O barato no divã encontrado-criado no espaço transicional: cenas trans(in)disciplinares

Por Bira Dantas

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Por Diva Reale

A fé nos homens é um dado a priori no diálogo. Fé no seu poder de fazer e refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens

Paulo Freire
A título de preâmbulo, cenas entre clínica e educação

Este texto trará a público cenas que marcaram o trajeto da autora em múltiplos contextos formativos [estágios e aulas] e de atenção à saúde mental de pessoas com problemas associados ao uso de álcool e outras drogas. Adotamos o termo cenas, em sintonia com o eixo temático deste número da Revista. Tendo em mente o objeto central deste artigo, o sentido que mais nos agrada para as cenas está contido no termo causo; ele nos agrada ainda mais pelo colorido informal e criativo que vem aludido no termo mestiço de origem popular que reúne a palavra caso e causa. Mas, voltando às cenas, estas tiveram pregnância (Thom, 1993) suficiente para atravessar longos períodos de tempo, mantendo-se vivas pela sua narrativa em ambientes de formação permanente. 

Escolhemos mesclar as cenas com o trabalho “Estudo de caso: O Barato no divã, relato de uma experiência”2. Este estudo constitui um relato em 1ª pessoa, numa tonalidade memorialista, buscando tornar vivo o conjunto de experiências que constituíram o background de onde surgiu o curso do Barato no divã. 

Quanto às cenas propriamente ditas, trabalhamos com a hipótese de que sua apresentação espontânea nas aulas, que muitas vezes chegam por associação livre, tem uma importância crucial para compartilhar a experiência. Selecionamos uma pequena amostra de nove cenas, de um conjunto muito maior de causos-cenas. Algumas das cenas selecionadas foram trazidas para exemplificar situações que deixaram marcas que modificaram ou instituíram nossa forma de praticar a educação ligada à clínica AD. Ainda de forma fragmentária e não exaustiva, os comentários que se seguem às cenas podem oferecer uma elucidação embrionária deste background, da formação de convicções, encontro e busca de conceitos e teorias que elucidassem o empírico-vivenciado, constituição de práticas que foram sendo absorvidas ao longo do trabalho-estudo nestes vários contextos. 

O formato e a maneira de condução do curso têm como um dos principais objetivos formativos sensibilizar o profissional para manter abertura para a continuidade do tratamento, reconhecendo a importância de trabalhar dentro (e às vezes fora das sessões) com os movimentos de rupturas encontrados na clínica AD. O curso também busca contribuir para a sensibilização necessária para acolher a dor (articulando sofrimento e psicopatologia) e descobrir e fomentar a potência humana (áreas de saúde e criatividade) já explicitada ou potencial naquelas pessoas que procuraram ou mereceram nossa atenção como clínicos, por usarem de forma prejudicial substâncias psicoativas, sobretudo quando preenchem critérios para abuso ou dependência.  

Ainda sobre as cenas

As cenas eleitas ocorreram nestes contextos: 

Grupo de estudos e atendimento num hospital universitário (GREF/IPQ, 1982-1986); 

Ambulatório de saúde mental da secretaria de Estado de Saúde (1985-1991);

Grupo de pesquisa e intervenção Projeto Bleach, CRT-Aids (1988-1989); 

Múltiplos estágios e visitas a serviços (Hospital Marmottan e rede de atenção a UDs/Paris (1986, 1990, 1991, 1997);

Estágio organizado pela SUNY (Universidade do Estado de Nova Iorque); visita e curso em múltiplos serviços (28 serviços), em Boston, Chicago, New York, Washington (jul/1994);3

Atividades em campo (1991-1994) junto a uma rede de sociabilidade UDs e formações ministradas4, durante o Projeto Prevenção especializada [2ªria ria] ao uso indevido de drogas e AIDS entre UDS (PPUID);

Capacitação para educadores de rua na prevenção ao uso indevido de drogas – Pastoral do Menor/ Região Sé (1994). 

Tudo começou com um convite para ministrar uma aula. Nascimento do GREF.

Minha experiência com a formação na área de álcool e outras drogas se inicia de forma indissociável do estudo, da transmissão e da prática clínica. O desejo de me dedicar a esta tríade nasce quando eu e dois colegas residentes recebemos um convite para dar uma aula sobre farmacodependência para alunos de 5º ano da Faculdade de Medicina da USP. Estávamos em 1982, cursando o 1º ano da residência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Dos estudos para a preparação desta aula nasceu a empolgação para fundarmos o GREF, Grupo de estudos sobre farmacodependência do IPQ (MacRae, Reale & Fernandez, 2020; Reale, 1984; Reale, 2021). Iniciamos, no ano seguinte, um ambulatório para pessoas com problemas associados ao uso de drogas ilícitas. Seguíamos uma sólida tradição de ensino médico: aprendíamos atendendo pacientes, saindo em busca de estudar as melhores referências para subsidiar nosso atendimento. 

Para além do estudo obrigatório de artigos e tratados médicos de psicofarmacologia e psiquiatria lemos três livros: Não há drogados felizes de Claude Olievenstein (1977/1978), Experiências com Grupos (1961/75) de Bion e Privação e delinquência de Winnicott (1984/1987).

O nascimento e dissolução do GREF [1982-1987], tal como minha saída dele, instituíram uma marca que acompanharia minha trajetória profissional: manter fidelidade ao impacto profundo desta primeira leitura de Olievenstein, buscando locais onde as condições de trabalho permitissem continuar meu aprendizado e prática clínicos. Para isso, era preciso estar atenta para manter uma margem de liberdade no exercício desta clínica. Começara a trabalhar, concursada como médica psiquiatra, num ambulatório em 1985.  Destes tempos, trago uma vinheta clínica.

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Vinheta #1: Beto, saindo da prisão, GREF [1983-1984]

Beto, quase 30 anos, dependente de múltiplas drogas (principalmente barbitúricos), ex-presidiário (por ‘roubo de toca-fitas’), 2º grau completo. Na prisão, manteve o uso de drogas graças ao trabalho que realizou na farmácia do presídio. Inteligente e determinado, sofreu durante o primeiro ano de egresso do sistema prisional pela desconfiança que a família manteve neste período, não acreditando nem na sua abstinência nem no propósito de arrumar um trabalho.

Ainda residente, este foi meu 1º paciente em psicoterapia semanal por pelo menos 2 anos. Com poucas faltas, aderiu ao tratamento, desde o começo. Adotávamos critérios de exclusão explicitados e manejados com alguma margem de tolerância para faltas, atrasos; duração pré-determinada, com avaliação clínica inclusa.

Gatilho da mudança: desde o começo dos problemas associados ao uso de drogas, nunca tinha tido a experiência de confiança depositada em sua palavra e intenção de mudança. 

Resultados: Arrumou emprego, não voltou mais a usar drogas ilícitas, tinha começado a namorar firme quando seu tratamento estava prestes a se encerrar. ______________________________________________________________________

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Cena #1. Fica esperto! GREF/IPQ-HC, São Paulo, 1983 

A indicação de internação para os pacientes do ambulatório do GREF era exceção; quando acontecia, fomos aos poucos descobrindo que nossos pacientes chamavam a atenção por darem pouco trabalho na enfermaria. O manejo foi sendo construído a partir de uma resposta dada à situação de um paciente – um dos primeiros casos internados – que trazia às suas consultas relatos de situações abusivas ocorridas na enfermaria. E ela veio assim: 1º. Parti do esclarecimento de qual a posição de poder na hierarquia da instituição era ocupada por mim, uma residente de segundo ano; 2º. Assegurei que encaminharia seus relatos na discussão com o médico assistente responsável pela supervisão de meus atendimentos; 3º. Tratei seus relatos com respeito, sem invalidá-los; 4º. Salientei que, visto que ele nunca fora preso, era provável que ele tivesse capacidade para evitar problemas com a polícia (a lei vigente era a 6368/76) que acompanha o circuito de aquisição, transporte e uso de drogas ilícitas; recomendei que, se ele quisesse usufruir a curta internação [raramente ultrapassava o período de um mês] e não correr o risco de perder a vaga conquistada, usasse das mesmas habilidades para “desviar dos desvios” cumprindo as regras explicitadas ao ser admitido na enfermaria. Trocando em miúdos, a mensagem foi: “Fica esperto! Parte do que acontecer aqui com você, depende também de você!”. 
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Comentário: Já havia sido sensibilizada desde o início de minha clínica pelas leituras e contato com Olievenstein de como a garantia dos direitos dos pacientes UDs exigia lucidez e posicionamento estratégico para protegê-los das pressões institucionais que muitas vezes desviam as ações da equipe numa direção mais repressiva do que terapêutica. Não dispúnhamos ainda de uma rede de ativistas que militavam em prol de direitos humanos de UDs. Estávamos na era pré-aids.

