Trainspotting 2 – Um antídoto para as novelas de “fundo do poço”

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Por Rodrigo Alencar
Introdução

É preciso ter cuidado com a novela “fundo do poço” sobre as drogas. Essa novela, contada em comunhão entre campanhas antidrogas e usuários arrependidos, tem, na culpa, o hedonismo que habita o seu avesso, operando como uma espécie de força motriz a alternância na polaridade: culpa e prazer. Ao dizer o quão baixo se vai para poder usar, escamoteia-se uma propaganda que versa sobre ultrapassar limites, sobre como o corpo perece e só a moral salva. O discurso do arrependido é propaganda antidrogas e pró-drogas ao mesmo tempo, pois ressignifica o mundo de acordo com o seu referente maior: a droga.

O filme Trainspotting (Boyle, 1996) contém a novela “fundo do poço”, mas não se deixa prender ao clichê. O final apresenta Renton1, que mesmo após ter parado de usar, toma um pico para avaliar a qualidade da mercadoria que vende e foge com o dinheiro da venda de drogas enquanto trai seus amigos.

A qualidade narrativa se destaca, e muito, de filmes como “Réquiem para um sonho” (Aronofsky, 2000), que fazem do uso e da dependência química uma armadilha superegóica, com mulheres se prostituindo e homens sendo mutilados e encarcerados. Já é amplamente conhecido que campanhas feitas para horrorizar possíveis usuários costumam ter o seu efeito contrário. Isso por diversos motivos, um deles é que o mundo, diferente de campanhas2 moralistas, é diverso e contraditório. Nele há pessoas que usam drogas e trabalham, casam-se, têm filhos e ganham dinheiro. Outras que têm problemas com o uso de drogas, mas conseguem lidar com esses problemas, tornando-se abstinentes, ou mesmo usuários recreativos. Há, também, aqueles que são representados e ganham holofotes para as campanhas anti-drogas, os usuários que sucumbem sob o uso, e morrem sob consequências que envolvem a dependência e a vulnerabilidade social.

“Já é amplamente conhecido que campanhas feitas para horrorizar possíveis usuários costumam ter o seu efeito contrário. Isso por diversos motivos, um deles é que o mundo, diferente de campanhas moralistas, é diverso e contraditório”

O problema maior se articula entre degradação social e drogas, os dois podem ter correlação, mas não implicam causalidade. Isso, que chamamos de degradação social, costuma ser composta por diversos fatores, como sofrimento psíquico não tratado, pobreza e vulnerabilidades como falta de segurança alimentar e moradia, violência de gênero, falta de perspectivas decorrente de dificuldade de acesso à educação e trabalho, dentre tantos outros fatores possíveis.

Os desabamentos que ocorrem em meio às tréguas

O uso de drogas pode se instalar em crises deflagradas, ou subjacentes, crises que não foram identificadas por quem a vive, mas que se apresentarão mais adiante. Um dos exemplos que podemos citar, é o escritor Scott Fitzgerald. Em sua crônica, “O colapso”, temos uma citação com uma precisão arrebatadora:

“(…)para voltar a minha tese de que a vida tem uma ofensiva variada, a sensação de desabamento não foi simultânea a um golpe, mas a uma trégua”

(Fitzgerald, 1936 / 2007, p. 72)

As crises ruidosas acionam alertas e mobilizam defesas, as subjacentes corroem o que poderia parecer felicidade genuína, são incompreendidas socialmente e tomam o sujeito sem que ele possa contar com as defesas da consciência. Fitzgerald escreveu essa crônica depois de fazer sucesso, obter reconhecimento, e não conseguir emplacar outro livro como o fizera anteriormente. As contas apertavam, o casamento ia mal e a vida começava a trair as promessas feitas na juventude. É dessa forma que muitos rockstars sucumbiram e é, também, dessa forma que figuras admiradas e reconhecidas pelo próprio trabalho, que parecem ter uma vida plena e interessante, sucumbem e ainda irão sucumbir3.

