A mulher, o corpo e as práticas em saúde: Uma análise do tratamento da dependência às drogas pela biopolítica

Katia Varela Gomes 
 

“[…] a vida como objeto político foi de algum modo 

tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema

que tentava controlá-la.”

Michel Foucault. História da Sexualidade: a vontade de saber

INTRODUÇÃO 

A especificidade feminina nas dependências às drogas configura um campo de intenso trabalho na transformação da invisibilidade, que exige a utilização de paradigmas e concepções teóricas próprias. Além disso, requer uma análise crítica, que coloque em evidência as relações de poder e saber na sociedade moderna. Utilizamos a perspectiva da Genealogia do Poder, em que se faz necessário destruir a primazia das origens, das verdades imutáveis, das doutrinas do desenvolvimento e do progresso para revelar o “jogo das vontades”, da sujeição, da dominação e luta (Dreyfus & Rabinow, 2010). Em que medida, o binômio tratamento-cura seriam estratégias de dominação estabelecidas nas práticas de saúde com mulheres dependentes de drogas pela imposição da virtude e da bondade? A lógica do tratamento seriam estratégias de dominação voltadas ao corpo, ao direito reprodutivo, à sexualidade, às experiências de prazer do feminino? Alinha-se a essa problemática uma revisão e ruptura com as práticas tradicionais de cuidado.    

A motivação desse trabalho parte da experiência clínica no tratamento de mulheres dependentes de substâncias psicoativas, no contexto de um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras drogas (CAPS ad) e das discussões de Matriciamento na Atenção Básica, atividade que integra as ações compartilhadas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), considerando os princípios teóricos e éticos da Redução de Danos. Nesse contexto de atuação, percebe-se muita dificuldade para a implantação desse modelo de cuidado e tratamento, e os aspectos que a atravessam estão além dos problemas no processo de trabalho, na construção conjunta e compartilhada de cuidado, mas apoiam-se em demandas e lugares ocupados pelos dispositivos em saúde, a saber, as dimensões de controle dos corpos no propósito da “cura”. Por essa razão, entendemos que o dispositivo de tratamento é um operador de poder, uma estratégia de dominação, de sujeição e normalização da conduta.

Nessa categoria de análise enfocamos mais especificamente as mulheres, sobre as quais se sobrepõem às exigências sociais de docilização e sujeição de corpos, estigmatização e imposição de ideais. Desenvolvi na tese de Doutorado, intitulada Dependência química em mulheres: figurações de um sintoma partilhado (Gomes, 2010), o sofrimento dos lugares sociais impostos à mulher pelo ideário de família burguesa, assim como, analisei a multiplicidade dos sentidos do uso abusivo de substâncias psicoativas: exploração do corpo e da sexualidade; fortalecimento no enfrentamento da violência de gênero; e amortecimento do sofrimento psíquico e social. Nessa mesma linha de análise, pretende-se discutir a dependência como estratégia de vida, não apenas como sintomatologia patológica, pois esse último aspecto aproximaria o tratamento a uma normalização da conduta pela cura, ao invés de uma ressignificação da existência. 

A mulher dependente de drogas sofre os estigmas e discriminação social, associando-se ao uso a falta do cumprimento das tarefas e atribuições domésticas de esposa e mãe. Encontramos como discurso na rede de profissionais: “essas mulheres não deveriam estar aqui pelo uso de drogas, porque não estão em casa, cuidando do marido e filhos?”; “as mulheres em situação de uso de drogas ficam fáceis, fazem qualquer coisa para obter a droga”; “mulheres são mais difíceis de tratar, muitas não querem saber de nada”; “coitados dos filhos dessa mulher”. Além dos discursos, algumas práticas evidenciam violação de direitos e estigmatização desse grupo: encaminhamento ao tratamento de mulheres denunciadas ao Conselho Tutelar por uso de substâncias psicoativas, não necessariamente em estado de dependência e negligência no cuidado com os filhos, mas que vivem em situação de vulnerabilidade social extrema e os sofrimentos psicossociais são decorrentes desse estado; retirada compulsória de guarda dos filhos recém-nascidos de mulheres em situação de rua nas maternidades de muitas cidades brasileiras; políticas públicas voltadas às gestantes, usuárias de drogas e em situação de rua, como se só existissem a partir da gravidez: “antes o governo nem queria saber da minha vida, agora que engravidei passei a existir para eles”, discurso de uma usuária em um grupo de acolhimento para mulheres dependentes de drogas no CAPS ad. 