“Já havia sido sensibilizada desde o início de minha clínica pelas leituras e contato com Olievenstein de como a garantia dos direitos dos pacientes UDs exigia lucidez e posicionamento estratégico para protegê-los das pressões institucionais que muitas vezes desviam as ações da equipe numa direção mais repressiva do que terapêutica.”

A paixão pela clínica libertária de Olievenstein e Marmottan

O livro bestseller de Olievenstein, Os drogados não são felizes, despertou esta paixão pela clínica das dependências de drogas, da qual nunca me curei. Nele encontrei relatos clínicos vívidos em que o psiquiatra falava do paciente sem usar uma linguagem psicopatológica. Olievenstein também inclui uma apresentação de sua história como profissional, o que esclarecia como determinados aspectos contribuíram para a construção de sua postura sensível ao sofrimento que a toxicomania carregava em sua montagem. Narrava e justificava o caminho da construção da tradição marmoteana, central ao “modelo de cura francês”, nome que não agradava aos marmoteanos de raiz libertária, mas que ajudava os estrangeiros que lá estudaram a ter uma apresentação de uma rede articulada de cuidados com financiamento público, elucidando os componentes conceituais e práticos de seu funcionamento; esta rede era voltada sobretudo para os indivíduos com história de dependência em situação de vulnerabilidade. 

Como coordenadora do GREF, fui convidada pelo Prof. Luis Eduardo do Santa Cruz, trabalhando com o Pe. Charbonneau, para compor um grupo de profissionais que iriam organizar uma semana de atividades com o Prof. Olievenstein em sua 1ª visita a São Paulo para o ano seguinte de 1984 (Reale, 1984). Este convite não podia ser mais bem-vindo: tornei-me coanfitriã daquele que me inspirara a mergulhar nesta clínica; deste encontro redundou o convite para estagiar em Marmottan, e o início de uma relação que durou até 1997, assegurando no mínimo uma supervisão clínica anual. 

Do saudoso Ambulatório de saúde mental da Lapa (1985-1991), trouxe a experiência como psiquiatra referência no tratamento de pacientes dependentes de drogas ilícitas da região oeste de São Paulo. Nestes tempos, os usuários com problemas associados a seus usos na cidade de São Paulo contavam para seu tratamento, no âmbito público, com mais 1 ou 2 psiquiatras em outras regiões da cidade, funcionários públicos do estado. Estávamos numa era pré-CAPS!!

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Vinheta #2: “avião”, piloto de provas, Ambulatório da Lapa, 1985

Lembro de um caso atendido em meados dos anos 80. J. jovem com menos de 30 anos, afrodescendente, casado, pai de família de 2 filhos, que mantinha uma ocupação paralela a seu emprego público, uma espécie de bico, como ‘avião’. Este bico lhe permitia manter seu uso de cocaína e praticar seu hobby favorito: dirigir motos e carros em altas velocidades. Financiado pelo ‘cabeção’5, participava de corridas clandestinas. A dificuldade maior do seu tratamento não foi parar o uso da cocaína, mas ajudá-lo a despedir-se da oportunidade de dirigir os carrões importados que lhe propiciavam enorme satisfação.
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Cena #2: Paisagem imaginária da quebrada, entre 1985 e 1989. 

A pista de salto com a moto, construída artesanalmente numa ladeira…. pelo J. ficou como um resto mnemônico imaginário. Esta cena imaginária habitou minhas memórias como um lembrete da saída criativa com caráter reparador à perda do paciente “ex-avião”, um ás do volante.
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Cena #3 O ‘círculo gelado’, atendimento ambulatorial, São Paulo, 1986

A cena ocorreu após um ano e pouco de um atendimento com um enquadre misto psiquiátrico e psicoterápico de inspiração psicanalítica, com sessões semanais de uma hora de duração, num ambulatório de saúde mental. Era uma psiquiatra em início de formação psicanalítica, adepta da prática terapêutica desenvolvida por Claude Olievenstein (mescla de psiquiatria psicodinâmica francesa com uma camada de psicanálise lacaniana, resultando em uma modalidade autoral, adaptada às necessidades dos toxicômanos (Olievenstein, 1985; Olievenstein, 1989; Reale, Soares, 2021). 

Era uma paciente de 30 e poucos anos cuja demanda visava tratar e prevenir prejuízos associados ao abuso de álcool e cocaína. Sua forma de relação comigo incluía a produção de narrativas de situações imaginárias de natureza enigmática e fortemente subjetiva, daí a escolha de seu nome fantasia, Sherazade. A forma como a psicoterapia transcorria sugeria à paciente que tudo podia ser falado; o compromisso com a verdade factual não era uma exigência a priori; isso parece ter produzido um enigma para a paciente. Afinal, qual a natureza desta relação? Até onde podem chegar as coisas entre nós/ o que pode e o que não pode acontecer aqui? Estas foram minhas hipóteses para o sentido da cena que aconteceu nesse dia com Sherazade.

Um dia, as palavras escolhidas deram forma a uma suposta arma de fogo na sessão. O que entendi naquele momento e ficou ‘gravado para sempre’ em minha memória é, ‘exatamente’, como reproduzo aqui [tal como tenho feito em aulas sobre a clínica e o tratamento da dependência de AD nos últimos 35 anos]: 

“O que aconteceria se [eu sacasse a arma que tenho aqui comigo: pensamento intrusivo] eu a levasse para dar uma volta de carro pelo quarteirão?” E, ela continuou: “Não faria nada de mal a você, jamais! Só gostaria de levá-la para dar uma volta comigo. Seria possível?”. Nesta sessão ela chegara atrasada uns vinte minutos, o que não era seu habitual… também estava muito agitada, nervosa, o que nunca tinha acontecido.
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Comentário 1: Este relato, tal como reproduzido acima, sempre soou um tanto estranho, a cada vez que o reproduzia nestes termos acima descritos. De algum modo sabia que esta estranheza precisava estar incluída na narrativa, pois fazia parte de acontecimentos desta relação terapêutica que aguardava pelo momento em que poderia ser elucidada. Nas vezes em que me debrucei para escrever sobre o caso, fui discriminando alguns dos componentes da estranheza. Por exemplo: sempre soube da existência da menção à arma; mas nunca foi claro ou fez sentido que ela de fato tivesse mencionado o ato de sacar a arma. Também tenho segurança de que ela fez questão de explicitar literalmente que nunca me faria mal! 

Comentário 2: Reconstruindo a cena, acredito que a menção à arma, precedendo à consulta do que aconteceria se ela me convidasse para dar uma volta com ela, pode ter produzido um efeito da eclosão de afetos ameaçadores, gerando de forma imediata em minha imaginação a cena da arma sacada, encostada às minhas costas, produzindo a sensação tátil de um círculo gelado do cano da arma, enquanto saíamos da sala a seu comando. Venho me ocupando da elucidação desta cena [imaginária] há décadas, sempre que encontro um motivo para me debruçar mais detidamente sobre este caso6. Acredito que o resultado desta intensidade e turbulência emocional constituiu uma intrusão e inscreveu uma zona de instabilidade estrutural na memória, presente na forma, simultaneamente desorganizadora do diálogo relembrado e da criação de uma sensação física de um círculo gelado em minhas costas. A presença nesta cena da desorganização da reprodução do texto dialogado, ‘que soa estranha’, inscreveu a memória de uma vivência de ameaça. Hoje, reconstituindo o relato, passei a acreditar que uma versão plausível para entender a menção à arma poderia ser o desejo dela de me assegurar que ela me protegeria se algo acontecesse (afinal ela já me contara estar ‘dando um tempo aqui’ em São Paulo, até que as ‘coisas esfriassem’ em sua cidade de origem).  

