Celi Cavallari e Doris N. Cavallari
De tempos em tempos, a humanidade é assolada por pestes que dizimam parte da população do globo. Vírus e bactérias são predadores que parecem nos mandar um sinal de alerta, para nos lembrar que a vida é breve e que estar/permanecer vivo requer cuidado, atenção e, talvez, um pouco de sorte.
As epidemias provocam, como observa Jean Delumeau (1996), ao tratar da questão das pestes em seu livro “História do medo no Ocidente”,
a interrupção das atividades familiares, silêncio na cidade, anonimato na morte, abolição dos ritos coletivos de alegria e de tristeza: todas essas rupturas brutais com os usos cotidianos eram acompanhadas de uma impossibilidade radical de conceber projetos de futuro, pertencendo a “iniciativa”, doravante, totalmente à peste… [Mas] viver sem projeto não é humano. (Delumeau, 1996, p.125).
A epidemia, então, provoca ruptura, abala a rotina de sociedades e indivíduos, obriga a reavaliar hábitos, prioridades, crenças, necessidades; evidencia aos seres humanos que o modo de viver tradicional de cada pessoa e de cada cultura precisa ser revisto, pois foi insuficiente para conter as forças que emergiram da natureza. A ameaça externa assusta e provoca desorganização da realidade interna; esse choque, no mais das vezes, é traumático.
Freud no texto O mal estar na cultura (1930/1981) diz que a vida em sociedade demanda permanentemente um esforço para o controle sobre o mundo pulsional, nesse sentido, a emergência da epidemia impôs um aumento dessas exigências civilizacionais em detrimento das liberdades individuais. Um aumento do mal-estar!
A necessidade de mudanças exige novas atitudes, acuidade e revisão na maneira de encarar o cotidiano, cuidado consigo e com os outros, demandas que são novos desafios e requerem reorganização da rotina e principalmente das condições psíquicas para enfrentá-los; assim foi quando abruptamente nos deparamos com a atual pandemia da Covid-19, desde sua chegada.
O efeito traumático da covid 19
Interessante contextualizar que em 2016 um psicanalista, ao escrever sobre ‘Os tempos do trauma’, comenta: “Vivemos e sofremos um período histórico em que os traumas são predominantemente produtos humanos, muito mais do que advindos da força da natureza, como já foram em outros momentos da história.” (Dal Molin, 2016, p. XVIII). Outros autores (Chemama & Hoffmann, 2020) que pesquisaram sobre traumas coletivos no início do século XXI também estavam muito mais voltados para conflitos da civilização, como atentados, abusos políticos e guerras ou para catástrofes acidentais, ainda que sempre voltados para a repercussão desses eventos no psiquismo individual.
A humanidade estava confiante de que o aparato científico tinha respostas suficientes para proteger a espécie humana da maior parte dos adventos da natureza, quando, no final de 2019 surgiram notícias sobre um novo vírus responsável pelo adoecimento e morte de pessoas na cidade de Wuhan na China. No início de 2020, começaram registros de contaminações durante o inverno europeu e a Itália passou a ser o epicentro da epidemia, enquanto o Brasil ainda não apresentava casos notificados. Em fevereiro, o Carnaval brasileiro ocorreu como tradicionalmente, apenas com recomendações higiênicas pouco específicas, e no último dia (25/02/2020) foi identificado o primeiro caso de Covid 19 em um brasileiro que chegara da Itália. (Jornal Estado de Minas 22/04/2020).
Na sequência imediata, a atitude de autoridades e de parte da população era de negação do risco de infecção pelo coronavírus no Brasil, ao passo em que se convivia com o impacto de notícias estarrecedoras, pela avalanche de casos e de situações dramáticas, além do elevado número de mortes em curto espaço de tempo na Itália; realidade que, ao longo do tempo, foi estendida a vários outros países, em menor ou maior grau. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde declarou a Covid 19 como pandemia e alertou o mundo sobre o prognóstico de aumento do número de casos e de mortes. Em 16 de março do mesmo ano, 400 casos estavam notificados no Brasil, já havia registro de morte pela Covid 19 e de transmissão comunitária; nessa ocasião, várias cidades iniciaram processos diferentes de isolamento social.
A chegada da pandemia deflagrou um momento de ruptura no âmbito coletivo e individual; de repente tudo mudou, nossos recursos foram insuficientes para impedir esse acontecimento que atravessou nossa história e nossa vida passou a estar em risco imediato. Nossos rituais de passagem, como encontros festivos, despedidas e lutos ficaram suspensos e, com eles, um tanto da nossa civilidade. Se, por um lado, alguns de nós puderam ficar protegidos dentro de suas casas, por outro, várias pessoas ficaram sem recursos, adoecendo e morrendo, uma parte de nós foi sucumbindo; ficamos todos acuados, regredidos e traumatizados.
No aniversário de 100 anos do texto ‘Além do princípio do prazer’, no qual Freud reformulou a teoria do trauma, na sequência da primeira Guerra Mundial, nos deparamos com a adversidade da Covid 19 e novamente a humanidade está sob ataque. O autor define que o trauma ocorre quando excitações da realidade externa são fortes o suficiente para atravessar o escudo protetor e que estas provocam uma ruptura de camadas que em outras circunstâncias seriam eficazes contra estímulos; afirma que um acontecimento externo desse porte, pode acarretar distúrbios no funcionamento da energia do organismo e mobilizar todo o aparato defensivo. (Freud, 1920/1975).
Alguns anos depois, afirmaria que diante do perigo e do desamparo provocado pelo trauma é mobilizada a angústia como sinal de alerta, pois a pessoa ameaçada pela adversidade do destino responde com reações internas que colocam a integridade do ego em risco. (Freud, 1928/1981). Argumentaria ainda que a adversidade do destino é vivenciada como a cólera ou o castigo do superego, em última instância pelo medo da morte, as defesas falham e o ego fragilizado regride para instâncias de fixação anteriores. Assim, quando há um choque advindo do ambiente que excede a capacidade de assimilação imediata, ocorre também um aumento de tensão interna que acarreta enfraquecimento das demais funções psíquicas.