As reflexões têm como ponto de partida a clínica e para a análise utilizaremos o método genealógico na investigação das relações de poder sobre as práticas na saúde, considerando a hipótese de controle dos corpos pelos dispositivos e de estratégias políticas de controle sobre a vida: gravidez, maternidade, nascimento dos filhos, saúde do corpo biológico e medicalização, como estratégias do “fazer viver”, aspecto desenvolvido pela Biopolítica (Foucault, 2004, 2008).

Em outra dimensão, na extremidade do conceito de biopoder e nos estados de exceção, a Necropolítica, desenvolvido por Achille Mbembe, regulariza o extermínio de uma população considerada ameaça em nome de um “aperfeiçoamento da vida” de outros grupos e classes dominantes. A Necropolítica seria a expressão máxima da soberania, do poder e da capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. São formas de soberania através da destruição material de corpos humanos e populações, pelo direito de matar um inimigo. E de que forma isso é feito? Pela distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de um corte entre eles, o que podemos nomear como racismo (Mbembe, 2018). 

O elemento paradoxal da biopolítica pressupõe que à medida que a vida, sua garantia e aperfeiçoamento compõem as estratégias políticas da governamentalidade, ela é ameaçada por potenciais técnicos e políticos de extermínio. Ou seja, quanto maior a potencialidade da vida de determinados grupos selecionados, maior de forma equivalente a morte de outros igualmente selecionados (Lemke, 2018). 

Portanto, as separações territoriais entre normais e anormais, sadios e doentes, efetuadas pelas instituições asilares estudadas por Foucault, agora encontram o seu cenário nas divisões territoriais das cidades. É o que observamos na “criação” de cracolândias e territórios marginalizados e habitados por usuários de substâncias psicoativas. Como corolário às estratégias do “fazer viver”, identificamos a invisibilidade social e a negligência de ações efetivas a determinados grupos de mulheres dependentes de drogas e em situação de rua, aumentando as situações de risco e vulnerabilidade, como também acompanhamos os processos de estigmatização e desumanização desses grupos vulnerados. Entendemos que as ações de violência praticadas pelas forças policiais e agenciamentos de segurança pública, assim como, a negligência na implementação de políticas públicas específicas para esse grupo revelam as práticas de extermínio dessa população. 

“Aqui propomos um ponto de vista, articulando os corpos invisíveis abjetos às mulheres em uso problemático de drogas. Que modo de existência anunciam esses sujeitos?  “

Gostaríamos de associar ao extermínio dos corpos invisíveis pela Necropolítica, o conceito de abjeção (Butler, 2020). Segundo Butler, a formação de um sujeito requer uma identificação com o fantasma normativo do “sexo”, aspecto que qualifica um corpo no domínio da inteligibilidade cultural. Mas essa identificação efetiva um processo simultâneo de repúdio (abjeção) a outras identificações sexuadas. O abjeto representa zonas “não-vivíveis” e “inabitáveis” da vida social e povoadas por aqueles que não alcançam o estatuto de sujeito. Mas ainda, no desenvolvimento da autora, essa condição “inabitável” é a condição do domínio do sujeito e sua reivindicação por autonomia e vida. Não obstante, os corpos abjetos atacados pela lógica do “deixar morrer” na Necropolítica clamam por uma existência singular, por um modo de vida que provoca uma descontinuidade da normatividade sexual. Aqui propomos um ponto de vista, articulando os corpos invisíveis abjetos às mulheres em uso problemático de drogas. Que modo de existência anunciam esses sujeitos?  