Comentário 3: O manejo da situação reproduziu a forma como eu concebia, à época, o trabalho psicoterápico psicanalítico mais comum, em que um dos elementos centrais à constituição do enquadre se fazia pelo respeito a uma certa interdição do fazer simultaneamente à suspensão das restrições sociais do que pode ser dito. Partindo desta concepção vigente naquele momento, pude apontar à paciente seu desejo de saber se aquilo que ela vivenciava naquela relação terapêutica no consultório era para valer ou não. Esclareci a ela que a grande liberdade que ela exercia na escolha (consciente ou não) do quê falar e de como organizava suas histórias na sessão era assegurada pela restrição de que nossa relação se faz terapêutica na medida em que deve permanecer contida ao ambiente do consultório. Esta segurança é protetiva para ambas as partes para saber que poderiam vivenciar tudo nas conversas e narrativas, desde que permanecessem interditadas as relações extraterapêuticas.

A presença no Hospital Marmottan e em sua rede como estagiária ou como visitante, entre 1986 e 1997, permitiu a influência teórico-metodológica e o fortalecimento de um anseio por encontrar formas de viabilizar, em território e realidade brasileiros, algo que me marcara das múltiplas práticas a que fui exposta e definitivamente contaminada: 

  1. Marmottan-locomotiva que protagonizava práticas de clínica extensa de caráter terapêutico, onde, de forma apaixonada, o staff constituía uma fusion de modelos teóricos vindos da psiquiatria psicodinâmica, psicanálise francesa e lacaniana, o que redundou em contribuições criativas e inscreveu em mim a experiência e esperança de que um arrojado espírito libertário podia, sim, instituir e defender sua existência resistindo às pressões institucionais para restringir-se à produção de mera repetição burocratizada de resultados quantificáveis! 
  2. Abbaye [1986]: O trabalho do time da Abbaye, também feito nas ruas, na estação Les Halles, e imediações no 1º arrondissement de Paris, conectado a toda Paris pela superposição das redes de metrô e trem – algo como uma mistura de praça da Sé, estação Luz e Barra funda –, visava acessar populações sobretudo de imigrantes em situação de vulnerabilidade, com um objetivo de (re)inserção profissional. Estes jovens contatados outdoor não chegavam nem mesmo a entrar na rede de atenção gratuita formada pelos serviços de saúde propriamente ditos (Reale, 2021). O agravamento da situação de dupla ilegalidade – condição de imigrante ilegal, e envolvimento com as dinâmicas do mercado e uso de drogas ilegais – certamente contribuía para esta exclusão do serviço de saúde público. A defesa da prática de preservar o direito ao anonimato dos pacientes de Marmottan tinha o objetivo de minimizar essa dificuldade de acesso. 
  3. EGO [4 visitas entre 1986-1997]: Fui apresentada por Olievenstein à Lia Cavalcanti, uma exilada brasileira que, em 1986, havia dois anos tinha fundado EGO7, um coletivo cuja vocação inicial era acessar e cuidar de populações vulneráveis de imigrantes usuários de drogas, legais ou ilegais, em seu território, construindo e pondo em prática o que viria a ser, décadas depois, uma referência internacional na atenção a esta população, composta por cinco serviços  articulados a partir da perspectiva de redução de riscos e de danos.

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Cena #4: E dê a descarga! Hospital Marmottan, Paris, 1986

Tínhamos reuniões formativas com um psiquiatra e psicanalista lacaniano, Bernard Géraud, membro do ambulatório de Marmottan. Ele trouxe um caso para que discutíssemos o manejo; só depois que terminamos, ele nos contou o desfecho, razão pela qual adotaram um procedimento protocolar frente à questão de drogas x ambiente da internação. O caso foi o seguinte: no momento que antecedeu a revista dos pertences do paciente – protocolo para admissão na internação, adotado após uma grande revisão das práticas terapêuticas de Marmottan no início dos anos 80 – o paciente contou para o enfermeiro responsável que ele trouxera consigo, por esquecimento, uma certa quantidade de heroína, sua droga de eleição. Pediu para o enfermeiro guardá-la para quando ele saísse da internação. Ele estava respeitando a interdição de trazer droga para dentro do hospital. Já era sabido que ele vivia do que obtinha das vendas de um pequeno tráfico. Movidos pelo espírito libertário que respirávamos na atmosfera marmoteana, a discussão ocorreu acalorada sobre o que fazer, chegando a conclusões que visavam proteger o paciente, cuja apresentação mostrava marcadores nitidamente de um alta vulnerabilidade social. A conclusão da narrativa do episódio seguiu: após alguns dias, 2 ou 3 pacientes, no momento de sua alta, abordaram o tal enfermeiro, reivindicando que ele lhes entregasse determinado número de gramas da heroína guardada, que agora eram suas, pois fizera negócio com o paciente proprietário da droga, adquirindo-as. A saia justa da situação fala por si só. O enfermeiro acabou por ser colocado numa posição de entreposto da droga, um dealer involuntário. O caso trouxe à tona a responsabilidade de cada gesto dos membros da equipe, envolvendo a presença física da droga (sobretudo a ilícita) no espaço institucional. Frente ao compromisso institucional no momento da internação de assegurar um espaço terapêutico protegido, livre das drogas objeto de sua dependência, a dimensão coletiva tem de ser considerada na hora de decidir qualquer procedimento voltado ao sujeito em sua singularidade. Assim, a diretriz vigente à época frente à chegada de droga no ambiente da internação passou a ser descartar no sanitário, testemunhado pelo paciente, caso o paciente fosse admitido na internação.
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“Em Marmottan podíamos assistir à eterna luta dentro da saúde mental para manter reunidos um compromisso com a máxima qualidade na atenção às singularidades do sofrimento psíquico pessoal e a busca por viabilizar este atendimento na maior escala possível, cumprindo uma expectativa condizente com um serviço de saúde público de oferecer a máxima cobertura.”

Em Marmottan podíamos assistir à eterna luta dentro da saúde mental para manter reunidos um compromisso com a máxima qualidade na atenção às singularidades do sofrimento psíquico pessoal e a busca por viabilizar este atendimento na maior escala possível, cumprindo uma expectativa condizente com um serviço de saúde público de oferecer a máxima cobertura. Nunca abandonei meu desejo de buscar manter ativa alguma contribuição pessoal para esta luta. 

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Cena #5: Paixão pela psicoterapia, Hospital Marmottan/Paris, Junho 1986

Enquanto eu falava (apaixonadamente) da psicoterapia, os pacientes na sala de convivência foram se achegando e quando eu me dei conta estavam reunidos à minha volta. No dia seguinte, ao chegar ao ambulatório, descobri que os médicos vinham perguntando na secretaria quem era esta estagiária brasileira que andou conversando com seus pacientes. Saí do anonimato de estagiária – num gesto espontâneo – pela expressão livre de minha paixão pela psicoterapia. 
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Comentário 1: O lugar que a psicoterapia ocupava em Marmottan era enigmático.  O que acontecia nos atendimentos ambulatoriais com os psiquiatras, alguns psicanalistas, não seguia um padrão visível aos olhos dos estagiários estrangeiros. Toda a transparência que encontrávamos na enfermaria onde os pacientes estavam internados, tornava-se opacidade no ambulatório onde tudo acontecia… a portas fechadas. Depois que a notícia de minha curiosidade se espalhou, o assunto pôde ser ventilado um pouco mais. Mas um esclarecimento maior veio das leituras posteriores, do livro A clínica do toxicômano. A falta da falta, de Claude Olievenstein, publicado em francês no ano seguinte a esta cena, em 1987. O livro trata da clínica praticada em Marmottan naqueles tempos, escrita por membros de sua equipe clínica. Em especial, o texto de Olievenstein esclarecia em que consistia a psicoterapia praticada em Marmottan: “Cuidado com os toxicômanos: Uma ética para uma psicoterapia perversa” (Olievenstein, 1987/1989). 