Ferenczi também aprofundou estudos sobre o trauma que se articula com a teoria freudiana e, a nosso ver, a complementa; analisa que diante do choque emocional em situações traumáticas existe uma decepção pela perda de segurança vivenciada anteriormente:
A comoção psíquica sobrevém sempre sem preparação. Teve que ser precedida pelo sentimento de estar seguro de si, no qual, em conseqüência (sic) dos eventos, a pessoa sentiu-se decepcionada; antes, tinha excesso de confiança em si e no mundo circundante; depois, muito pouca ou nenhuma. Subestimou a sua própria força e viveu na louca ilusão de que tal coisa não podia acontecer; “não a mim” (Ferenczi, 1992 p.111).
Para Ferenczi, a decepção diante do acontecimento promove uma crise de confiança que gera insegurança e angústia. Por sua vez, o alívio ao aumento de desprazer é possibilitado pela “autodestruição” e a consciência, “a coesão das formações psíquicas é o mais fácil de destruir” em cada um; essa é a origem da “desorientação psíquica”. Nessa perspectiva, quando tem início o que nomeia como “mecanismo de traumatogênese” ocorre paralisia total da espontaneidade, seguida pela interrupção do trabalho de pensamento. A fragmentação permite desmembrar a dor para suportar o impacto.
Chemama e Hoffmann (2020, p.59) reiteram o conceito de Ferenczi e destacam que tanto podemos interpretar o estado de choque como resistência passiva do paciente diante das agressões da realidade externa, quanto como “a clivagem da pessoa em uma parte sensível, brutalmente destruída, e outra que sabe tudo, mas não sente nada, de certo modo”. Diante de acontecimentos violentos e traumáticos, a sensibilidade fica neutralizada, enquanto o trabalho de pensamento, que nada sente, prossegue estagnado.
Talvez, o negacionismo frente à epidemia, assim como a falta de sensibilidade com o alto grau de sofrimento, com o medo de contrair o vírus e não resistir e com o adoecimento e morte de milhares de pessoas, também esteja relacionado com esse aparato defensivo, que por não suportar a intensidade dos acontecimentos, cessa a capacidade de se sensibilizar e de assimilar a realidade.
O desafio diante de um evento traumático é o de religação, do resgate possível das conexões internas. O trauma atual aciona em nós outros traumas de nossa história individual. Para exemplificar: um paciente, que tem crises de ansiedade, sonha que está sem máscara em um bar e que, ao chegar em casa com o pai, seu videogame havia sido roubado. Nas associações com o sonho diz que fica angustiado ao ver pessoas sem máscaras, que se sente só, pois as pessoas estão saindo, tiram fotos sem máscaras e que fica com medo da morte. Após uma interpretação de que a experiência de ruptura seguida pelo sentimento de estar sozinho é algo mais antigo, o paciente lembra que quando criança, um dia brincando de skate, caiu, se machucou e seu coração disparou. Logo em seguida, quando chegou em casa, seu avô estava chorando, pois sua avó havia morrido; até hoje ele associa falta de ar e coração acelerado com morte. Assim, o impacto da pandemia abriu uma conexão para mais um passo na elaboração de um trauma de infância que havia deixado a marca da falta de ar. Um impacto coletivo de grande magnitude, como a pandemia da Covid 19, mobiliza em cada pessoa os restos deixados por rupturas anteriores em cada processo singular.
É importante considerar que, no Brasil, também o contexto sócio-histórico apresentava uma condição adversa, de tensão social desde o impeachment da presidente da República em 2016, seguido de processos eleitorais polarizados e repletos de fake news. O desmonte de políticas públicas e o aumento avassalador da pobreza já contribuíam com a sensação de insegurança e as condições de confiança no mundo circundante já estavam abaladas. Nesse clima de tensão, mentiras e opressão, antes que historicamente pudéssemos nos recuperar e recobrar a sensação psicossocial de estabilidade, surgiu a Covid 19 e provocou uma nova comoção social.
Em plena emergência sanitária, autoridades continuaram com discursos polarizados que desprezaram o conhecimento científico e divulgaram falsas soluções. A falta de testagem em massa e a demora no início da vacinação contribuíram para o avanço da epidemia e para o aumento do número de mortes; enquanto as fake news, as mentiras jorravam nas redes sociais aumentando ainda mais a crise de confiabilidade. Harari (2020, p.55) chama essas vozes antagônicas à ciência de “negacionistas medievais”.
A presença da Covid 19 associada ao risco de morte e sofrimento ficou ainda mais disruptiva: de repente estávamos em quarentena, os hospitais lotados, fomos rodeados pelas notícias de intenso sofrimento: adoecimentos, mortes e muitas dificuldades econômicas e sociais. Enquanto as recomendações científicas eram para ficarmos isolados em casa, muitas pessoas não tinham condições de se isolar em casa, outras permaneciam aglomeradas em instituições lotadas, sem a agilidade imediata da gestão pública para reduzir as vulnerabilidades; todos experimentamos asensação de desamparo e medo. Esse impacto atingiu nosso equilíbrio psíquico que se altera quando a rotina, a realidade externa, muda abruptamente; ficamos todos assustados e regredidos. “A intensidade diante da presença da morte é irrepresentável. A possibilidade de representação seria ‘a posteriori’, após o acontecimento traumatizante, quando então seria viável um processo de elaboração.” (Cavallari, C. 1997)
Uso de substâncias e a busca de alívio do sofrimento
Nesse contexto estressante, além das questões de riscos e adoecimentos pelo coronavírus, nos deparamos com o descortinamento de muitos sintomas e demandas emocionais. Uma pesquisa realizou levantamento bibliográfico e revelou que um estudo internacional apontou acréscimo no consumo de álcool e outras drogas no mundo, tendo sido considerado alarmante o aumento do uso de substâncias psicoativas no Brasil, com destaque para 17,2% de maconha, 12,7 de benzodiazepínicos e 7,4% de cocaína (Aguiar et al, 2021).
Outra pesquisa, coordenada pela Fiocruz, demonstrou que sintomas de ansiedade e depressão afetaram 47,3% dos trabalhadores de serviços essenciais durante a pandemia de Covid-19, no Brasil e na Espanha. Além disso, 44,3% referiram abuso de bebidas alcoólicas; 42,9% sofreram mudanças nos hábitos de sono; e 30,9% foram diagnosticados ou buscaram tratamento para doenças mentais (Icict/Fiocruz, 2020). Nos dados preliminares desse estudo, os sintomas de depressão e ansiedade chegaram a 55% do total entre os trabalhadores de serviços essenciais do Brasil, comparados aos 23% encontrados nos mesmos profissionais da Espanha. Os resultados foram considerados surpreendentes, pois a Espanha no período da pesquisa passava pelos piores momentos da pandemia. Um dos pesquisadores, Francisco Bastos, levantou a hipótese, apoiado em outros estudos internacionais, de que o desemprego tenha sido um fator de aumento da ansiedade e depressão no Brasil.
