagem tem adaptações locais que transformam o fenômeno. Isso que é interessante ao estudar o Brasil, perceber essas diferenças regionais que permitem entender a complexidade que temos no nosso país. 

Quimera: A entrada da RD na Bahia também foi como em São Paulo, no contexto da epidemia de HIV?

LM: Sim, na Bahia foi possível implementar a política de troca de seringas a partir da tese de doutorado de Tarcísio Matos de Andrade6, que estava pesquisando a relação do HIV com drogas injetáveis e fortaleceu o argumento do trabalho de campo nas cenas de uso e inovou colocando a universidade nesse front da RD. 

Essa história é muito importante pois formou diversas trabalhadoras, como eu. É importante esse percurso que a Bahia faz, pois dá acesso a RD pela universidade. Eu construí minha atuação em antropologia a partir de uma atividade curricular de campo em cenas de uso, posteriormente sendo contratada por uma bolsa de pesquisa para fazer RD nesses locais. 

Essa formação da RD na Bahia pelo CETAD, que fazia parte da universidade, fortaleceu muito sua implementação de maneira sólida e consistente. O CETAD já tinha ações na rua desde 1995 e depois apareceu a Aliança de RD, construindo uma história de mais de 20 anos dessas atividades que marcam o território. As pessoas nas cenas de uso sabem o que é RD, e temos noção que isso ocorre porque elas foram ensinadas a partir dessa vivência que ocorreu nos bairros populares de forma importante.

Quimera: Você tem trabalhado com a ideia do uso de crack como vida, a partir das trajetórias de mulheres entrevistadas…

LM: Tenho essa questão desde minha dissertação quando fui ao campo para pesquisar a relação do trabalhador de saúde com pessoas que usam drogas, a tessitura desse cuidado. Mas lá as mulheres que queriam falar, queriam conversar sobre a antropologia, a pesquisa, o que eu queria fazer… E começamos a elaborar e nos perguntar sobre o uso problemático. Entendi que essas mulheres queriam falar sobre seu uso de crack e eu buscava ferramentas teóricas para fazer essa leitura. 

Fiz então um processo para compreender como se constituía essa trajetória do consumo de crack entre as mulheres. Como foi esse encontro com a droga, como podemos contar essa história. Iniciamos com entrevistas e como muitas dessas mulheres não se lembravam de seu percurso, começamos a fazer o exercício de montar suas histórias. Tinha um roteiro que havia criado, mas também pensava com essas mulheres quais eram as questões que elas achavam importantes para serem incluídas também.  

“Entrevistei até agora 18 pessoas na minha tese e todas foram abusadas na infância. Isso me impressiona muito, essa ligação da rua com a perspectiva de fuga dessa família abusadora. A mulher não vai para a rua em busca de droga mas para escapar dessas violências. E na tentativa de sobrevivência da rua, o crack chega.”

E as questões que apareciam como mais importantes eram: como se disparava o uso problemático, compulsivo de drogas; e o que levava essas mulheres para a rua. E apareceram muitos casos de abuso na infância, fugindo do seio de suas famílias para construir sua vida nas ruas. Entrevistei até agora 18 pessoas na minha tese e todas foram abusadas na infância. Isso me impressiona muito, essa ligação da rua com a perspectiva de fuga dessa família abusadora. A mulher não vai para a rua em busca de droga mas para escapar dessas violências. E na tentativa de sobrevivência da rua, o crack chega.

Descrevi algumas trajetórias de violências que as mulheres passaram: sexual, de agentes de segurança pública, com teores de ordem racial e de humilhação… Não é só um estupro, mas um estupro de um agente de Estado com uma violência psicológica em meio ao processo. Toda uma composição gera um adoecimento naquela mulher.

Uma das entrevistadas relatava que o único momento em que não ouvia a voz de seu violador era sob o efeito do crack. Tem sido impressionante escutar que o começo de um uso mais abusivo de crack ou de pasta base é na tentativa de busca de saúde mental, de busca de vida, de se manter viva.