Passando ao objeto deste texto, o filme Trainspotting 2 (Boyle, 2017) apresenta Mark Renton fazendo o papel do adulto bem-sucedido, mas Trainspotting não é sobre sonhos realizados e pessoas de sucesso, mas sim sobre sonhos inviáveis. E antes da metade do filme descobrimos que o fracasso e a falta de perspectivas é o denominador comum dos personagens. É também aqui que se encontra a joia do segundo filme. A falta de perspectivas é um problema para o início da vida adulta. Para adultos de meia idade, que se avizinham da velhice, a falta de perspectivas se traduz em depressão (como apresentada por Spud) ou mania, em um auto-engano frenético que não permite detectar a falsa promessa da próxima grande realização (no caso de Simon). O filme apresenta bem como o passar do tempo demonstra uma constatação nada banal acerca das drogas: elas não tapam o vazio e nem mesmo as tragédias vividas em decorrência do uso irresponsável o fazem. A angústia e a indeterminação acerca dos próprios passos continuam lá.

Impasses e repetições na imagem de um estacionamento de trens abandonados

Trainspotting 2 é sobre um dado que os guardiões da moral antidrogas se recusam a perceber: drogados sobrevivem. Não só sobrevivem, como precisam lidar com a vida e com as drogas, por décadas a fio, encarando dramas monótonos e desoladores. Os monólogos que decorrem do lema antidrogas: “choose life” se erguem como denúncias daquilo que é apresentado como alternativa às drogas. A vida careta é cheia de contradições, situações difíceis e afetos banais, e mesmo assim é uma escolha possível de ser feita e, porventura, se desdobrar em caminhos inesperados.

O que surge de modo mais disruptivo e que de alguma forma atravessa certo cinismo posto na crítica às banalidades sociais é a virada de Spud, que começa a escrever, tocando outros personagens de modo inesperado, como o truculento e intratável Begbie. O pitboy do grupo de junkies trapaceiros de meia idade sucumbe ao ouvir o relato escrito por Spud. O texto que narra as aventuras de juventude do grupo permite uma metaforização de seu sofrimento, abrindo uma saída para o destino de personagens que pareciam estar em um beco sem saída.

É nesse momento que o filme faz uma volta e torce o caminho de seus personagens. Trainspotting é uma gíria britânica para quem fica obcecado com qualquer assunto aleatório, podendo ser um desses assuntos, a droga. No entanto, há um outro uso para essa gíria que diz respeito a quando um usuário está injetando heroína, ou, como dizemos em português, se picando. Por fim, Trainspotting é o nome dado à região na qual estacionam os trens.

O remetimento do afeto é lançado por Spud que lê para Begbie o relato de uma memória de quando estavam usando heroína na estação de trem e um morador de rua, alcoolizado, aborda os adolescentes e perguntam se estão se picando (trainspotting), o que o velho alcoolizado não sabe é que Begbie, seu filho, o reconhece. É nesse momento da leitura que as palavras de Spud agem de forma a quebrar um encantamento e, Begbie, resgatando todos os afetos contraditórios acerca de seu próprio pai, liberta a sua família de uma espiral de violência praticada por seu comportamento.

Na trama do filme, os personagens não se redimem de modo mágico, nem deixam de ser quem são. Mas Begbie liberta sua família de seu furor destrutivo e desiste de introduzir seu filho adolescente em seu vício predileto, a violência.

É na postura de Begbie e Simon que podemos reconhecer o motor trágico da história, fazendo contraste com as mulheres, não aprisionadas a fantasia de onipotência tão tipicamente masculina nesses contextos. Enquanto os homens se drogam, ameaçam, chantageiam e se creem grandes, as mulheres se deslocam. E é por esse fio de deslocamento que identificamos tanto Diane, que está presente nos dois filmes, como Veronika, a búlgara que fica como escada de diálogo na maior parte do segundo filme.

“É dessa forma que Trainspotting não faz só metáfora com o uso de drogas. Mas da relação de um grupo de homens que não conseguem se organizar simbolicamente diante da falta de perspectivas de pessoas de sua idade e acabam agindo por meio de cacoetes que respondem aos ditames de uma geração que via na transgressão a maior possibilidade de gozar a vida.”