Vários autores relacionam o aumento do uso de substâncias psicoativas como consequência de situações traumáticas, sejam acidentais ou vivenciadas desde a infância (Maté, 2021), ou à condições adversas e estressantes, tais como guerras, e conflitos pessoais (Rojas-Jara, 2020). Na pandemia, as necessidades sanitárias de quarentena e de isolamento social, associadas ao medo causado pelo impacto da proximidade do risco de adoecimento e morte, contribuíram para o aumento de uso de substâncias na tentativa de aliviar a angústia e a dor.
A ruptura atingiu o modo de viver, assim, os pilares psíquicos da rotina nos quais as pessoas estavam amparadas foram alterados com a necessidade de isolamento social para preservar a vida. De repente, a imposição de várias mudanças, como deixar de trabalhar ou mudar sua forma de trabalho para online, não poder exercer atividades físicas, experimentar a restrição de ir e vir, ou ainda passar por situações mais graves como não ter garantias de subsistência ou possibilidades de proteger a si e a seus entes queridos, contribuíram com a sensação de falta de autonomia; uma condição regredida, que nos remete à infância e suas pendências. Como tentativa de cura da angústia ou para anestesiar a dor diante da nova circunstância, o uso de substâncias, de alimentos ou outras formas de buscar alívio, como a adesão compulsiva às redes sociais ou a jogos online, foram recursos utilizados por muitas pessoas, para amortecer o impacto e a sensação de desamparo. Muitos pacientes relataram uso de medicamentos para as alterações de sono, por exemplo.
Aumento do risco de suicídios e da violência doméstica
Sousa (et al., 2020, p.62) adverte que é necessário desenvolver estratégias em saúde mental que sejam criativas e baseadas na escuta e no acolhimento para cuidar da demanda de pessoas com comportamentos suicidas e de automutilação, pois identificou o risco de aumento nas taxas de suicídio e de transtornos mentais durante e após a pandemia.
Outro estudo sobre o aumento da violência doméstica destacou que a quarentena inicial acirrou sintomas pré-existentes como alterações de sono, ansiedade, tristeza, medo e abuso de álcool e outras drogas e esses fatores, associados ao isolamento social, contribuíram, também, com o aumento da violência doméstica (Ornell et al, 2020).
Matos & Andrade (2021), em levantamento sobre a violência contra a mulher na pandemia, afirmam que, “adotando regimes de trabalho em casa, sem creches e redes de apoio para atenção aos filhos e aos idosos e com todo o trabalho doméstico a ser realizado, as mulheres, que já passam por constantes violações de direitos humanos “(p.181)), ficaram em condições mais precárias para se defender de agressões. Se por um lado as denúncias diminuíram, provavelmente por elas não estarem saindo de casa, por outro aumentaram os chamados telefônicos de pedidos de apoio policial e os feminicídios, que chegaram ao aumento de 400% no Acre em 2020.
A violência no Brasil é endêmica e tem caráter perverso e abusivo, seja contra mulheres, crianças, idosos, bem como no tocante à discriminação racial, étnica, de gênero e social, ou seja, contra os mais pobres ou vulnerados em geral; porém, na pandemia, com as pessoas confinadas e regredidas, essa violência foi ainda mais intensificada. A regressão a condições psíquicas anteriores pode chegar a estados bastante primitivos e se o abuso de substâncias psicoativas for o principal recurso usado para aliviar o sofrimento mental, essa complementação pode contribuir para o acirramento das dificuldades pessoais e relacionais. De modo a diminuir a violência, é de fundamental importância a manutenção das instâncias mediadoras para situações de crise, como os serviços de saúde mental e toda a rede de políticas públicas protetivas.
Em condições mais adversas e com limitações do acesso presencial aos serviços de saúde, os sintomas de sofrimento psíquico ficaram agravados e o uso da tecnologia foi fundamental para viabilizar muitas interações necessárias em várias áreas como saúde, educação e para os relacionamentos em geral. Nos cuidados da rede pública e privada, a tecnologia passou a integrar os trabalhos profissionais, na tentativa de diminuir o desamparo e garantir o vínculo terapêutico e o acolhimento. Porém, pessoas vulneradas, em situações econômicas e sociais precárias, não conseguiram se beneficiar desses recursos e ficaram em condições de maior de insegurança.
Especificamente sobre o trabalho da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) com usuários de álcool e outras drogas na rede pública de saúde, um estudo destacou que foi estratégico o uso de tecnologias, tais como aplicativos, telefones e vídeo-chamadas, para garantir a manutenção do vínculo com os pacientes e ao mesmo tempo viabilizar o cumprimento das medidas sanitárias de isolamento social (Aguiar et al, 2020). A maior dificuldade relatada foi exatamente sobre a limitação para o cuidado em saúde mental com pessoas em situação de rua, sem acesso à tecnologia.
Na rede de atenção em saúde mental, o uso da tecnologia foi uma contribuição importante frente à interrupção abrupta dos projetos terapêuticos presenciais. Foi possível estabelecer algum contato com os usuários e, por exemplo, avaliar a necessidade de um atendimento presencial para pacientes em crise, em especial para consultas psiquiátricas; instituir um canal de trocas e cuidados com outros profissionais; estabelecer comunicação entre atenção primária e especializada; promover a manutenção do vínculo com familiares dos pacientes para esclarecimento de dúvidas. Embora com restrições, o uso da tecnologia impediu que houvesse maior desproteção e garantiu o usuário como protagonista do cuidado. As equipes, por sua vez, também puderam dar continuidade ao trabalho terapêutico, ainda que parcialmente, em um momento de extrema necessidade, ao mesmo tempo que puderam respeitar as exigências sanitárias.