Comentário 2: Como estagiária, não tinha uma responsabilidade de cuidado específico individualizado com qualquer paciente. Este estatuto de estagiária, mais como uma observadora participante, ao mesmo tempo que limitava, interditando intervenções num sentido mais técnico de atendimento médico/psicoterápico, permitia que eu conversasse mais livremente sobre muitos assuntos com os pacientes. Daí deve ter surgido esta conversa em que minha convicção sobre o valor de uma psicoterapia (condizente com minha escolha, de orientação psicanalítica) transbordou numa descrição apaixonada de como os pacientes poderiam se beneficiar desta abordagem.

No contexto brasileiro, neste mesmo período do final dos anos 80, pudemos participar, entre 1988 e 1989, de um projeto pioneiro do CRT-aids de São Paulo, chamado Bleach (MacRae, Reale & Fernandez, 2020) no qual tivemos, pela primeira vez, a oportunidade de ter acesso em campo, no seu próprio território, a UDs, que vinham sendo contatados por antropólogos, usando métodos dos estudos etnográficos. A influência e importância desta experiência em solo brasileiro (MacRae, Reale & Fernandez, 2020, pp. 98-105) confluindo com a experiência internacional, inspirou os próximos passos na minha carreira, cuja história seguirá na próxima seção (Brites, Reale & Soares, 1997).  

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Cena #6: entre o ser e o fazer, Projeto Bleach/CRT-aids, São Paulo, 1988

Uma noite, três jovens médicas, eu, uma psiquiatra e uma infectologista – coordenadora do projeto – estavam em campo para proceder à aplicação de um questionário epidemiológico e realizar a coleta de sangue de UDIs para estabelecer, pela primeira vez no país, qual seria a prevalência do HIV e outras DSTs, numa amostra desta população. Fazíamos parte da equipe que coordenava o projeto Bleach, do CRT-Aids (MacRae, Fernandez & Reale, 2020). Antes de iniciarmos a coleta, fizemos uma caminhada, acompanhadas de um agente de campo para que fossemos apresentadas aos membros contatados desta rede de UDs/UDIs. Neste pequeno circuito, percorrido por menos de uma hora, encontramos e conversamos com 3 rapazes que faziam ponto nas imediações da galeria e avenida São Luiz. Estávamos bastante empolgadas nesta ocasião, pois finalmente tinha chegado o momento de nossa ida a campo. Embora curtas, as conversas foram muito marcantes. Nossa curiosidade sobre determinados aspectos de suas práticas de risco foi deslocada por uma resposta (a uma pergunta que nunca fizemos) que se repetiu: os rapazes mencionavam uma justificativa para sua ‘ocupação’ temporária nas ruas que incluíam a necessidade de mandar dinheiro para a mãe doente. A repetição da história serviu de alerta; posteriormente, naquela mesma noite, reunimo-nos para discutir nossas impressões sobre os acontecimentos daquela noite. Percebemos o caráter protetivo de sua imagem em risco, visto que nós éramos claramente estrangeiras frente ao circuito de prostituição masculina do qual eles faziam parte. Mas um aspecto surpreendente muito me encafifou, a ponto de tornar-se uma lembrança duradoura, que relatei e sobre a qual conversei a respeito inúmeras vezes ao longo destes trinta anos, de maneira que tal relato não se apagasse de minha memória. Três garotos que não pareciam pertencer à mesma família mencionaram que suas mães eram de uma mesma cidade sulista que chamei anedoticamente de Nova Berlim. A repetição da mesma cidade tornou toda a situação enigmática, pois agregou um desconforto ainda maior. 
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Comentário 1: Recentemente, conversando com a colega psiquiatra sobre sua lembrança desta mesma visita a campo, descobri que ela também tinha uma memória que considerava estranha: para ela nossa indignação à época era com a informação de que todos mencionavam estar naquela situação há apenas três meses! Um elemento comum era lembrado como desencadeante de nosso desconforto: o caráter bizarro deste elemento idêntico nos 3 relatos. Fosse a menção a uma mesma cidade, ou a um mesmo período de tempo, além do principal: a mãe doente. À época, nos perguntávamos: estariam zombando de nós? Um aspecto lembrado pela colega sobre aquelas conversas foi que nós perguntamos muita coisa naqueles poucos minutos em que nos encontramos. Éramos jovens e como psiquiatras estávamos acostumadas em nossas consultas a conversar de maneira direta e franca sobre a intimidade da vida de nossos pacientes. A mudança drástica de contexto não parece ter sido notada por nós, pois nos encontrávamos muito empolgadas com o aprendizado riquíssimo daquela situação. Se os jovens estavam nos provocando com aquelas respostas prontas, fabricadas coletivamente, nós jovens também estávamos invadindo com nossa curiosidade médica, e com muito pouco tato, temas e áreas de suas vidas sem que tivéssemos conquistado o direito de fazê-lo, naquele inesquecível passeio noturno pré-coleta! Curiosamente, eles falavam conosco daquilo que os incomodava, e que para nós não era um problema! Em nenhum momento mencionamos diretamente algo a respeito do trabalho deles em nossas conversas: eles queriam dissolver a ideia de que eram algo condenável – michês – minimizando a importância daquela prática em suas vidas, transformando-a em algo transitório. Entre o ser e o fazer algo, transitoriamente, há uma enorme diferença!

Comentário 2: Já nos anos 90, ao ter contato com alguns textos antropológicos sobre o trabalho de campo, vim a confirmar algo que na prática já havíamos experimentado: os estranhos a um subgrupo com uma subcultura própria, sobretudo daqueles que carregam algum estigma (Goffman, 1963/2015), são afastados por meio de diversos estratagemas de ocultamento de aspectos de sua vida-cultura que desejam proteger do olhar estrangeiro. As histórias fabricadas coletivamente dos UDs encontrados naquela visita a campo parecem ser deste tipo: revelam uma função defensiva diante de uma exposição ameaçadora de sua imagem, identidade.

Nascimento e morte do PPUID [1991-1994]: acaso e determinação

Em São Paulo, Ika Fleury, na gestão do Governo Fleury (1991-1994), iniciou um programa de prevenção de várias secretarias de estado8, o que permitiu a implantação de um projeto de minha autoria, sonhado desde 1986 e elaborado em 1989: o Projeto Prevenção especializada [2ªria ria] ao uso indevido de drogas e aids entre UDS: PPUID. Sua implantação permitiu que investigássemos in loco e na práxis um problema clínico que todos da clínica especializada conhecem: a chamada baixa adesão. Em novembro de 94, após a eleição, a mudança de partido no governo estadual estabeleceu sumariamente o encerramento do projeto.

O objetivo principal do PPUID era acessar uma rede de sociabilidade de UDS em seu meio para instituir, junto a eles, ações preventivas ao uso indevido de drogas com ênfase no HIV/AIDS, provendo acesso para cuidados com saúde, trabalho, moradia (Kirsch, Reale & Osterling, 1995). 

Selecionei uma passagem marcante dos primeiros meses de trabalho, retirado de um trecho reproduzido no artigo (Cavallari & Reale, 2020), a partir do trabalho “Jogos de Identificação e seu Papel na Prevenção Especializada”, apresentado num Simpósio: “Aids e Uso de Drogas Injetáveis”, na UERJ, que sobreviveu em versão integral, não publicado (Reale, 1992).

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Cena # 7: Uso responsável, atividade em campo zona oeste, PPUID, 1991. 

Logo nas primeiras semanas do trabalho de campo, C. apresenta às educadoras a um jovem D., 28 anos, que se destaca do grupo. D. tem uma escolaridade maior que a maioria do grupo (2º grau completo), profissão de vendedor. Um dos únicos que já foi casado oficialmente; está separado e tem dois filhos para quem paga a pensão combinada. Numa tardezinha, estavam reunidos mais ou menos sete destes jovens num bar com as educadoras e animadamente conversavam. D. e C. estavam presentes e brindavam à formação do “nosso grupo”. A umas tantas, “rola” uma conversa sobre drogas – D. faz questão de se distinguir dos demais quanto ao uso de drogas. Justifica esta distinção usando a expressão: “uso responsável”. Explica: alguém que usa drogas e trabalha, cumpre com suas obrigações, é diferente de quem usa drogas e não tem obrigação nenhuma. “Ser responsável” implica em trabalhar, esclarece D., e ele trabalha. Esta representação do “uso responsável” parece ter calado fundo nos presentes. […] Instaurou-se um dito cujos efeitos seriam revelados “a posteriori”. D. ofereceu ao grupo uma identidade restauradora: o trabalho passou a ser um elemento purificador dos aspectos negativos associados ao uso de drogas. Uma solução vantajosa se comparada com a abstinência total das drogas, correntemente conhecido como o único caminho de construção de papéis sociais positivos e almejáveis. Este ascetismo não oferecia compensação vislumbrável pelo grupo. Ecos ocorreram, mostrando que alguns iniciaram movimentos na direção de modificar seu consumo recente. Esta representação do uso oferece um valor heurístico, pois alinha-se a um aspecto seminal da RD que se propõe a ampliar as soluções existenciais positivas que os usuários de drogas buscam para si, indo além do binômio abstinência igual à saúde x uso de drogas igual à doença. (Cavallari & Reale, 2020).
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No último ano do PPUID, 1994, novamente se impôs a necessidade da transmissão de nossa experiência: organizamos um treinamento para multiplicadores em prevenção ao uso indevido de drogas e aids, envolvendo multiprofissionais (saúde, educação formal e informal, segurança, esporte, líderes comunitários).