“Eu de cara [limpa], não consigo lidar com a memória de minha violação. Eu de cara [limpa], não consigo lidar com a memória de ter ido para a maternidade e o conselho tutelar ter retirado meu filho sem a minha autorização. Eu não consigo lidar com esse vazio, eu me preencho com o crack”

Quando se ouve isso, entende-se que há um processo de automedicação a partir do crack. Pois é ele que é acessível para aquela comunidade. Nesse sentido que o crack foi para muitas mulheres um caminho de vida, de encontrar ferramentas que as sustentassem vivas em meio a uma situação de rua, de fome, de violência, de violação de direitos muito grave. Nesse sentido não tem como analisarmos o crack e seus consumos problemáticos sem fazer uma ligação com todas essas questões, essas estruturas sociais, essas violências que atravessam o corpo das mulheres, das mulheres negras, situações de racismo, de violência de gênero na família.

Podemos, assim, dizer que a violência racial e de gênero são as portas de entrada para o consumo abusivo de crack. E essa trajetória ao acesso a direitos, ao acesso à casa, ao tratamento, ao cuidado, essa trajetória possibilita uma regulação do uso. E uma nova relação com a droga, que é a relação do prazer com a droga. Ao corpo feminino, ao contrário do masculino, é negado o prazer. Vejo muito dessa relação de não acessar o uso mais prazeroso de drogas. Crack não tem só a ver com dor, mas tem a ver com prazer.

Mas quando surge essa reflexão? Vou trazer um caso específico de uma mulher que sai de uma relação abusiva com um companheiro que a espancava, principalmente sob efeito da droga, afinal o patriarcado também age nesse momento da onda. Quando comecei a etnografia eles já tinham se separado, mas quando acompanhava os consumos dela na rua, ela ouvia a voz desse homem, sentia o tapa. Ela estava gestante naquele momento, já havia perdido a guarda de 4 filhos. A partir desse trabalho ela consegue ir para o abrigamento com a filha e, posteriormente, um auxílio aluguel. 

Ela consegue um lugar para ficar, faz amizade na comunidade e descobre onde é a boca. Mas, agora, tinha o filho dela, ela havia conseguido maternar e não tinha mais o vazio de ter perdido seus filhos. Também não estava mais em uma relação abusiva, não estava ouvindo as vozes ou sentindo o corpo sendo batido. O que fazia: comprava 2 pedras de crack e duas cervejas. Colocava a criança em um quarto e instalava um ventilador para nenhuma fumaça chegar nela. Fumava a primeira pedra e ficava observando o filho, com uma preocupação gostosa de ver que seu filho está dormindo, que estava tudo certo. E com a segunda pedra ela dançava. Ela descobriu que podia dançar usando crack, ouvindo música. E que era gostoso, que era divertido, acabava a noite assim, feliz da vida!

Ela foi uma usuária bem sucedida, mas veja o percurso que foi preciso para que uma mulher construísse uma vinculação saudável, minimamente saudável, com a substância psicoativa.

Então, quando estudamos o tema do uso problemático de drogas e mulheres, sobretudo quando se tornam mães, precisamos entender que há uma expectativa social que é forte, uma demanda para seguir um padrão de gênero que é muito forte, e que isso gera subjetivação na mulher. Gera produção de conteúdo, gera suas questões e seus bloqueios. 

Cada sujeito tem sua trajetória e cultura com sua relação com a droga e com seu uso problemático. Mas não dá para analisar o consumo problemático apenas pela relação sujeito-substância. Sem pensar nessa estrutura social que permite uma trajetória de dor. Precisamos pensar como se constroem outras mais prazerosas e mais tranquilas para essas mulheres. Digo em termos de modelos de tratamento e políticas públicas que possam alcançar as especificidades do que é ser mulher, ser mãe. Os serviços têm de ser construídos para que caiba uma mãe, e uma mãe é uma comunidade inteira. Tem que caber a criança e as redes nesse cuidado. 

Quimera: A partir dessa questão de gênero e do que você mencionou do “processo dentro do processo”, queria que você falasse da construção da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA), da fundação e de suas pautas.

LM: A RENFA também nasce desse lugar de luta, pela união de mulheres que estavam atravessadas pelas questões das políticas de drogas, nas perspectivas pessoais de suas trajetórias de vida, mas que não estavam conseguindo encontrar um lugar nos outros espaços de militância antiproibicionista.

Sempre havia uma treta machista ou questões que nos incomodavam. Lembro que tínhamos um grupo de email das mulheres da marcha da maconha, em que conversávamos sobre essas questões da luta das mulheres no antiproibicionismo. 