Butler (2020) propõe a tarefa de considerar uma ruptura dos processos identificatórios como “um recurso crítico na luta para rearticular os próprios termos de legitimidade e inteligibilidade simbólicas.” (p. 19). E na persistência de práticas que reforçam a desidentificação, podemos favorecer uma contestação democrática e uma reconceitualização de quais corpos importam. Trata-se de uma articulação da clínica e da política no centro das lutas de poder e existência.    

Portanto, a estruturação deste trabalho segue por essas linhas traçadas, na tentativa de analisar as relações de poder e extermínio de determinadas populações. Espera-se contribuir para outras possibilidades da clínica e cuidado, à medida em que possamos revelar as práticas de sujeição e dominação. 

A Biopolítica em Foucault

Inicialmente, é importante enfatizar a escolha desse referencial teórico. Considera-se que a Biopolítica poderá favorecer elementos de análise sobre o que Foucault nomeou como Governamentalidade e o que entende como possibilidades e limites da ação governamental: “Nunca se governa um Estado, nunca se governa um território, quem é governado são sempre pessoas, homens, indivíduos e coletividades.” (Foucault, 2008, p. 173). Nesse sentido, a finalidade do governo é o bem comum e a salvação de todos, entendido como multiplicação da população para produção de riquezas.

No século XVIII, houve uma mudança da forma de governar, com a utilização da Estatística e da Economia Política como ciências do Estado, desse período em diante se apresentam o problema da população e as formas de governá-la. Doravante, os modelos existentes são considerados restritos e insuficientes: a soberania é considerada um modelo abstrato e rígido e a família de alcance estreito, frágil e inconsistente. 

A população passa a ser caracterizada pelas suas regularidades como número de mortos, número de doentes, número de acidentes e que poderão ser estudadas através de planejamentos estatísticos: “A estatística mostra igualmente que a população comporta efeitos próprios de sua agregação e que esses fenômenos são irredutíveis aos da família” (Foucault, 2008, p. 139). A população compõe a meta final de governo para melhorar a sorte das populações, aumentar suas riquezas, sua duração de vida, sua saúde. Nessa perspectiva a natureza não é domínio autônomo, mas algo que depende da ação governamental. A família integrará um importante elemento no interior da população e apoio fundamental para governar, mas não mais como modelo, e sim como instrumento privilegiado do governo das populações. 

Contudo, por que essa mudança no percurso teórico de Foucault nos interessa? Qual a contribuição às dependências de drogas em mulheres? Exatamente pela inclusão de outra forma de governar os “vivos”, não apenas por dispositivos disciplinares, mas por intervenções sobre a vida e os corpos, ou seja, sobre os modos de subjetivação. 

Os processos de subjetivação é um tema de fundamental relevância para Foucault, levando em conta três modos de subjetivação/objetivação do sujeito. O primeiro considera como o sujeito ocupa determinadas posições no estatuto de investigação científica; o segundo, o sujeito é dividido em classificações – o louco/enfermo/criminoso e o saudável/indivíduo bom. E o terceiro modo configura o sujeito moral que instaura o sistema de valores, das regras e das proibições. Foucault denomina modos de subjetivação a estas formas de atividade sobre si mesmo: as formas de relação consigo mesmo; as técnicas, os procedimentos e os exercícios pelos quais o sujeito se constitui como objeto de conhecimento; e as práticas que permitem ao sujeito transformar seu próprio ser (Castro, 2016, p. 407-408).   Logo, pensar o sujeito é refletir sobre o conjunto de práticas que o constitui.  

Aqui, portanto, nos interessa problematizar o fazer científico como produção de uma determinada relação de conhecimento e de poder sobre a mulher e, mais especificamente, sobre a mulher dependente de drogas. E ainda, quais classificações recaem sobre esse grupo, demarcando modos de vida sadios e enfermos. Por último, problematizar as práticas em saúde na configuração dos modos de subjetivação. 