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Cena #8: ESQUERDA, VOLVER!!! Centro de Saúde Pinheiros, março/1994. 

No primeiro dia de aula, da primeira turma do treinamento do PPUID, lembro da cena de soldados entrando fardados em fila. Eu e uma educadora cochichamos: “isso não vai dar certo!!” O espanto e a preocupação era: seríamos capazes de conseguir integrar estes aos demais alunos? Pela proposta intrínseca ao curso, a turma era constituída por um grupo de grande heterogeneidade! Num dado momento das discussões que surgiram durante a aula, comentei a dificuldade que tivera quando visualizei os policiais entrando. Partilhei minha experiência dos tempos da universidade, em plena ditadura, quando policiais tinham se transformado em agentes da repressão que perseguiam e batiam em nossos colegas mais ativos. Esta partilha desencadeou espontaneamente uma discussão sobre os preconceitos que carregávamos conosco, entre nossas profissões, permitindo que percebêssemos que convivíamos silenciosamente – sem nos darmos conta de sua existência – e só quando expostos a uma situação que exigisse uma necessidade de reavaliar sua existência é que começávamos a perceber seus efeitos em nossas relações. A rejeição que os psiquiatras provocavam nas pessoas pode ser mencionado como contraponto. Esta discussão teve o efeito de continuar desmanchando a posição de poder, hierarquizada, da médica-professora-autoridade mudando as relações de uma verticalidade de respeito temeroso para uma horizontalidade de pessoas capazes de refletir criticamente sobre si e sua posição frente ao outro. Entre a equipe de professores/mediadores e os alunos estabeleceu-se um clima de grupo de trabalho. Esta discussão sobre os preconceitos silenciosos relacionados às profissões, naturalizados por relatos de situações ruins tratadas como regra, permitiu uma elaboração conjunta do grupo, criando uma abertura para examinarmos pessoalmente as manifestações menos diretas e explícitas dos preconceitos de que são alvo, quase unanimemente, os usuários de drogas, sobretudo as ilícitas.
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Comentário 1: Reproduzo aqui um trecho da dissertação do mestrado da avaliação formal que foi feita deste treinamento:

“Foi realizada uma avaliação do curso, enfocando a adequação entre suas técnicas educacionais e objetivos, particularmente em relação à sua capacidade de identificar manifestações de preconceito e propiciar aos participantes uma reflexão crítica. Utilizando-se da técnica de grupo focal9 e de observação em classe (Reale, Brites & Soares, 1997, pp. 12-13) foi possível formular-se a seguinte classificação de discursos e atitudes relacionadas às drogas entre os participantes:  

  1. substituição de mitos por informações científicas em relação às drogas; 2. capacidade de criticar posições estigmatizantes em relação aos usuários de drogas, condensadas na figura do “drogado-criminoso-doente”; 3. redução de sentimentos que expressam uma distância social em relação aos usuários de drogas (Reale, Brites, & Soares, 1997, pp. 14-18) 

Atribuiu-se um papel fundamental à heterogeneidade da composição do grupo como propiciador do aparecimento de preconceitos relacionados à profissão do “outro”, deflagradas, sobretudo, pela presença, no grupo, de “representantes da lei”. As discussões promovidas a respeito destes preconceitos entre os profissionais, favoreceu uma percepção mais acurada de como parte das certezas sobre quem são e o que fazem os drogados nada mais eram do que preconceitos amplamente divulgados e consolidados em nossa sociedade. A possibilidade de confrontar as situações cotidianas geradas nos múltiplos e distintos contextos profissionais (escola, serviços de saúde, “reformatórios”, trabalhos de rua) ou em situações do dia-a-dia em família e vizinhança, enriqueceu a construção de uma visão mais complexa e diversificada do que venham a ser os usos e usuários de drogas (Reale, Brites, & Soares, 1997, pp. 18-20).” (Reale, 1997, pp. 157-158)

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Cena #8b: Bar do c* do padre, Largo de Pinheiros, março/1994.

Estamos num pequeno grupo, formado pelo time do PPUID, e alguns poucos alunos, dentre os quais dois policiais, um da civil da perícia/polícia científica, estudante de Direito; e um jovem cadete da PM, de 20 anos. Ambos se aproximaram o suficiente da equipe para compartilhar, em clima de confraternização, experiências cujas histórias preferiram compartilhar num ambiente mais íntimo, de maneira mais confidencial. 
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Comentário 1: Este “aprofundamento” pós-curso corrobora a ideia de que um elo se formou, sugerindo que as trocas ocorridas exclusivamente nas aulas atingiram uma qualidade capaz de propiciar o desejo de continuar com esta elaboração conjunta, sendo capaz de mobilizar sentimentos de afinidade e cumplicidade. Hoje acreditamos que este efeito está relacionado à potência do gesto espontâneo, que traz à baila um não-dito, e surgiu como uma forma de enfrentamento do problema do sentimento de desconforto de parte da equipe, com uma parte dos alunos – os agentes de segurança. A solução emergiu por uma via não reflexiva, pré-pensada, mas como gesto espontâneo: tornei explícito este sentimento, de forma autocrítica.

O Barato, e seu lugar: habitamos e nos conectamos num espaço intermediário, com colorido transicional

Cunhado nos anos de chumbo, entre 1976 e 1981, nasceu um espaço intermediário entre as salas de aula, laboratórios e consultórios, e os porões da FMUSP. Vem deste espaço intermediário a determinação de nunca perder o compromisso ético-político que fez avançar minha carreira entre o público e privado, entre a ciência e sua crítica, entre o exercício da medicina e sua suspensão, entre a prática de rua e a investigação epidemiológica, entre a psicanálise e as disciplinas primas das ciências sociais, entre a escuta e a intervenção, entre o ensino e a escrita e, no presente momento, entre o presencial e o online. 

A elaboração da perda pela interrupção abrupta do PPUID, em dezembro de 1994, fez-se em parte dentro de um mestrado em Medicina Preventiva, retornando à casa de Arnaldo, entre 1995 e 1997. Este mestrado consolidou este percurso desde o nascimento do GREF em 1982. Também abriu as portas para o desejo de sistematizar uma nova forma de manter vivo, mais além de minha clínica privada, este aprendizado e experiências advindos de contextos tão diversos. A ideia de sua transmissão por meio da formação permanente de profissionais de saúde mental encontrou no Instituto Sedes Sapientiae a recepção para nossa iniciativa, em 2000, abrindo suas portas para os primeiros 10 anos de pequenos cursos de expansão sobre a clínica AD, até que em 2011 ampliamos nosso escopo e nosso corpo docente e iniciamos a primeira versão de um curso mais longo [80hs]: Drogas, dependência, autonomia: o barato no divã

E, desde então, continuando nosso desenvolvimento, chegamos ao formato atual. Mantemos dois cursos de expansão pequenos (ambos com 15 horas) ministrados semestralmente no Instituto Sedes Sapientiae10, e um curso longo, ministrado de forma independente, modalidade curso livre, que a partir de 2020, adotou a forma online, com atividades síncronas e assíncronas; no formato de 3 módulos conjugados de 40 horas11.  

Ressonâncias eletivas entre elaboração da prática clínica, aprendizado-ensino e escrita.