Uma das autoras do presente artigo, em trabalho de supervisão para equipe de CAPS AD, acompanhou um atendimento realizado pelos profissionais a uma familiar idosa, irmã de um paciente em surto que se recusava tomar medicação e que ameaçava agredi-la. A equipe utilizou várias estratégias de orientação familiar por telefone, além de contato com outras equipes de saúde e da comunidade; esse trabalho contribuiu para que o paciente fosse assistido e para preservar a irmã da possível agressão. A competência técnica no uso da palavra como terapêutica e o lugar de referência para mediação de conflitos foram fundamentais, nesse caso, para interditar situações mais graves.
Profissionais de Saúde
Como comentam Chemama e Hoffmann, “Freud mostrou a importância da intervenção de um “Outro que dê segurança” indispensável para o bebê na sua dependência fisiológica originária. Essa necessidade de intervenção do Outro reaparece durante cada situação de angústia” (Chemama & Hoffmann, 2020, p.81). Os autores fazem essa referência à Freud ao falarem sobre os traumas de atentados e prosseguem dizendo que a condição de precariedade necessita de uma interdependência ética, uma “obrigação ética fundada sobre a precariedade, […] que faz a resposta do Outro à angústia do bebê um dos fundamentos da ética”.
Analisam que é a partir da representação advinda do acolhimento das equipes de saúde que se torna possível um trabalho psíquico posterior para além das “conversas”. Se por um lado a “precariedade do corpo encontrou seu Outro médico”, por outro, há o sofrimento de desamparo com “a compulsão de repetição das cenas de barbárie, que retorna” (Chemama & Hoffmann, 2020 p.81-82). Podemos dizer também que a pandemia, principalmente em contexto de necropolítica, nos leva para cenas de horror primitivo, remetendo à ideia das pestes que dizimaram parte da humanidade. O evento traumático de hoje aciona outros traumas individuais e coletivos, sempre na dimensão do que é acessado individualmente em cada um de nós.
O acolhimento dos profissionais e das equipes de saúde tem papel essencial para a saúde mental dos pacientes, pois o reconhecimento da comoção é que vai possibilitar a posteriori a religação das conexões internas. Como apresenta Dal Molin:
O principal efeito após, e enquanto se desenha a formação traumática é, como observamos, a tentativa no “sentido de um sprit d’escalier”(sic) de transformar, com a ajuda do ambiente, as impressões em percepções e estas, mais tarde, em representações.(Dal Molin, 2016, p.221).
Em um estudo realizado, nos anos 1990, sobre o impacto do diagnóstico HIV positivo, que na época, antes do coquetel de medicamentos, representava um alto risco de adoecimento ou de morte, também foi identificado que dois entre dez pacientes não apresentavam sintomas de trauma ao receberem o diagnóstico e que o diferencial foi o acolhimento recebido e o reconhecimento de sua dor, por parte das equipes de saúde, quando foram informados sobre o resultado positivo. (Cavallari, C., 1997, p. 202)
Em levantamento realizado sobre a saúde mental dos profissionais de enfermagem durante a pandemia de Covid 19, os trabalhadores dessa área apresentaram altos níveis de sofrimento psicológico, a saber: No Canadá, 47% desses profissionais, relataram a necessidade de apoio psicológico; Na República Popular da China, os profissionais relataram altas taxas de depressão (50%), ansiedade (45%) e insônia (34%); e, por fim, no Paquistão, um grande número desses profissionais relataram sofrimento psicológico moderado (42%) a grave (26%).(Ramos-Toescher et al., 2020). Esse trabalho revelou que enfermeiros e médicos tinham dificuldade em identificar problemas psicológicos nos colegas devido às exigências de uso contínuo de roupas de proteção individual e ao próprio distanciamento exigido.
A partir da constatação das condições altamente estressoras desses profissionais, no Brasil foram disponibilizados vários serviços psicológicos, realizados por meios de tecnologia da informação e comunicação, tem recebido destaque, principalmente por se constituírem de mecanismos relevantes para o acolhimento de queixas relacionados à saúde mental.(Ramos-Toescher et al, 2020).
É fundamental garantir serviços de diferentes tipos de atendimentos psicológicos e supervisões para os profissionais de saúde, pois são multiplicadores de cuidado. Durante a pandemia, eles precisam ser ancorados, por estarem fragilizados e expostos ao sofrimento, à morte dos pacientes e ao medo da infecção pessoal ou de seus familiares.
Assim, o acolhimento do ambiente pode oferecer suporte suficiente para minimizar o efeito disruptivo da formação traumática e evitar agravamentos de sofrimento psíquico também nos profissionais de saúde. O papel das equipes de saúde é fundamental, mas também o de outras profissões de influência, como deveriam ser professores, jornalistas, líderes religiosos, autoridades políticas e todos aqueles com funções de referência.
A peste e a literatura: “Decameron”
A crise atual nos convida a olhar também para experiências passadas e verificar como as pessoas lidaram com problemas semelhantes em diferentes momentos históricos. Exemplar, nesse sentido, é a narrativa de Giovanni Boccaccio, com o seu “Decameron”, obra escrita no período da pior epidemia de que se tem notícia: a Peste Negra ou peste bubônica devastou a Europa matando cerca de um terço de sua população (mais ou menos 20 milhões de pessoas). Na presença constante da morte, que golpeava a todos indistintamente, as pessoas começaram a revalorizar a vida e Boccaccio exprime esta revalorização. Sua obra é uma homenagem à vida terrena, ao desejo, ao amor cortês, à inteligência e sua entoação é essencialmente irônica.
No ano de 1348, a peste chegou a Florença e o escritor refugiou-se na cidade vizinha, Fiesole, e lá escreveu o “Decameron”, entre 1348 e 1353. O título do livro remete ironicamente a um gênero textual comum da Idade Média, o “Hexameron” que consistia em textos escritos por grandes teólogos da Igreja Católica, sendo o mais famoso o de Santo Ambrósio, nos quais procuravam descrever os seis dias da criação do mundo, pela palavra divina. O “Decameron”, o livro dos dez dias, por sua vez, propõe a reconstrução do mundo pela narrativa de novelas feitas pelos personagens-narradores.
As novelas são precedidas pelas considerações do autor no início da primeira jornada, além de comentários ao longo do texto e de suas palavras de encerramento na “conclusão do autor”, sendo assim inseridas em um contexto mais amplo, ao qual se deu o nome de “cornice” (ou moldura narrativa). Essa moldura narrativa garante a estrutura e a organização coesa da obra que não se resume à mera coletânea de novelas.