Outro ponto importante a ser considerado nessa discussão é a perspectiva da biopolítica, que difere da atuação sobre leis disciplinares. Nos dispositivos disciplinares existem divisões hierárquicas para a distinção entre o adequado e o inadequado, o normal e o anormal. Nessa outra perspectiva, há uma operação por um modelo otimizado, por técnicas e comportamentos para ajustar os indivíduos a essas orientações e para a elas adaptá-los: a norma, obtida através de uma “média ótima” dentro de uma margem de variação estatística e probabilística (Lemke, 2018). As intervenções não se restringem aos corpos individuais como percebemos nos dispositivos disciplinares, mas a interposição nas “curvas” e médias populacionais. Intimamente relacionados aos conceitos liberais de autonomia e liberdade, prevalecem as ações para a autopreservação e autorregulação. Por consequência, o corpo feminino torna-se objeto das ações do governo para a procriação e desenvolvimento:

[…] os mecanismos do poder se dirigem ao corpo, à vida, ao que a faz proliferar, ao que reforça a espécie, seu vigor, sua capacidade de dominar, ou sua aptidão para ser utilizada. Saúde, progenitura, raça, futuro da espécie, vitalidade do corpo social, o poder fala da sexualidade e para a sexualidade; quanto a esta, não é marca ou símbolo, é objeto e alvo. (Foucault,1985, p. 138, grifo do autor)

Não obstante, as estratégias biopolíticas que estendem o poder aos processos da vida e sua regulação provocam resistências, com reivindicações e demanda de reconhecimento em nome do corpo e da vida. A expansão e a intensificação do controle sobre a vida a torna concomitante alvo das lutas sociais. O disciplinamento dos corpos e a regulação dos fenômenos populacionais fundam novas formas de lutas políticas, que não invocam os direitos velhos e esquecidos, mas reivindicam uma nova categoria de direitos: o direito à vida, ao corpo, à saúde, à sexualidade, à satisfação de necessidades (Lemke, 2018). Em que medida poderíamos associar o uso de substâncias psicoativas como resistência e reivindicação de direitos pelas mulheres? Reivindicação ao corpo e a exploração de suas sensações estimuladas pelas drogas, à liberdade, à sexualidade e aos prazeres? Resistência e luta contra o disciplinamento dos corpos femininos e uma demanda por reconhecimento? São questões que gostaríamos de suscitar…

Na esfera da resistência, ao lado das lutas contra a dominação política, social ou religiosa e das lutas contra a exploração econômica, Foucault (Lemke, 2018) desenvolve a ideia da emergência de um novo campo de disputas: lutas contra formas de subjetivação. Lutas que consistem em ações contra “o governo da individualização”, contra a adaptação a normas sociais legitimadas cientificamente e universais como base aos modelos corporais, às relações de gênero e às formas de vida. Mas, antes de caminharmos para as formas de resistência, que não serão enfocadas nesse trabalho, ainda que se procure abrir caminhos para isso, enfatizaremos as formas de subjetivação pela normalização.

A norma ou a normalização da conduta é diferente do modelo disciplinar, ainda que sejam complementares, conceito desenvolvido por Foucault (2008). A importância desse conceito contribui para a compreensão do racismo de Estado, da eugenia e da Necropolítica, sendo essa última sua variação e representação extrema: 

Nós nos convertemos em uma sociedade essencialmente articulada sobre a norma. O que implica outro sistema de vigilância, de controle. Uma visibilidade incessante, uma classificação permanente dos indivíduos, uma hierarquização, uma qualificação, o estabelecimento de limites, uma exigência de diagnóstico. A norma converte-se no critério de divisão dos indivíduos. Desde o momento em que é uma sociedade da norma a que está se constituindo, a medicina, posto que ela é a ciência por excelência do normal e do patológico, será a ciência régia. (Foucault, 1994 apud Castro, 2016, p. 310).  

Para o desenvolvimento das concepções de norma utilizaremos a compreensão sobre conduta e poder pastoral. Ressaltamos que o poder para Foucault, em sua forma moderna, se exerce pelo domínio da norma, isso significa dizer que não se reprime simplesmente uma individualidade, através de dispositivos disciplinares, complementa-se ao controle disciplinar as variações e interferências nas estatísticas epidemiológicas, principal estratégia da biopolítica. Disciplina e Biopolítica são os eixos que conformam o biopoder. A norma, a partir da valorização das condutas, impõe uma conformidade que se deve alcançar na tentativa de uma homogeneização (Castro, 2016, p. 309-310). A noção de conduta torna-se central na compreensão do autor, a partir do poder pastoral. 