Creio que será possível, neste ponto, estabelecer uma ressonância entre vários aspectos contidos nas cenas e temas escolhidos para várias aulas, que complementam os temas convencionalmente abordados em cursos de clínica AD. Além da ressonância temática, formas de trabalho foram se consolidando a partir da experiência seminal dos treinamentos realizados em 1994 no PPUID; em especial a valorização da heterogeneidade na conformação da turma, descoberta revelada na cena#8. Este broto nasceu como gesto espontâneo no treinamento de 1994, e foi posteriormente elaborado e investigado dentro de parâmetros formalizados de pesquisa qualitativa após seu término (Reale, Brites & Soares, 1997; Soares, Reale, & Brites, 1997; Soares, Reale & Brites, 2000). Algo que foi por nós concebido e encontrado coletivamente. 

Uma visão sobre o conjunto das oito cenas aqui trazidas mostra que elas podem ser consideradas fazendo parte de dois tipos complementares: 

1. Cenas que guardam uma relação mais linear do processo percepção-memória-reprodução, adotando discurso/narrativa diretos; 

As cenas deste primeiro tipo configuram a maior parte das cenas escolhidas e são autoexplicativas, no sentido de ilustrarem passagens cujo relato demonstra algum aprendizado pelo inusitado da situação, pelo frescor de uma novidade, pela surpresa, descoberta e enfrentamento dos diferentes problemas que elas carregaram. 

2. Cenas cujo relato/narrativa chega a problematizar esta mesma linearidade, ao introduzir nas cenas (memórias) trechos imaginados, ou sobre os quais pairam dúvidas ou alguma insegurança. Esta explicitação de uma instabilidade frente à fidedignidade de sua reprodução atual funcionou como um apelo, um postit-lembrete-sintético, para alguma futura elaboração. 

Deste segundo tipo, temos sobretudo a cena #3: o círculo gelado, sobre a qual faremos uma discussão a seguir.

Voltando à cena do círculo gelado, discutindo o caso da Sherazade

A discussão deverá: 1. articular aspectos relacionais, envolvendo trocas, via transferência e contratransferência, comumente abordados numa discussão de caso clínico; 2. Pontuar alguns aspectos teóricos que levantam hipóteses envolvendo os efeitos desorganizadores da função de representação; 3. Enfatizar o valor do caso clínico como fonte do ensino-aprendizagem, incentivando a produção de registros e anotações escritas para elaboração de relatos e estudos de casos clínicos, mesmo que em futuro distante.

O que tornou esta cena, escolhida dentre inúmeras outras deste mesmo caso, que graças a sua dinâmica relacional gerou muito outros episódios pitorescos, foi justamente o fato dela ter se inscrito no pool de experiências marcantes por uma saliência de caráter disruptivo, que carregou um furo, uma descontinuidade na sua reprodução, permitindo que um ponto de turbulência representacional mais intenso fosse registrado e incluído como parte do relato. Creio que a pulsão epistemofílica, ou prazer pela busca de conhecimento, a mantiveram viva até que se acumulassem as condições para a chegada do momento de uma elucidação possível. 

Aprender a identificar desde sempre cenas, episódios. passagens que tenham um potencial para ampliar nosso aprendizado clínico faz parte da capacidade de desenvolver uma capacidade de reconhecer que o aprendizado nasce pela descoberta de que uma postura ativa, curiosa e esperançosa modula virtuosamente nosso aprendizado com a experiência. As fontes para identificar estes momentos são muito amplas, embora a relação clínica entre paciente e profissional de saúde em ou com formação psicanalítica possa aprofundar o potencial de elucidação, que será mais rica se a pessoa puder manter uma abertura multidimensional para a busca e absorção de outros saberes, rompendo com as amarras que se estabelecem por mecanismos formativos por meio das identificações aluno-professor-instituição formativa.

Por fim, espero poder demonstrar que o trabalho sobre esta cena serviu como fonte de conhecimento de si e do outro, contribuindo para a formação continuada do analista vivo. 

O caso da Sherazade 

Este caso foi carregado, desde o seu início, de aspectos enigmáticos, dos quais alguns permaneceram não resolvidos, até que, anos depois, as condições para formular hipóteses plausíveis pudessem ter sido alcançadas, graças à análise pessoal integrando aspectos advindos de estudos teóricos. 

Em particular sobraram dois restos enigmáticos: um deles foi resolvido em 2015, quando do preparo de uma aula sobre este caso clínico, na qual me detive sobre dois fragmentos clínicos, um dois quais foi apresentado na cena #3. Este, como esperamos demonstrar a seguir, deve ter sido resolvido durante a escrita deste texto, envolvendo uma investigação da natureza psíquica do referido círculo gelado, descrito na cena em questão. 

“Por conta de ter sido apresentada a essa ferocidade de ódio fundamentalista à psicanálise, meu interesse por ela associou-se desde muito cedo a um segundo interesse: investigar motivações e constituição destes aspectos extremistas do pensamento que podem habitar alguém que se pretende defensor da ciência”

Mantenho o estilo de relato em primeira pessoa trazendo os bastidores do encontro do livro que voltou a ser lido para o preparo deste texto. Em 2019, na última visita anual à livraria Letra viva, deparei-me com o livro El Inconsciente y la ciencia (Dorey, Castoriadis, Enriquez, Thom, Ménéchal, Fridman, Berquez & Green, 1993). O interesse por este assunto foi motivado desde meus tempos de residente do IPQ, quando a psicanálise, que eu já amava, sofria ferozes ataques, mais do que questionamentos científicos propriamente ditos, por parte de vários professores destacados dessa instituição. O ataque era feito pela forma debochada, invalidante, sobre o estatuto e natureza nebulosa e inverossímil do inconsciente, tal como concebido por Freud, desconsiderando sumariamente qualquer contribuição da psicanálise para conceber a constituição e desenvolvimento psíquicos, na saúde e na doença. Por conta de ter sido apresentada a essa ferocidade de ódio fundamentalista à psicanálise, meu interesse por ela associou-se desde muito cedo a um segundo interesse: investigar motivações e constituição destes aspectos extremistas do pensamento que podem habitar alguém que se pretende defensor da ciência! A importância da psicanálise para recolocar a razão numa posição nem absoluta nem central ao ser humano está mais do que reconhecida, podendo descentrar o elemento racional da sua supremacia absoluta sobre o que o ser humano pode ser. Por este interesse subsidiário, nascido de minha formação médica, me interesso quando me deparo com livros que debatem e apuram questões epistemológicas envolvidas nas tensões que encontramos nos encontros e desencontros entre vários campos e disciplinas ditos científicos envolvidos nas questões de saúde e doença mentais. 

Ainda sem saber muito bem por onde investigar a questão do círculo gelado, veio associativamente à lembrança a leitura inicial feita em 2019 do texto do matemático René Thom (1993) Sobre saliencia y pregnancia. Relendo-o podemos dizer que ele trata – nas palavras do autor – da tentativa de “elaborar o que seria uma conceitualização arquetípica dos mecanismos fundamentais da linguagem e, portanto, do pensamento humano” (Thom, 1993, p. 81). Mais adiante, menciona o que seria o núcleo constitutivo do psiquismo humano, esclarecendo que os conceitos de saliência e pregnância se relacionam com a consciência que temos do espaço que nos rodeia e do tempo. (Thom, 1993, p. 81- 82). A leitura recente do capítulo seguinte do mesmo livro, Las estatuas de ceniza del deseo, do psicanalista Ménéchal (1993) agregou uma aproximação psicanalítica ao texto de Thom. Não caberia, para o escopo daquilo a que me propus neste texto, esmiuçar a contribuição de Ménéchal, tarefa para a qual nem estaria suficientemente preparada. Posso adiantar, em respeito ao leitor que chegou até aqui, que Ménéchal aproxima e mescla aspectos representacionais a partir dos afetos e fantasias atualizados na relação de transferência (e contratransferência) com a proposta da teorização de Thom de generalizar a operação de investimento de uma saliência por uma pregnância como vias possíveis para uma semiótica geral. A presença do investimento transferencial (e eu acrescentaria, contratransferencial também), que se faz com o analista comprometido com a busca da cura, interlaça e inverte esta operação levando em conta a posição que cada um ocupa nesta relação. 