O livro, então, é constituído pela moldura e por cem novelas contadas durante dez dias por dez jovens (sete moças e três rapazes), os quais para fugirem da peste decidem ir para o campo e lá, em belos jardins, contam novelas nas horas mais quentes do dia, para passar o tempo. Pampineia, a mais madura das jovens, propõe a fuga e também o passatempo principal: contar histórias, pois nos jogos há sempre um perdedor e isso poderia causar tristeza e descontentamento de alguns. A ideia essencial é que todos se divirtam, todos tenham oportunidade de se expressar na pequena comunidade. Para tanto, o tema das novelas são determinados pelo rei ou rainha da jornada, escolhidos por seus pares a cada dia, pois
visto que as coisas desregradas não podem durar muito, eu, que fui iniciadora das conversações que resultaram nesta linda companhia, pensando na continuação de nossa alegria, considero necessário escolhermos entre nós alguém que seja principal, que respeitemos e obedeçamos como mandante, cujo único pensamento seja dispor-nos a viver com alegria. E, para que cada um de nós possa sentir o fardo da preocupação que acompanha o prazer do mando, e para que, sendo o mandante escolhido de ambas as partes, não haja inveja de quem não experimente o mando, sugiro que esse fardo e essa honra sejam atribuídos a um de nós por dia; e que o primeiro seja escolhido por todos nós; quanto aos seguintes, a cada entardecer será apontado aquele ou aquela que mais agradar a quem naquele dia tiver tido o mando; e este, segundo seu arbítrio e no tempo que durar seu mando, deverá dispor e ordenar o lugar e o modo como viveremos. (Boccaccio, 2013, p. 38)
É interessante observar que a pequena comunidade tem como prioridade a alegria, mas tem consciência de que “as coisas desregradas não podem durar muito”. Na verdade, os jovens estão fugindo do desregramento de sua cidade que se tornara caótica, como descreve o autor no início da primeira jornada, em que narra com detalhes os acontecimentos durante a pestilência. A peste é o motor da obra, compõe a moldura narrativa e
dá às personagens e ao autor o direito exterior e interior de usar de uma franqueza e de uma liberdade especiais … a peste, a imagem condensada da morte, é o ingrediente indispensável de todo o sistema de imagens no romance, onde o “baixo” material e corporal renovador tem um papel principal. (Bakhtin, 1993, p.238).
A descrição da peste, aliás, tornou-se fonte de referência histórica e alguns consideram Boccaccio como um Tucídides (460-400 a.C.) da era moderna. O autor esmera-se em fornecer detalhes sobre a pandemia que viera do Oriente, mas sofrera mutação ao chegar ao continente europeu, fala do comportamento dos homens em face da doença brutal que destruía famílias inteiras e via até ilustres cidadãos serem jogados em valas comuns. Ele comenta que diante da realidade assustadora
originaram-se diferentes medos e imaginações nos que continuavam vivos, e quase todos tendiam a um extremo de crueldade, que era esquivar-se e fugir aos doentes e às suas coisas; e, assim agindo, todos acreditavam obter saúde. Alguns, considerando que viver com temperança e abster-se de qualquer superfluidade ajudaria muito a resistir à doença, reuniam-se e passavam a viver separados dos outros, recolhendo-se e encerrando-se em casas onde não houvesse nenhum enfermo e fosse possível viver melhor, usando com frugalidade alimentos delicadíssimos e ótimos vinhos, fugindo a toda e qualquer luxúria, sem dar ouvidos a ninguém e sem querer ouvir notícia alguma de fora, sobre mortes ou doentes, entretendo-se com música e com os prazeres que pudessem ter. Outros, dados a opinião contrária, afirmavam que o remédio infalível para tanto mal era beber bastante, gozar, sair cantando, divertir-se, satisfazer todos os desejos possíveis, rir e zombar do que estava acontecendo; e punham em prática tudo o que diziam sempre que podiam, passando dia e noite ora nesta taverna, ora naquela, bebendo sem regra nem medida, fazendo tais coisas muito mais nas casas alheias, apenas por sentirem gosto ou prazer em fazê-las. (Boccaccio, 2013, p.29)
Boccaccio continua sua descrição destacando que as casas dos senhores foram abandonadas e invadidas por qualquer um que dela se apossasse, mesmo que por breve tempo, pois “em meio a tanta aflição e miséria da nossa cidade, a veneranda autoridade das leis divinas e humanas estava quase totalmente decaída e extinta porque seus ministros e executores, assim como os outros homens, estavam mortos ou doentes” (Boccaccio, 2013, p.29). Salienta ainda as diversas reações dos cidadãos, pois além dos que se entregavam ao vinho, ao excesso de comida e a todos os prazeres que podiam desfrutar de modo exagerado, havia os que se encerravam em casa, jejuando e orando ou fugiam a todos, mas havia ainda os que aceitavam pacificamente a situação, alimentando-se normalmente sem se trancar em casa ou se dar a excessos, tomando todos os cuidados possíveis para não se contaminar.
É nesse contexto que os jovens narradores, abandonados à própria sorte, unem-se e rompem com a angústia, com a solidão e com o medo. Sua união permite o resgate da própria civilização, então abalada pela ação da peste. Apesar do tema das novelas indicarem para uma abordagem muito livre da vida, com narrativas exageradas que remetem ao fantástico, os jovens constituem regras de sociabilidade e convivência, mantêm uma vida sã e regrada e o devido distanciamento, evitando contato físico entre si. Eles reservam um tempo para os cuidados pessoais e respeitam os dias de oração. Em meio a uma sociedade despreparada para situações extremas, como uma grande epidemia, os jovens procuram manter o equilíbrio, já que o caos provocado pela peste traz muita dor e destruição. Eles procuram se curar da desorientação psíquica causada pelo impacto da pandemia, deixando os exageros e a liberdade sem freios para as novelas, pois como dirá o autor na “conclusão da obra”, seu narradores são “pessoas jovens, embora amadurecidas e não influenciáveis por novelas” (Boccaccio, 2013, p. 530), de modo que sabem diferenciar e separar a arte da vida cotidiana.