Foucault utiliza, em seus elementos de análise, as raízes na Antiguidade grega e judaico-cristã, fazendo oposição entre o pastor e o político. O modelo político dos gregos exerce seu poder sobre um território, com leis que devem perdurar após o seu desaparecimento. Já o modelo pastoral no judaico-cristianismo exerce seu poder sobre um rebanho, sobre uma multiplicidade em movimento. O poder pastoral é fundamentalmente um poder benfazejo, definido pelo bem-fazer, ele não tem outra razão de ser senão fazer o bem, porque o objeto essencial para o poder pastoral é a salvação do rebanho (Castro, 2016; Foucault, 2008). 

A forma que o poder pastoral adquire não é inicialmente a manifestação da sua força e da sua superioridade. Ele se manifesta, a princípio, por seu zelo, sua dedicação, se configura como um poder individualizante, que guia para um objetivo: encarregar-se da alma dos indivíduos, na medida em que implica numa intervenção permanente na conduta cotidiana, na gestão das vidas. Deste modo, não tem por função fazer mal aos inimigos; sua principal função é fazer o bem em relação àqueles de que cuida. Fazer o bem no sentido mais material do termo significa alimentá-lo, garantir sua subsistência, oferecer-lhe um pasto, conduzi-lo às fontes, permitir-lhe beber, encontrar boas pradarias (Foucault, 2008). 

Portanto, o poder pastoral é um governo dos vivos e o biopoder, sob este aspecto, estará muito mais próximo do poder pastoral do que da soberania. Foucault analisa como o pastorado dispersou-se e adquiriu a dimensão da governamentalidade, através de um tipo de poder bem específico que tem por objeto a conduta dos homens. Poder este entendido como o ato que envolve conduzir ou como a pessoa se conduz; como se deixa conduzir; como é conduzida e como ela se comporta. Sobre a especificidade do poder pastoral, seus princípios se sustentam em três elementos: a economia da salvação, da obediência e da verdade. A obediência é permanente, contínua e infinita de um homem ao outro, exige uma renúncia à vontade e uma extensão da conduta ao mundo. E a verdade é transmitida como dogma. Estendeu-se através do saber, das instituições e das práticas médicas.

Nessa dimensão, o poder pastoral foi contra todo tipo de desordem, efetivando-se uma correlação entre a conduta e a contraconduta¹, sendo essa última qualificada como mal, o mal absoluto. A contraconduta é analisada por Foucault (2008) como resistências e revoltas, e muitas são relacionadas a mulheres, no estatuto na sociedade, na sociedade civil ou na sociedade religiosa. Em síntese, a contraconduta questionava: Por quem aceitamos ser conduzidos? Como queremos ser conduzidos? Em direção ao que queremos ser conduzidos? (Foucault, 2008, p. 259). Como bem analisa o autor, a resistência não seria exterior ao poder, mas surge de suas entranhas e relações.

O conceito de contraconduta é profícuo para a análise dos movimentos atuais de resistência às novas modalidades de controle dos sujeitos. Entendem como possibilidades de construir novas formas de se colocar no mundo, novas configurações subjetivas, novas ideias para relacionar-se consigo e com os outros: “é uma tarefa ao mesmo tempo ética e política, individual e coletiva.” (Rago & Pellegrini, 2019, p. 11). 

“O poder pastoral recai sobre as mulheres e seus corpos (não somente, mas principalmente), como única possibilidade de salvação da alma, de saída para o ser humano condenado ao sofrimento”

O poder pastoral recai sobre as mulheres e seus corpos (não somente, mas principalmente), como única possibilidade de salvação da alma, de saída para o ser humano condenado ao sofrimento: “suspeitar de si mesmo, reconhecer-se como pecador e obedecer servilmente fazem parte do mesmo movimento daquele que renuncia a si mesmo e que aceita ser governado pelo outro.” (Rago, 2019, p. 178). Na pastoral cristã, desde Eva, responsável pela queda da humanidade, as mulheres são continuamente associadas ao pecado e à carne, vistas como perigos públicos e citadas como sensuais e pecadoras, demandando maior controle e vigilância pelos homens. 