Algo desta leitura abriu um espaço inicial de possível entrelace entre o relatado e alguma elucidação do que poderia ter acontecido. O encontro de uma última referência acabou por oferecer um aporte teórico para uma possível elucidação do que permaneceu como um elemento, talvez saliente, mas certamente enigmático residual do caso clínico: a forma turbulenta que gerou um relato seguro e duradouro das dúvidas do que poderia ter acontecido nesta cena. Trata-se do texto Introdução ao processual. Atemporalidade e simultaneidade psíquicas. Neste capítulo, os autores fazem um estudo sobre o lugar marginal da percepção frente à teoria psicanalítica, centrada na representação. “Se a realidade da percepção não aparece na ontogênese, a filogênese se encarrega disso” (Botella & Botella, 2002, p. 179).

“Esta instabilidade no registro mnemônico, reflexo da turbulência, acompanhou e tornou-se pista do acionamento de uma dissociação, seguida de uma alteração alucinatória-like da percepção: a sensação física em minhas costas, do tato imaginariamente gelado de uma arma – o círculo gelado.”

A emergência da turbulência frente à menção da arma interferiu no estatuto discursivo, inscrevendo na memória um micro apagão, interferindo momentaneamente no registro de percepção externa, do outro, sequestrando a psicoterapeuta para uma auto-observação de sua própria consciência. Este foi um tipo muito singular de experiência subjetiva, no contexto de uma psicoterapia, em parte similar àquele concebido e estudado por Daniel Stern, em seu livro O momento presente na psicoterapia e na vida cotidiana (Stern, 2007). Esta instabilidade no registro mnemônico, reflexo da turbulência, acompanhou e tornou-se pista do acionamento de uma dissociação, seguida de uma alteração alucinatória-like12 da percepção: a sensação física em minhas costas, do tato imaginariamente gelado de uma arma – o círculo gelado. No momento seguinte, imaginei uma cena incômoda, eu ajoelhada implorando pela minha vida, e pensei, é preciso que eu faça-diga alguma coisa que me retire desta posição de fraqueza, pois isso pode fragilizar ainda mais a contenção do acting out, potencialmente percebido. Esta operação defensiva tornou possível colocar numa sensação corporal encenada imaginariamente o exsudato de um medo contido, inconsciente até então. Este medo que emergiu era resultante da natureza de uma relação terapêutica com uma paciente que afirmava ter em seu curriculum de trabalho ilegal inúmeras mortes, sobre as quais nunca conversamos. Esta mesma dissociação-alucinação-encenação imaginária do medo assegurou que parte de mim continuasse elaborando o que estava se passando em mim e conosco, buscando alguma intervenção interpretação13 para o que estávamos vivendo. A interpretação da enunciação contida neste gesto transferencial, apresenta uma busca de Sherazade de alguma “prova de realidade”, de que aquilo que ela experimentava comigo – ser aceita, na forma que ela encontrara para “fazer a psicoterapia”, me contando suas histórias inventadas – no contexto das sessões, era extensivo ao “mundo lá fora”. E ela também precisava descobrir quais os limites desta relação, se eu me relacionava apenas com “uma paciente” ou com a pessoa dela. Ela queria saber se aquilo sobreviveria além das quatro paredes do consultório. 

Debruçando-me uma vez mais sobre esse caso, 35 anos depois, entendo que ele não deixou de manter um potencial de aprendizado, de manter-se vivo. Percebo, ainda, que o medo do potencial disruptivo de uma pessoa com seu histórico impediu-me, à época, de continuar a pensar e observar os acontecimentos da sessão numa chave interpretativa mais benigna. Afinal, a paciente estava muitíssimo agitada, como eu nunca presenciara antes. Hoje, longe do fronte transferencial-contratransferencial, cogito uma interpretação benigna da menção da existência da arma. Visto que, na condição de procurada pela polícia, nosso passeio poderia implicar em um risco para ela (e, por tabela, para mim), a presença da arma poderia assegurar minha proteção neste passeio hipotético! Afinal, para ela, a presença da arma representava proteção frente à necessidade de assegurar sua fuga diante de um eventual ataque! O susto com a menção da arma associada ao intenso nervosismo da paciente e, repito, nunca presente antes nas sessões, deformou minha capacidade de fazer esta simples reflexão e se concretizou, cindidamente, na alucinação táctil do círculo gelado de uma arma já apontada e tocando minhas costas. Esta presença sensorial alucinatória – lembrete-alarme soando no silêncio do tempo congelado – permitiu o controle das emoções frente ao sequestro imaginado. Esta dissociação permitiu que alguma confiança na segurança do enquadre fosse recuperada, visto que o enquadre ainda não fora quebrado de fato. Também, aos poucos, fui me recuperando do susto frente ao mal-entendido desencadeado pela captação dos afetos disruptivos na paciente, que parecia acreditar que mesmo o mero falar sobre um passeio no quarteirão poderia significar uma ameaça de ruptura da relação. O pavor da paciente de ser rejeitada contaminou o delicado equilíbrio da confiança na relação e condução correta da postura da terapeuta (relembro que atuando há apenas um ano e meio como psiquiatra formada), frente a sua situação de foragida. Vale ressaltar que dado o intenso trabalho psíquico para conter aquilo que se associa à história transgressiva e de violência da paciente, apenas sugerida nas entrelinhas, não foi possível incluir na equação da elaboração teórico-clínica que se seguiu os componentes de impulsos e fantasias sexuais inconscientes e aquelas conscientes e silenciadas ativamente, que certamente habitaram o mundo interno da paciente. Pela limitação mencionada, não foram objeto de trabalho com a paciente14, nesta situação ou na relação transferencial ao longo da psicoterapia, qualquer interpretação na ou da transferência que envolvesse tal componente sexual.

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O Barato encontra sua maior força nas ressonâncias que se formam do encontro e da riqueza que nossos professores e amigos trazem para o curso, compartilhando conosco um espírito inquieto e criativo e aceitando nos encontrar com alegria neste espaço intermediário. Desta forma, a experiência colhida neste encontro coletivo – entre professores e alunos – faz com que o todo do Barato seja maior do que suas partes. Creio poder afirmar que o mote sempre presente vem de nossos pacientes, cujas histórias de vida, antes e durante o tratamento, têm nos permitido encontrar e reafirmar um sentido para nossa prática, contribuindo para ampliar, desenvolver e enriquecer a vida rumo à autonomia. Mantendo a aposta do valor das cenas e causos, narrativas em pequenos formatos, escolhi uma cena para finalizar o texto. 

“Creio poder afirmar que o mote sempre presente vem de nossos pacientes, cujas histórias de vida, antes e durante o tratamento, têm nos permitido encontrar e reafirmar um sentido para nossa prática, contribuindo para ampliar, desenvolver e enriquecer a vida rumo à autonomia.”

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Cena # 9: A mãe social: lição de vida. Pastoral do Menor, 1994