Os narradores formam uma “onesta brigata”, isto é, um “honrado grupo”, como observa o autor, eles exploram sua arte de contar novelas, descortinando valores, desmascarando crenças sociais hipócritas e explorando sua fantasia, para o deleite de seus ouvintes e do leitor. Chama a atenção, a consciência da palavra como fator essencial dessa obra e já nas novelas do primeiro dia, sua importância se destaca, pois apesar do tema ser livre, percebe-se o foco na habilidade discursiva dos personagens narrados nessa jornada. O “Decameron” inicia-se com a frase Umana cosa è avere compassione degli afflitti (“É humano ter compaixão dos aflitos”), deixando claro que a “compaixão” e a “humanidade” serão as marcas da obra, na qual figuram como protagonistas heróis, anti-heróis, judeus, árabes, homossexuais, heréticos, cavalheiros e damas virtuosas, prostitutas e ladrões, o que faz do “Decameron” uma obra inclusiva que acolhe todos os tipos humanos, com sua inteligência ou estultice (um grande pecado no universo boccacciano), seus anseios e realizações, suas conquistas e perdas, seus finais felizes e infelizes, além de tratar do jogo essencial entre a “fortuna” ou o destino e a “virtude” humana, a habilidade fundamental para reverter as situações difíceis que a vida impõe.
Narrar proporciona divertimento, mas também preserva a convivência civilizada, possibilita conhecer melhor os companheiros e a si mesmos. Cada narrador, ao final de cada jornada, é responsável por uma canção que apresenta sua personalidade, seus medos e anseios, de modo que se faz conhecer melhor para os companheiros e também para o leitor.
Embora seja uma ode à vida e à diversão, as novelas do “Decameron” resgatam também o direito ao luto, especialmente na quarta jornada que tem como tema os amores com final infeliz, com o predomínio da tragédia. Essa jornada resgata o direito ao pranto e à “morte personalizada”, isto é, ao rito funerário, em que o (os) morto(s) são reverenciados em grandes e pomposos funerais que encerram a tragédia em um ato sublime e necessário para perpetuar histórias e nomes que se tornarão lendas e serão revistas e recontadas ainda. Desse modo, a quarta jornada cumpre a missão de provocar a catarse do grupo de jovens que viram os rituais de morte, de sepultamento e das lágrimas na despedida dos entes queridos serem tolhidas pela ação destruidora da peste.
A quarta jornada do “Decameron” tem como rei Filóstrato (o derrotado pelo amor) que exige narrativas sobre o tema polêmico da infelicidade no amor, da impossibilidade de realizar-se e viver feliz. O grupo protesta, pois sua fuga da cidade e suas horas no jardim destinam-se a amenizar as dores de suas perdas e de seu medo da pestilência destruidora, contudo, devem obedecer ao rei irredutível quanto à proposta, pelo pacto que haviam feito de obedecer ao rei ou rainha de cada jornada. O soberano da quarta jornada terá uma atitude bastante teatral em seu reinado, com gestos pomposos e com severidade ao julgar as narrativas, ele parece querer provocar as lágrimas, dar vazão à tristeza das perdas que o grupo quer evitar.
Poderíamos citar, a título de exemplo, a primeira novela que tem por tema: “Tancredo, príncipe de Salerno, que mata o amante da filha e manda-lhe o coração numa taça de ouro; ela põe sobre ele água envenenada, bebe-a e assim morre“. Vale observar que as novelas não têm títulos, mas apresentam um cabeçalho explicativo sobre o tema que será tratado. Elas são “escritas em florentino vulgar, em prosa e sem título” (Boccaccio, 2013, p. 237) observa o autor no início da quarta jornada, quando interrompe a narrativa, buscando defender seu texto de seus detratores, com muita ironia e perspicácia.
A primeira novela é contada por Fiammetta (o amor triunfante) que inicia sua história com essas palavras:
– Assunto doloroso é o que nos foi dado hoje pelo nosso rei, considerando que, vindo aqui para nos alegrarmos, precisaremos contar histórias sobre as lágrimas alheias, que nunca são narradas sem que quem as narre e quem as ouça sinta compaixão. Talvez o tenha feito para temperar um pouco a alegria dos dias passados; mas, seja qual for o motivo, visto que não me cabe mudar sua vontade, contarei um acontecimento comovente, aliás desventurado e digno de nossas lágrimas. (Boccaccio, 2013, p.242)
Sua novela fala do amor entre Guismunda — uma princesa, filha do príncipe de Salerno, belíssima jovem e viúva — e Guiscardo, “homem de nascimento bastante humilde, mas de virtudes e costumes nobres” (Boccaccio, 2013, p.243).
O pai de Guismunda amava-a muito e demorara a casá-la e, quando o fez, casara-a com um homem velho que logo morreu. Voltando à casa do pai e sentindo a falta de um companheiro, a jovem apaixonou-se por Guiscardo, por sua “alma gentil” (tema muito explorado pela literatura no período boccacciano) e encontrou modo de realizar discretamente seu amor, de modo a não despertar maledicências nem envergonhar o pai.
Tancredo, porém, descobre os amantes e confronta a filha que defende seu direito de amar. A mulher na literatura boccacciana não é a musa silenciosa ou a mulher anjo, o leitmotiv que inspira o poeta a falar da própria experiência amorosa. Em Boccaccio, a mulher não é mais mero objeto do desejo, é sujeito, é Eva, isto é, ela é mulher de carne, ossos e voz narrativa, por meio da qual expressa seus desejos, suas paixões, sua visão de mundo. Ela é sujeito e ser do diálogo.