Por sua vez, a contraconduta expressou-se por grupos através da recusa de medicações; de certas prevenções como a vacinação; recusa de certo tipo de racionalidade médica; e pelas heresias médicas. Sua dimensão essencial é uma recusa, como podemos observar através da reprodução da dissidência antissoviética²:

Não queremos essa salvação, não queremos ser salvos por essa gente e por esses meios. […] Não queremos obedecer a essa gente. Não queremos esse sistema, em que até os que comandam são obrigados a obedecer pelo terror. Não queremos essa pastoral da obediência. Não queremos essa verdade. Não queremos ser pegos nesse sistema de verdade. Não queremos ser pegos nesse sistema de observação, de exame perpétuo que nos julga o tempo todo, nos diz o que somos no fundo de nós mesmos, sadios ou doentes, loucos ou não. (Foucault, 2008, p. 265)

Importante ressaltar aqui a especificidade do método de investigação e análise, Foucault procura escapar de uma padronização ou categorização das formas de resistências, essas deverão ser analisadas como resultante de jogo de forças, em determinado período histórico. Em relação ao poder pastoral, Foucault (2008) analisa cinco formas de contra conduta: ascetismo, comunidades, mística, o acesso às escrituras e crença escatológica. Não vamos nos deter detalhadamente em todas elas, mas uma delas gostaria de enfatizar, a forma mística, porque vai ao encontro das discussões sobre a clínica das dependências às drogas e mais especificamente às mulheres. 

A forma mística na contraconduta é definida pelo autor como uma experiência que, por definição, escapa do poder pastoral, da economia da verdade, da verdade como dogma ao exame do indivíduo. No poder pastoral, a verdade é um segredo descoberto do fundo da alma, em que o outro detém o seu conhecimento. Na forma mística não há verdade a ser descoberta, a não ser pelo próprio ser que se vê a si mesmo: “a alma não se mostra ao outro num exame, por todo um sistema de confissões. A alma, na mística, se vê a si mesma.” (Foucault, 2008, p. 280). Outro aspecto importante a ser enfatizado nessa forma é um desenvolvimento da pessoa, a partir de experiências ambíguas “numa espécie de equívoco, já que o segredo da noite é que ela é uma iluminação” (p. 281). 

Logo, o que queremos marcar com esse desenvolvimento teórico seria uma aproximação das relações de poder pastoral das práticas em saúde na clínica das dependências. Propomos refletir em que medida exercemos a função dos salvadores do rebanho, das ovelhas desgarradas e que precisam ser alinhadas ao grupo? De que forma a recusa de tratamento de mulheres dependentes de drogas expressariam uma contra conduta, uma recusa ao bem fazer pastoral assumidos pelas práticas clínicas atuais?

Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência excessiva e, as coisas, sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade. Eram frouxos os códigos da grosseria, da obscenidade, da decência, se comparados com os do século XIX. Gestos diretos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo nem escândalo, entre os risos dos adultos: os corpos “pavoneavam”. (Foucault, 1985, p. 9, grifo nosso).

Nessa mesma linha de discussão, Birman (2001, 2007) analisa alguns elementos psicanalíticos pela perspectiva da biopolítica, sobre a dúvida entre a prática da cura ou da salvação. O enfrentamento do Mal é analisado por Birman pela regulação da morte e da enfermidade, sendo a medicina científica seu principal representante. Enquanto no poder pastoral temos a perspectiva da salvação, da luta contra a desordem, com o advento da medicina há um deslocamento dessa problemática para a cura, sendo um dos signos constitutivos da modernidade no Ocidente. Essa mudança provocou a regulação de todas as práticas e laços sociais pelo médico: “nada seria estranho e exterior ao olhar do médico, que passou não apenas a interpretar a totalidade dos acontecimentos sociais, mas também a intervir sobre eles” (p. 533). Ora, podemos identificar a proximidade das funções do médico ao pastor, sobre a regulação da conduta em toda a amplitude da vida, não exclusivamente as funções da medicina, mas de todas as áreas e atuações profissionais no campo da saúde e da assistência social. Lembro de uma das mulheres relatando no grupo de acolhimento sobre como ela percebia que a sua casa não tinha mais portas, nem janelas, nem paredes, como se tudo ficasse exposto aos profissionais de saúde que constantemente “vigiavam” a sua vida. 