Numa tarde, nas imediações da Praça da Sé, estou em sala com uma turma de alunos escolhidos pela Pastoral do Menor/Região Sé para uma capacitação para educadores de rua na prevenção ao uso indevido de drogas. Nestas aulas já tinha acumulado uma certa experiência que me permitia estabilizar a forma em que mesclava a transmissão de conhecimentos já consolidados com a elaboração conjunta, grupalmente participativa. Assim, iam sendo mastigados e digeridos coletivamente os conceitos e exemplos trazidos, de maneira a favorecer a absorção daquilo que é necessário para refletir sobre as próprias experiências e sustentar as ações futuras capazes de assimilar e ampliar a promoção de acolhimento no exercício de suas atividades. A memória desta cena é eminentemente afetiva: algo de assombro frente à sabedoria, na condução de relações de cuidado de uma mulher madura que se apresentou como Mãe Social. As falas e conversa específica travadas não sobreviveram na memória. Algo foi impactante o suficiente para permanecer em mim em forma de admiração e respeito por essa Mãe social. Discutíamos sobre algum tópico apresentado em uma das aulas “Drogas: conceitos básicos, classificação, efeitos”, “Drogas: condutas clínicas e aconselhamento de usuários/dependentes de drogas”. Esta admiração foi se formando a partir de considerações trazidas por ela que elaboravam de uma maneira rebuscada algum aspecto sensível da relação com usuários de drogas. Chamou-me atenção a qualidade e segurança de suas considerações e pedi que ela se apresentasse melhor e busquei entender em que consistia seu trabalho de mãe social. Minha surpresa veio do contraste entre sua escolaridade mínima – ela se apresentava como semialfabetizada – e uma acurácia de raciocínio sobre aspectos conceituais e sensíveis que se relacionavam com o significado que a droga pode ter para o tipo de relação que o usuário estabelece com ela. Pela natureza das conversas, que se pautavam na experiência cotidiana dos educadores que formavam a maior parte da turma, certamente ela também trouxe exemplos concretos do manejo que acontecia no dia a dia da casa onde ela e o marido cuidavam de crianças e adolescentes órfãos ou afastados de familiares incapacitados de se responsabilizarem – ao menos temporariamente – pela sua criação e cuidado. Aquilo que considerei como sendo sua alta capacidade de elaboração, demonstrando um grande saber da vida prática, não fora obtida por meio do ensino formal. O resultado é que a qualidade humana que sustentava seu trabalho era de uma ordem que transcendia, ou melhor, prescindia do que se aprende na escola. Suas raízes sociais e étnicas certamente haviam sido valorizadas e buriladas na formação que se deu ao longo de sua participação em coletivos de ativismo social. Empoderamento e autoestima não se ensina numa escola comum, centrada na transmissão do conteúdo das disciplinas, sem atenção para formas participativas no processo ensino-aprendizagem.  Só posso reconstruir de forma genérica que o que manteve viva na memória esta passagem com esta Mãe social deve ter sido a narrativa sobre seu trabalho, com uma qualidade que atestava que sua força advinha da organicidade de sua experiência, cuja verdade e espontaneidade me emocionaram profundamente. 
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Comentário: Décadas depois desta cena, enquanto escrevia sobre ela, fiz a seguinte associação: esta mãe social produziu em mim um sentimento similar de respeito e consideração àquele que senti ao ler e ‘conviver’ durante a leitura com algumas das personagens femininas do Torto Arado. Nutri pela Mãe social o que experimentei pelas personagens e clima deste livro. Um misto de admiração e carinho pelo que intuí ser a capacidade resiliente, sobretudo da narradora principal do livro, de lutar e preservar a dignidade no trato das questões que envolvem o cuidado de terceiros. O mesmo sentimento me produziu a Mãe social; no seu caso com crianças e adolescentes sob seus cuidados. Ela parecia transparecer a capacidade de não se deformar defensivamente, como tão frequentemente experimentamos ou vemos acontecer entre pessoas de classe média, quando testemunhamos as enormes adversidades inscritas na apresentação das pessoas que estão em situação de alta vulnerabilidade social. Sua capacidade argumentativa frente a questões que repercutem da clínica de AD, sem a presença da educação formal no seu histórico, produziu um dos momentos de grande aprendizado em minha vida pessoal e profissional: uma lição de humildade para a médica da USP, frente ao que considerei à época a grandiosidade desta mulher.


1 Agradeço pela leitura atenta e generosa e comentários: da amiga enfermeira, livre-docente da EEUSP, Cassia Baldini Soares, com sua trajetória acadêmica em Saúde Coletiva voltada à educação e formação de profissionais de saúde pública, adolescência e AD; de Joao Paulo Ayub, psicanalista e cientista social de quem veio o encorajamento para a escrita em primeira pessoa, mantendo um tom memorialista; de Márcia de Mello Franco, por trazer a apreensão de uma psicanalista com experiência em formação psicanalítica e clínica pública e privada em AD.
2 Este artigo foi baseado no trabalho de minha autoria “Estudo de caso: O Barato no divã, relato de uma experiência”. apresentado no Seminário ABRAMD educação, no 8º Congresso Internacional da ABRAMD. Por Uma Política de Drogas, Democrática, Inclusiva e Diversa, Recife/online, em 12 /11/2021.
3 “Grassroots and Outreach Prevention Strategies” – State University of New York – USA- Boston, Chicago, New York, Washington, de 26 de junho, a 24 de julho, 1994. (tradução livre: Fundamentos e estratégias de prevenção e busca ativa).
4 “Treinamento para multiplicadores em prevenção ao uso indevido de drogas e aids”. 16hs, total de 5 turmas, março a dezembro; ao longo do ano de 1994.
5 Termo da gíria que caiu em desuso e se referia a posto de comando do tráfico, em algum lugar da hierarquia desta rede.
6 Além dos relatos pontuais em aulas ao longo destes aos, dois momentos de maior reflexão sobre o caso: um primeiro momento, numa aula ministrada em 2015, onde fiz um primeiro exame mais detalhado deste caso; um segundo momento, agora, no preparo deste artigo desde final de 2021.
7 ESPOIR GOUTTE D’OR.  Esta associação, hoje EGO-AURORE, localiza-se no 18º arrondissement, Goutte D’Or, e publica há algumas décadas o jornal Alter EGO, Le Journal, Marie de Paris, Aurore, #104, Rentrée, 2021.
8 Decreto n. 34.074, de 29 de outubro de 1991. Institui o Programa Permanente de Prevenção ao Uso Indevido de Drogas e dá providências correlatas. Recuperado de: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1991/decreto-34074 29.10.1991.html
9 O tema grupo focal, como instrumento de avaliação, foi objeto de uma comunicação coordenada, no V Congresso de Saúde Coletiva (agosto de 1997), sob o título “Uso de grupo focal como instrumento de avaliação”, de autoria de Soares C.B., Reale D. e Brites C.M.  
10  O barato no divã: a clínica em contexto, ministrado no 1º semestre (https://sedes.org.br/site/cursos-sedes/codigo-8435/]; O Barato no divã: especificidades da clínica ampliada, ministrado no 2º semestre, https://sedes.org.br/site/cursos/]
11  Os cursos podem ser encontrados no website do projeto: https://www.obaratonodiva.com.br/
12  Para a psicopatologia psicanalítica esta distinção entre alucinação e pseudo-alucinação não é feita. Dentro da psicopatologia geral, estudada em psiquiatria, isto seria uma pseudo-alucinação, visto que a crítica sobre a natureza imaginária da sensação real estava presente.
13 À época em que atendi esta paciente, inicial de minha formação, estava em vias de completar minha primeira análise e iniciar a segunda com um analista didata da SBPSP, Mário Lúcio Alvez Batista. Também já havia iniciado meus estudos teórico-clínicos, acompanhando seus seminários quinzenais, entre 1988-90, com outro analista didata Isaías Melsohn, da SBPSP. Para o leitor interessado em familiarizar-se com o pensamento teórico-clínico original de Isaías, além de artigos publicados em revistas de psicanálise, recomendo a leitura dos livros: Melshon, I. Psicanálise em nova chave. São Paulo, Perspectiva, 2001; Sister, B. M; Taffarel, M. Isaías Melsohn. A psicanálise e a vida. Setenta anos de histórias paulistanas e a formação de um pensamento renovador na psicanálise. São Paulo, Escuta, 1996.
14 É curioso que, apesar de ter supervisionado algumas vezes este caso com Olievenstein e Isaías, nenhum dos dois trouxe à baila aspectos relacionados a fantasias ou impulsos sexuais. Talvez a pregnância do impacto silenciador destes aspectos presentes na paciente e na analista tenham sido de tal monta que tenham contaminado e distorcido a formulação de sua presença. Ou talvez, tenha feito falta ter incluído uma supervisão com um analista freudiano ou pós-freudiano.


REFERÊNCIAS

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Diva Reale é membro da ABRAMD Clínica, Psiquiatra pela Universidade de São Paulo (USP), psicanalista; Mestre em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM/USP) e Estagiária do Hospital Marmmotan, em Paris. Coordenou e fundou alguns grupos de estudos e atenção aos dependentes de AD: grupo de estudos sobre farmacodependência [GREF, 82-87, no IPQ-HC/FMUSP; o Projeto Prevenção ao Uso Indevido de Drogas e Aids (PPUID-Aids/ERSA-2, 91-94). Concebeu e coordena os Cursos do “O Barato no Divã” no Instituto Sedes Sapientiae e de forma Independente [obaratonodiva.com.br];

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