Acusada pelo pai que “chorava como uma criança” (p.245), ao pedir-lhe explicações de seus atos, Guismunda defende com altivez seu direito de amar, lembrando ao pai que
uma vez que é feito de carne, deveria estar claro que gerou uma filha feita de carne, e não de pedra ou ferro; e deveria e deve lembrar, apesar de estar velho, quantas, quais e quão fortes são as leis da juventude; e você, sendo homem que passou parte dos melhores anos no exercício das armas, nem por isso devia desconhecer o poder do ócio e do luxo sobre os velhos, quanto mais sobre os jovens. Portanto, tendo sido gerada por você, sou de carne e, tendo vivido tão pouco, ainda sou jovem; tanto por uma coisa quanto por outra, sou cheia de um desejo concupiscível que ganhou força extraordinária por ter eu já, quando casada, conhecido o prazer que se tem ao dar cumprimento a esse desejo. Não podendo resistir a tais forças, sendo jovem e mulher, eu me dispus a seguir aquilo a que elas me arrastavam e me apaixonei. (Boccaccio, 2013, p.246)
Guismunda aqui é a porta voz das ideias boccaccianas sobre o amor, fenômeno da natureza humana, sendo terreno, muitas vezes efêmero e que se realiza no encontro carnal dos amantes, pois, como o autor afirma no início da quarta jornada, ao defender sua obra
porque sei que nada poderá ser dito com razão, a não ser que todos os que as amam, como eu, amam-nas [as mulheres] segundo a natureza. E quem quiser se opor às leis da natureza precisará de enormes forças, que muitas vezes são empregadas não só em vão como também com grande prejuízo de quem a tanto se aplica. Essas forças confesso que não tenho nem quero ter; e, se as tivesse, preferiria emprestá-las a outros a usá-las para mim. Por isso, calem-se os mordedores, e, se não conseguem aquecer-se, que vivam enregelados, ficando eles com seus prazeres, aliás, apetites corrompidos, e eu com o meu nesta breve vida que nos é dada. (Boccaccio, 2013, p. 242-3)
Na voz da personagem trágica, o autor convida suas adoráveis ouvintes e suas leitoras e leitores a rever seus conceitos sobre o amor, sobre a natureza e a vida. Guismunda afirma ainda que as acusações do pai de envergonhá-lo, fazendo-se amante de um homem de baixa condição social a quem, vale salientar, o próprio príncipe reconhecia como homem de virtudes excepcionais antes de sabê-lo amante de sua filha, são infundadas, pois
Vai dizer então que me misturei a homem de baixa condição? Não estará dizendo a verdade; mas, se por acaso dissesse que foi com um pobre, seria possível concordar, para sua vergonha, pois essa teria sido a posição que você soube dar a um bom servidor; mas pobreza não subtrai nobreza a ninguém; ao contrário, só subtrai haveres. Muitos reis e grandes príncipes foram pobres outrora; e muitos que carpem a terra e guardam ovelhas já foram e são riquíssimos. Quanto à última dúvida que expressou, isto é, o que fazer comigo, livre-se dela totalmente. Se na velhice estiver disposto a fazer o que não fez na juventude, ou seja, ser cruel, descarregue em mim a crueldade, pois não estou disposta lhe fazer nenhuma súplica, porque você foi a primeira causa desse pecado, se é que é pecado; por isso afirmo que o que você tiver feito ou venha a fazer com Guiscardo, se não fizer o mesmo comigo, minhas próprias mãos o farão. Então, avante, vá derramar lágrimas com as mulheres e, usando de crueldade, mate-nos ambos com um mesmo golpe, a mim e a ele, se achar que merecemos. (Boccaccio, 2013, p.247)
O velho príncipe, ferido em seu orgulho, não acredita nas ameaças da filha e manda matar seu amante, enviando-lhe o coração numa taça de ouro. Ela então enche a copa com uma tisana de ervas venenosas e suicida-se. A Tancredo nada mais resta do que chorar a dor de sua perda e cumprir o último desejo da filha: o de ser enterrada ao lado do amante. O funeral pomposo e honrado encerra a novela de Fiammetta.
As novelas da quarta jornada são todas localizadas em tempos distantes, especialmente nas cortes feudais, em um período obscuro da história medieval que tem no trágico sua melhor representação, contudo a narrativa traz a inovação da voz da burguesia veiculada pela fala feminina que expõe a necessidade da revisão dos valores e dos papéis sociais dos indivíduos, para um mundo mais justo. Na novela de Fiammetta, a desigualdade e o desrespeito aos direitos individuais são os grandes causadores da tragédia. Durante toda a jornada, os amante infelizes desmancham-se em longos prantos, contados pelos narradores e seguidos pelas adoráveis damas (destinatárias e ouvintes dessas histórias); esse choro silencioso e angustiado cela em si outras histórias, o não dito doloroso que só pode ser expresso pelo pranto. Como afirma Roland Barthes em seu “Fragmentos de um discurso amoroso” (1981)
Através das minhas lágrimas, conto uma história, produzo um mito da dor, e a partir de então me acomodo: posso viver com ela, porque, ao chorar, me ofereço um interlocutor empático que recolhe a mais “verdadeira” das mensagens, a do meu corpo e não a da minha língua: “Que são as palavras? Uma lágrima diz muito mais. (Barthes, 1981, p.43)
A fala de Gismunda que reivindica seu direito de amar e sua liberdade de viúva, a propósito, a única situação legal que concedia liberdade à mulher medieval, como observa o crítico Luigi Surdich (2012, p. 144) é repleta de conteúdo ideológico impensável naqueles tempos, pois traz a “reivindicação das necessidades da juventude, a afirmação dos direitos da carne e das pulsões sexuais, a celebração da virtude como atributo de valores individuais e não de prestígio social…. justificadas também em nível narrativo, pela firme decisão de assumir optar pela morte, de modo que fala como se expressasse um ponto de vista póstumo, externo a si mesma. Uma sábia construção narrativa enquadra o discurso, contribuindo a encerrá-lo com a marca da severidade.”” (Surdich, 2012,145, tradução nossa). Essa história, como afirma Fiammetta no início, narra um episódio “desventurado e digno de nossas lágrimas.” (p.242) Desse modo,
O que o Decameron oferece a quem o lê é simplesmente o olhar de um olho adulto sobre o mundo: um olho que sabe se comprimir no riso, mas também encher-se de lágrimas, porque as duas disposições são necessárias para compreender o mundo e aceitá-lo como é /…/ e as personagens femininas parecem sofrer um incômodo pessoal da civilização que as conduz muitas vezes a chorar e não a rir, o que nos convida a refletir sobre a condição de submissão na qual somos obrigadas a viver. As leitoras, então, destinatárias eleitas por Boccaccio, devem fazer um tesouro das lágrimas versadas tanto quanto o fazem do riso: ambos são indispensáveis para se ter os olhos abertos para o mundo e para viver nele com a leveza que o livro sugere. (Nobili, 2013, p.180, tradução nossa)
Apesar da jornada repleta de lágrimas, a obra-prima de Boccaccio propõe abordagens inusitadas sobre os medos e valores medievais, por meio da burla e do riso; o personagem boccacciano é pragmático e capaz de rir das crenças e superstições típicas daquela sociedade. Em um momento de profunda crise humanitária, como a causada pela peste, o autor revisita a tradição literária para renovar a narrativa e reinventar histórias. Em um momento de dor e sofrimento, o “Decameron” busca refletir sobre a vida terrena, em todos os seus aspectos de alegria e de tristeza, propondo a visão do homem novo que desafia as convenções sociais e religiosas, porque crê na própria capacidade de renovar o mundo e transformar situações, com sua palavra-ação renovadora. Dissemos anteriormente que o “Decameron” é uma obra inclusiva e podemos verificar, pelo exemplo acima, que a voz feminina tem força inovadora. O feminino, aliás, a partir da obra de Boccaccio, terá um novo papel na literatura, nem sempre positivo, mas muito mais complexo e profundo.