É dessa forma que Trainspotting não faz só metáfora com o uso de drogas. Mas da relação de um grupo de homens que não conseguem se organizar simbolicamente diante da falta de perspectivas de pessoas de sua idade e acabam agindo por meio de cacoetes que respondem aos ditames de uma geração que via na transgressão a maior possibilidade de gozar a vida. Numa das cenas mais icônicas do primeiro filme, Spud, toma speed, um estimulante que o permite performar numa entrevista de emprego. No entanto, Spud não busca trabalho, mas continuar recebendo o auxílio desemprego do governo, de modo que a assistente social que acompanha sua entrevista precisa ser convencida de que ele realmente quer um trabalho mas não consegue. Ou seja, precisa convencer a assistente social que busca emprego e ao mesmo tempo convencer o empregador de que ele não é uma boa escolha para a vaga. A situação traz um dilema: não há qualquer desejo em participar do esquema que é ofertado pela geração anterior: rotina ordenada entre trabalho, ascensão social e consumo. Porém, também não há engajamento na transformação dessa realidade que é herdada. Ela é cinicamente rejeitada. 

Passados 30 anos, se esvai o sentido, o prazer passa a ser relativizado, mas não há mais a percepção de caminhos possíveis para fazer diferente. Como em um depósito de vagões, os trilhos não oferecem caminhos, apenas trechos curtos que permitem ir e voltar sem que a paisagem se altere. O lugar que parecia muito interessante de ser habitado na juventude, com drogas, músicas e a adrenalina proporcionada por pequenos furtos, se torna um lugar escuro no canto de um mapa do qual as pessoas não se lembram e não se importam. Os jovens drogados arruaceiros que se percebiam agitando uma fria cidade do norte da Europa se percebem como matéria em decomposição, envelhecidos e sem lugar como os antigos vagões que eram guardados nos depósitos em que se drogavam.

A pulsão como trilhamento para as satisfações

O filme se utiliza de um recurso visual forte que envolve aquilo que mais pode nos fascinar na existência e funcionamento de trens: sua velocidade e sua capacidade de transporte. Da mesma forma, a ideia parece ressoar no conteúdo que translada da seringa para a corrente sanguínea do usuário. A ideia de trilhamento também está presente na obra de Freud (1915). Isso se dá, pois, em sua metapsicologia, preconiza-se um circuito por meio do qual a pulsão busque satisfação. Esse circuito envolve diferentes lugares e experiências. Por exemplo: para se viver uma satisfação, é necessário constatar um objeto que falta para que, dessa forma, a insatisfação impulsione em direção à satisfação possível.

Sabemos que é impossível se manter o tempo todo satisfeito. Já o contrário não é verdadeiro. É plenamente possível ficar insatisfeito mesmo acessando o suposto objeto visado e repetir a tentativa sem se dar por satisfeito. É nesse campo que identificamos as compulsões. Não há estafa e, quando ocorre, demora a chegar e pode submeter o corpo à morte.

É então que o filme nos oferece a passagem de um trilho a outro. Assim como no primeiro, em que Renton passa de usuário a comerciante, com o brinde metafórico da cena na qual ele se pica dentro de um trem, temos no segundo filme o deslocamento do trilhamento pulsional de Spud, que muda da heroína para a escrita, e o filme retrata essa escrita surgindo de modo imperativo e compulsivo, como fruição que responde as impossibilidades de Spud, fazendo uma espécie de recapitulação na qual ele encontra uma maneira de resgatar seus anos como usuário pesado de heroína, não como tempo perdido, mas como tempo narrável, transmissível e palpável para seus pares. A consistência de sua escrita é densa a ponto de demover o personagem mais duro e truculento na trama.

A cena de contato entre Spud e Begbie, na qual o primeiro lê seus textos para o segundo, é o momento do filme mais próximo daquilo que poderíamos situar de uma análise. É nela que se materializa um drama em palavras, para que só então possamos nos desvencilhar dele. A cena traz dois elementos fundamentais para pensar a relação de uma atividade com um processo de cura. Não é a escrita em si, que cura. Mas o processo no qual sua leitura permite a constituição de um corpo que afeta o outro. Por isso, é importante destacarmos que seria um equívoco tomar a escrita como resposta terapêutica ao uso de drogas. Não que ela não possa ajudar, mas ela não se faz antídoto por si. A escrita se constitui como antídoto possível da pulsão. Assim como tantas outras formas de produção artística autoral como a música, o teatro ou as atividades de edição e criação audiovisual. Esse tratamento se faz possível não porque o autor, ou paciente, tampona um vazio com seu trabalho ou atividade recreativa, mas porque ele pode contornar outros vazios de modo que pode se deslocar, como um trilho que percorre diferentes túneis que se reconfiguram conforme muda a paisagem do trem.