Na medicina moderna, a clínica configura as intervenções pela medicina individual e a medicina social ocupa-se da racionalidade sanitária transformando as cidades. Essas dimensões são intimamente articuladas e inseparáveis na busca de uma normalização do anormal, de transformação do patológico em sadio, seja por estratégias terapêuticas ou preventivas, sempre pautadas pelo ideário de progresso e da melhoria do gênero humano. Ao aproximar essa análise do trabalho psicanalítico e terapêutico, o autor questiona se a doença mental não seria justamente a rebeldia das paixões contra a regulação do espírito realizada pela razão, se não seriam as paixões desenfreadas no psiquismo contrapondo-se às regulações da razão. Utiliza-se, portanto, o discurso científico da degeneração, em que prevalecia uma oposição entre os registros do espírito, mais elevados e superiores, contra a vitalidade/animalidade das doenças mentais, discurso este que justificava socialmente todas as mazelas e torturas no tratamento dos classificados como degenerados (Birman, 2007). 

“Diferentemente de uma teoria da localização anatômica, a teoria do instinto e da pulsão se inscreveu na matriz teórica de força vital e os postulados sobre pulsão de vida e pulsão de morte lançam a pauta da finitude do sujeito como um limite incontornável. Nessa direção, não é possível propor a cura médica pela perspectiva psicanalítica, mas uma experiência de cura, na qual a pulsão de vida se contrapõe à pulsão de morte”

Importante recuperar esse discurso e período histórico, pois o que encontramos atualmente como justificativa para tratamentos com internações involuntárias seria um retorno à teoria da degeneração? As violações de direitos são justificadas por uma falta de controle racional dos usuários, decorrentes do uso de substâncias psicoativas, os quais não mais responderiam pelos seus atos de forma autônoma. Nas mais recentes iniciativas em políticas públicas na oferta de tratamentos ao uso problemático de drogas, encontramos justificativas para uma lógica que retomaria o controle da razão sobre a animalidade da compulsão ao uso de drogas. Uma concepção que atribui às drogas ilícitas um grande mal de destruição social, tal como as funções do pastorado, exige ações de proteção ao seu rebanho ou na perspectiva da Biopolítica, ações programáticas para melhoria e proteção da espécie.

Não obstante, Birman (2007) apresenta que a psicanálise contribuiu com a crítica à teoria da degeneração através do enunciado do conceito de sexualidade perverso-polimorfa. Diferentemente de uma teoria da localização anatômica, a teoria do instinto e da pulsão se inscreveu na matriz teórica de força vital e os postulados sobre pulsão de vida e pulsão de morte lançam a pauta da finitude do sujeito como um limite incontornável. Nessa direção, não é possível propor a cura médica pela perspectiva psicanalítica, mas uma experiência de cura, na qual a pulsão de vida se contrapõe à pulsão de morte, diverso de uma procura pela homeostase e pela normatividade do sexual. Mas o risco de sucumbir à sedução da salvação e da normalização estaria sempre presente:

[…] a normalização se coloca para o analista como uma tentação sempre possível, para que possa assim suspender a conflagração em curso. Poder suportar agora a presença efetiva da guerra, sem recair na sedução fácil da normalização constitui, enfim, o desafio maior da aventura psicanalítica, e alguns certamente sucumbem nas bordas trágicas desse fio da navalha. (Birman, 2007, p. 546).