Realizou-se um primeiro encontro em 2014 no Rio de Janeiro, e depois no encontro nacional de coletivos antiproibicionistas fizemos uma plenária de fundação da RENFA com a missão de formar núcleos locais e territoriais da rede. 

Volto então para a Bahia, com essa tarefa, e colocamos nossas prioridades na pauta, da luta antiracista, da questão do encarceramento das mulheres, das mulheres com trajetória de rua. Estava no meio da minha pesquisa de mestrado, fazendo entrevistas em um abrigo municipal. Em uma roda, fiz uma experiência de cruzamento de trajetórias, em que cada uma falava da sua e íamos traçando as semelhanças, onde tinham a mesma questão. 

Estávamos discutindo a chegada da mulher mais jovem na rua, situação com grande risco de violência, que era visto como um teste para ver se conseguiria sobreviver na rua. E nesse contexto surgiu a ideia de formar um grupo para ensinar as companheiras o que havia sido aprendido a duras penas, para evitar que outras mulheres sofressem das mesmas penas. Porém o abrigo não era um local adequado e seguro para essas discussões e mudamos para a sede do movimento pop rua.

“Trocávamos bastante sobre nossas experiências e com o suporte dela criamos uma organização que pudesse juntar o feminismo antiproibicionista com o feminismo achado nas ruas.”

Na época, havia uma roda de conversa se formando coordenada por Maria Lucia Pereira7 para discutir a rede de serviços. Mas ela estava com dificuldades de trazer as mulheres para a militância. Trocávamos bastante sobre nossas experiências e com o suporte dela criamos uma organização que pudesse juntar o feminismo antiproibicionista com o feminismo achado nas ruas. E então montamos esses encontros, exclusivos para mulheres e com temas específicos. 

Escrevemos então um projeto, Mulheres e drogas: nada sobre nós sem a nossa participação, para fazer formação política com as nossas mulheres. Conseguimos financiamento do SESI, que possibilitou que remunerássemos 4 companheiras que eram minhas interlocutoras, parceiras de pesquisa, dobrando a quantia que elas ganhavam no tráfico e partir disso fomos construindo a RENFA.  Fizemos essa primeira formação, um primeiro encontro nacional em Recife, em que conseguimos levar 14 mulheres e 7 crianças em um ônibus da UFBA, em sua maioria usuárias de crack. Foi importante pois conseguimos construir um coletivo composto por essa diversidade de saberes, respeitando o valor de trabalhar com as sobreviventes da guerra às drogas. Essas mulheres com trajetória de vida nas ruas, que sobreviveram a esse sistema proibicionista e tem agora esse espaço para contar. 

A partir dessas reuniões e da RENFA, pudemos trazer as questões levantadas nessas histórias para a luta coletiva: direito à cidade, direito ao corpo, violência institucional, direito sexuais e reprodutivos, direitos à maternidade, violação por agentes públicos, encarceramento. 

Essa rede permitiu uma articulação com pesquisa e criar esse movimento de luta. Acredito que é um compromisso político que temos, de construir processos e metodologias em conjunto, de construir pela universidade esses processos de troca.  


1– Edward MacRae é doutor em Antropologia Social, professor associado da UFBA e pesquisador do CETAD
2– São Lazaro é como é conhecida a faculdade de filosofia e ciências humanas da UFBA
3–  Para mais informações sobre este trabalho:  GUIMARÃES, A. M., MACRAE, E., & ALVES, W. C. (2012). Coletivo Balance de Redução de Riscos e Danos: ações globais em festas e festivais de música eletrônica no Brasil (2006-2010). As drogas na contemporaneidade: perspectivas clínicas e culturais. Salvador: EDUFBA: CETAD.
4– Marcus Vinicius de Oliveira Silva, conhecido como Marcus Matraga, era psicólogo, professor da UFBA, militante da reforma psiquiátrica e dos direitos humanos, assassinado em 2016 enquanto atuava com populações ribeirinhas pela preservação ambiental da área.
5– Donna Haraway é professora emérita na Universidade da Califórnia, filósofa conhecida por suas contribuições para o feminismo e estudos pós-coloniais
6– Tarcísio Matos de Andrade é Professor Titular do Departamento de Saúde da Família da UFBA
7– Maria Lucia Pereira era líder do Movimento de População de Rua da Bahia (MNPR-BA), foi coordenadora do Movimento Nacional da População de Rua.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*