“[Trainspotting] não nega os impasses, a desesperança e a apatia de uma geração que se percebeu sem perspectivas. Ao levar tudo isso em conta, oferece uma resposta que não é pueril e nem megalomaníaca: na imbricada e crônica falibilidade de seus personagens, a história nos oferece uma saída pulsional. “

É desse modo que Trainspotting, talvez por reproduzir a estratégia do autor dos livros nos quais o filme se baseia, seja um filme que se diferencie de uma estrutura narrativa comum no cinema que aborda as drogas, viciado nas novelas de fundo do poço. Ele não nega os impasses, a desesperança e a apatia de uma geração que se percebeu sem perspectivas. Ao levar tudo isso em conta, oferece uma resposta que não é pueril e nem megalomaníaca: na imbricada e crônica falibilidade de seus personagens, a história nos oferece uma saída pulsional. Saída que podemos encontrar na astúcia da personagem que não está presa ao ressentimento, como Veronika, a búlgara que se desloca, aplicando um golpe nos homens de meia idade que passam todo o tempo se pavoneando, disputando sua atenção e não percebem que é ela quem acessa o dinheiro que eles tanto planejam para conseguir. Dessa forma, Veronika, diferente de Simon e Renton, não se faz vítima do reconhecimento e olhar desses homens. Se organiza e se movimenta justamente na posição da qual eles se perdem: o lugar de objeto de desejo do Outro.

Também de forma interessante e distinta opera Spud, o junkie tagarela, que transporta sua compulsão para a escrita e toca os recantos mais improváveis do passado do grupo. Talvez a grande revelação da sequência. Passa do lugar de usuário de drogas malandro e cômico do primeiro filme, para o lugar daquele que dá consistência ao passado do grupo, oferecendo um solo possível para que outros personagens se desloquem de suas identificações.

Por fim, Trainspotting 2 é um filme com pouquíssimo apelo comercial para a última década. Representa um grupo de homens drogados e machistas de meia idade que destratam e abusam de suas famílias, aplicam golpes com base em uma cultura homofóbica e disputam avidamente a atenção de mulheres 20 anos mais novas. Nada mais distante das narrativas construídas a partir de interesses indexados para consumo das plataformas de streaming. É nesse ponto que está o seu maior valor. A cultura Junkie dos anos noventa, que combinava glamour e lixo com guitarras distorcidas já era denunciada como moribunda no primeiro filme, que apontava para o advento da juventude que se formaria nos anos 2000. Porém, é no segundo filme que encontramos aquilo que pisa fora das telas que alimentam compulsões narcísicas: a persistência na vida como aquilo que insiste em meio à falta de sentido dos sonhos não realizados.


Notas

1– Interpretado por Ewan McGregor
2– Um filme produzido para o cinema e uma campanha antidrogas são produções com propósitos absolutamente distintos, porém, impressiona como o filme de Aronofsky, apesar de dotado de qualidade cinematográfica em edição, trilha e atuação, detém a mesma estrutura das campanhas moralistas que tomaram as TVs do mundo nos idos de 1990 e 2000.
3– Como exemplo mais recente, podemos citar o Chef de cozinha e apresentador de TV Anthony Bourdain.


Bibliografia

Aronofsky, D. (2000) Requiem para um sonho. Europa filmes

Boyle, D. (1996) Trainspotting. Polygram

Boyle, D. (2017) T2 Trainspotting. Tristar Pictures

Fitzgerald, S. (2007) Crack up. Porto Alegre: LP&M Pocket

Freud, S. (1915/2010) Os instintos e seus destinos. São Paulo: Companhia das letras


Rodrigo Alencar é psicanalista e psicólogo, participante do Instituto Vox de Pesquisa em Psicanálise, doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo, mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Autor do livro “A fome da alma: psicanálise, drogas e pulsão na modernidade” (Editora Benjamin, 2018).

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