 Como já apresentamos, a medicina e as políticas de saúde e saúde mental, através de suas práticas, efetivam uma divisão classificatória dos grupos e ações de normalização da conduta. As divisões classificatórias contribuem para as práticas racistas e eugênicas, para um “aprimoramento das raças”, em nome de um progresso e evolução da espécie. Foucault (1985) analisa que a partir do século XIX, as guerras foram mais sangrentas com maior número de populações exterminadas: “o poder de expor uma população à morte geral é o inverso do poder de garantir à outra sua permanência em vida” (p. 129). É a lógica do princípio “poder matar para poder viver” ou do direito de matar, desenvolvidos pela Necropolítica (Mbembe, 2018).

Segundo Mbembe (2018), o conceito de biopoder explora uma relação com as noções de soberania e o estado de exceção. As teorias normativas de democracia produziram normas gerais para homens e mulheres livres, considerados sujeitos completos, capazes de autoconhecimento, autoconsciência e autorrepresentação. No entanto, no estado de exceção, a relação de inimizade torna-se a base normativa no direito de matar: “percepção do outro como um atentado contra minha vida, como uma ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja eliminação biofísica reforçaria o potencial para minha vida e segurança […]” (p. 20). 

Nesse sentido, o racismo tem importância fundamental na regulação e distribuição da morte, permitindo as funções assassinas ao Estado. Terror e morte são elementos diretamente implicados no processo de dominação e emancipação e a escravidão configura-se como uma das primeiras instâncias de experimentação da biopolítica. A condição de escravo resultaria em uma tripla perda: de um lar, de direitos sobre seu corpo e de um status político. Na fazenda, o escravo é propriedade de um mestre: “a humanidade de uma pessoa é dissolvida até o ponto em que se torna possível dizer que a vida do escravo é propriedade de seu senhor” (Mbembe, 2018, p. 30). 

Nesse ponto, consideramos importante uma aproximação e análise com elementos de discussão desse trabalho, pois consideramos uma aproximação do corpo do escravo ao corpo feminino. Ambos são propriedade de alguém, o do escravo do senhor e da mulher do homem, sendo expostos ao espetáculo da dor imposta ao corpo pelos seus “proprietários”. Também, nomeamos o dependente de drogas como um adicto, com o termo de origem do latim addictu, que significa escravo, dependente de algo. Não será possível uma análise mais aprofundada dessa aproximação semântica e do sentido da escravidão na experimentação biopolítica, mas indicamos como possibilidade de continuidade desse estudo.

Contudo, entendemos que as estratégias da biopolítica fundamentam as práticas em saúde e na clínica das dependências. Seja em sua faceta terapêutica-pastoral, seja nas estratégias preventivas e de intervenção nos corpos para “melhoria” da condição de vida da população, seja pelo extermínio dos “indesejáveis” e “descartáveis” em uma lógica produtiva e de “evolução” da espécie. Indicamos a necessidade de outros caminhos na perspectiva do cuidado com as dependências às drogas em mulheres, caminhos que se aproximariam do cuidado de si e da autonomia.


1 Contraconduta é um conceito desenvolvido por Foucault (2008) que supõe novas formas de existência e resistência às relações de poder. Por essa razão, permaneceu a palavra originalmente como foi apresentada pelo autor, sem hífen ou separação dos termos.

2 Foucault faz referência a Aleksandr I. Soljenitsin, figura emblemática da dissidência antissoviética, cf. Nascimento da Biopolítica, aula de 14 fevereiro de 1979. 


REFERÊNCIAS

Birman, J. (2007). A biopolítica na genealogia da psicanálise: da salvação à cura. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14, n.2, p. 529-548, abr.-jun.

Birman, J. (2001). Entre o cuidado e saber de si: sobre Foucault e a psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

Butler, J. (2020). Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: N-1 Edições.

Castro, E. (2016). Vocabulário de Foucault. Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora. 

Dreyfus, H. L.; Rabinow, P. (2010). Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 

Foucault, M. (2008). Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes. 

Foucault, M. (2004). O Nascimento da Biopolítica. Lisboa: Edições 70. 

Foucault, M. (1985) História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal. 

Gomes, K. V. A (2010). Dependência Química em Mulheres: figurações de um sintoma partilhado. Tese de Doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 

Lemke, T. (2018). Biopolítica: críticas, debates, perspectivas. São Paulo: Editora Filosófica Politéia, 

Mbembe, A. (2018) Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições.

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