No início do texto, ainda na moldura narrativa, o autor antes de ceder a palavra aos seus personagens-narradores, esclarece que todos eles sobreviveram à peste, por isso lhes dará apelidos condizentes com suas personalidades, de modo a não os constranger, “visto que hoje são um tanto restritas as leis que regem o divertimento” (Boccaccio, 2013, p.33). E na “conclusão do autor”, Boccaccio retoma sua voz para defender seus narradores e sua narrativa, para desafiar o leitor a servir-se livremente dos exemplos que quiser (se quiser e como quiser) de suas novelas e, finalmente, para alertá-lo que “as coisas deste mundo não têm estabilidade alguma, que estão sempre mudando… “(Boccaccio, 2013, p.628). Esta é a última reflexão do autor antes de encerrar sua obra, ele nos adverte que a impermanência é um dos grandes desafios “deste mundo” e momentos como os da Peste Negra exigem revisão de valores, resiliência e coragem, para romper com antigos hábitos e manter de nossas tradições o que é válido e positivo para nossas vidas.
A narrativa boccacciana, com humanidade e compaixão, propõe essa revisão de valores, selando definitivamente as portas da Idade Média e anunciando os novos tempos do Humanismo e do Renascimento, o tempo do indivíduo como centro da vida.
As epidemias sempre voltam…
Períodos de grandes epidemias são impactantes e traumáticos, mas, como comenta Dal Molin, “se o ambiente pós-traumático for acolhedor, a formação do trauma pode não ser potencializada em um segundo momento, não acrescentar outra experiência disruptiva à primeira.”(Dal Molin, 2016 p. 231). O autor acrescenta que se há falhas no ambiente em oferecer possibilidades de elaboração, no momento pós-traumático, o trauma pode se repetir exaustivamente na tentativa de “metabolização”, de que alguém possa “testemunhar – acolher afetivamente a experiência”, na busca de se reintegrar psiquicamente.
Nelson Coelho Junior (Dal Molin, 2016, p.XVIII) considera que a literatura tem ocupado papel importante na relação com o trauma e com a elaboração do mesmo:
Não por acaso, a literatura de nossa modernidade tardia tem valorizado sobremaneira a experiência do trauma, seja nos relatos que enfocam a memória e o testemunho, seja na forma de certo realismo traumático que valoriza a urgência da dor cotidiana, em diferentes planos. Pode-se dizer que nesses casos, as fronteiras entre a realidade e a ficção ficam muito tênues, já que a partir do trauma os efeitos reais e ficcionais parecem se igualar. É evidente que a escrita literária pode também ser tomada como uma das formas possíveis de elaboração de traumas em seus feitos coletivos e mais propriamente individuais (Dal Molin, 2016, p. XVIII)
Não sabemos ainda se o pior já passou, mas com a chegada dos testes e das vacinas houve diminuição das internações e das mortes. Algumas atividades presenciais estão sendo retomadas. Boccaccio, ao se preocupar com as palavras e ao preservar o verdadeiro nome dos jovens, demonstra o cuidado com o retorno da convivência em sociedade. Esse momento de religação requer tolerância e acolhimento, pois todos estão feridos, todas as vidas foram afetadas e buscam novo equilíbrio para o resgate da coexistência na civilização. Não retornaremos exatamente à dinâmica anterior à pandemia, nem ao distanciamento do último período, estamos em uma nova fase, que contém elementos das fases anteriores, mas que ainda não está definida.
Vale salientar que a experiência da pandemia deixa feridas nos indivíduos, nas famílias e na coletividade e que a retomada das atividades deve considerar o quadro de comoção social existente, pela grande fragilidade psíquica em que nos encontramos, para que essas feridas não se cronifiquem. Em todo mundo, neste momento, temos manifestações pela vida e pelos direitos, algumas exageradas e radicais, como se todos precisassem gritar que estão vivos e querem um mundo mais justo e melhor. O cuidado com o indivíduo é fundamental para o enfrentamento da nova realidade. Assim como fizeram os personagens de Boccaccio, é preciso curar-se pela palavra e também curar a palavra, que pode estar repleta de rancor e sofrimento, para seguir adiante de maneira mais saudável.
A leitura do “Decameron” também oferece a perspectiva de que no decorrer da história as pessoas já passaram por pandemias e a humanidade continuou se desenvolvendo. Como se essa aproximação com a narrativa de Boccaccio também abrisse um canal de pertencimento e de religação, de retorno à tradição pós ruptura; de reconhecimento e resgate das conexões humanas.
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Celi Cavallari é Psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica/PUC-SP. Conselheira da REDUC – Rede Brasileira de Redução de Danos e DH. Consultora Comissão de DH e Drogas da OAB-SP, membro RENFA/Rede Proteção contra o Genocídio e do Coletivo Intercambiantes BR / SP e membra da Abramd Clínica – SP
Doris Nátia Cavallari é professora sênior junto ao Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Italianas da FFLCH-USP. É livre-docente e Mestre pela mesma Faculdade e Doutora pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP-Assis. Realizou pesquisa de pós -doutorado junto à Università degli Studi Chieti-Pescara (2010-2011). Suas pesquisas na área concentram-se em teoria da narrativa, narrativa italiana do século XX, com particular atenção à obra de Ignazio Silone, e sobre Literatura Italiana das origens, dedicando-se especialmente às obras de Giovanni Boccaccio e Dante Alighieri.
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