Dois comentários sobre “Uma ética para uma psicoterapia perversa” de Claude Olievenstein

Ctrl C + Ctrl V. O cuidado com os toxicômanos. uma ética para uma psicoterapia perversa de Claude Olievenstein1

Diva Reale

“Não existe legitimidade senão na referência clínica, não há referência clínica senão a constatada na prática e constantemente corrigida pela experiência.” 

Assim começa este icônico texto do esgotado livro de Claude Olievenstein: A clínica do toxicômano: a falta da falta.

Esta foi a forma que escolhi para abrir o meu corte-copia-cola, reunindo excertos do texto original esgotado de Olievenstein. Espero ter conseguido tornar minha leitura o mais transparente e menos enviesada possível. 

Ele segue num tom crítico face ao que considera teorizações que afastam o clínico de uma apreensão da totalidade da pessoa do toxicômano. O ‘medo da razão’ é tratado como assunto tabu, não-dito, que precisa ser silenciado. Ele conjura aqueles que vão se dedicar a pensar e praticar a clínica do toxicômano a não reduzir tais pacientes a alguma descrição psicopatológica que se preste a emparedar sua experiência e existência numa teoria.

“Ele propõe dois princípios que permitem situar o profissional no campo da toxicomania:
1- jamais se termina perfeitamente (…)
2- nada é mais interessante ao Mundo do que as coisas do êxtase”.

Ele propõe dois princípios que permitem situar o profissional no campo da toxicomania: 

  1. “jamais se termina perfeitamente”.

Ele propõe com esta afirmativa que a cura do toxicômano ocorre dentro de um compromisso negociado, que deve levar em conta “o vivido do toxicômano, sua relação com o Prazer, sua possibilidade de quase ser Deus”. E, claro, não se pode desconsiderar o estado oposto que ocorre no pungente sofrimento do sujeito desintoxicado. 

E lembraríamos ao leitor que a base de sua experiência clínica, a partir da qual ele constrói sua teorização, é com os heroinômanos. 

Daí advém o outro princípio: 

  1.  “nada é mais interessante ao Mundo do que as coisas do êxtase”.

Do êxtase à queda no vazio, desalento e dores profundas e extensas.

Por isso precisa situar a clínica do toxicômano, “como uma clínica da intensidade” e não como “uma clínica da causalidade”.

E com isso “recusar, reduzir todos os aspectos do toxicômano como sendo apenas manifestação de “doença, sintoma e estrutura”. Ele propõe que a injeção da droga é capaz de “desorganizar a ordem epistemológica dos conceitos”, da mesma maneira como desorganiza o estado da consciência sem a presença da substância. O ‘planète’ (a viagem) do toxicômano se faz graças ao pó branco inerte transmutado pelos registros do simbólico, do imaginário e do real.

E ele vai mais longe, abusadamente propondo que a “fulgurância intrapsíquica” é capaz de produzir “mudanças de estruturas”, graças aos “acasos organizadores ou desorganizadores”. E que para abordar o destino do toxicômano, não basta lançar mão das noções da psicanálise, mas é preciso buscar noutros campos como por exemplo da mecânica do fluídos. 

A bagunça cinética dos sentidos, dos afetos e do desvendamento do não dito, não deverá ser engessada numa teorização que não permita uma avaliação sobre o acontecimento.

“O destino do toxicômano começa a nos interessar, quando nos achamos desarmados diante de um indissolúvel duo com o produto tanto real como imaginário”.

Examinando um segundo duo sujeito-dependência nos vemos descobrindo que “esta dependência não é somente um fenômeno passivo físico-químico, mas um fenômeno ativo voluntarista, uma forma de existência”. E desta forma são alinhados como característica deste sujeito toxicômano o estabelecimento de relações capazes de evacuar tudo, desde o estabelecimento do estágio do espelho quebrado, sua busca pela desmedida e o estado de fusão aguda com o produto. 

O terceiro duo se faz quando sujeito desintoxicado experimenta um pungente sofrimento, característico da emblemática e maciça abstinência da heroína. 

“Eis o que vamos abordar e tratar, quando não está mais no auge esta fusão do exterior e do interior, do sujeito e do objeto” […] para tanto o poderemos contar com “a cadeia terapêutica institucional e a palavra”.

Para favorecer o engajamento do paciente é preciso encontrar a justa medida que sustente a esperança sem inebriá-lo com promessas vazias. 

As condições de possibilidade para o estabelecimento de uma “Democracia Psíquica” incluem um caminho no fio de navalha que só torna “concebível [..] e aceitável […] exercitando a ética”.

O sofrimento emblemático da síndrome da abstinência, da heroína exige um manejo psicofarmacológico e clínico balanceado. Ao mesmo tempo precisa ser firme e delicado para assegurar que o terapeuta  não se torne cúmplice da troca de “uma dependência [da sustância ilegal] por outra dependência” [de substância prescrita]. 

“A cura do sofrimento do toxicômano não se restringe à eliminação da presença da droga em sua vida, limitada a uma mudança de comportamento.” 

Mas a falta de que sofre o toxicômano – sempre se referindo ao heroinômano – é anterior e mais além da falta da substância – objeto ao qual é adicto. Ele porta “uma palavra e um afeto proibidos”, pois há nele um aspecto perturbador dando a impressão de que este sofrimento é decorrente de uma busca de prazer indefensável, por uma conotação moral associada à busca e manutenção do ato de drogar-se. Antes que ele possa prescindir de uma forma estável da droga em sua vida, a “passagem ao ato, “recaída” ou “suicídio” se constituem em “sinais-sintoma da perseguição de que ele sofre”.

Esta intensa vulnerabilidade é melhor acolhida quando o terapeuta “abandona sua onipotência” e se mostra capaz de oferecer-se “nu como sujeito” – que nós preferimos traduzir como presença viva, seja diante da “recordação embelezada” do flash – êxtase do efeito agudo da droga, sobretudo injetada – e “do sofrimento atual e futuro” da luta pela aquisição e manutenção da abstinência. Isso será alcançado por meio da “elaboração de uma lei que será renúncia, onde coexistem o sensato e o insensato, o estável e o instável, o espelho e sua ruptura”.

Durante este processo de idas e vindas, ligação e ruptura, uso e abandono da droga, uma ameaça é que se instaure o sadomasoquismo, “caricatura do prazer e dependência mais ativa do que com o produto”, introduzindo o real na fantasia surgida do prazer.” 

A cura do sofrimento do toxicômano não se restringe à eliminação da presença da droga em sua vida, limitada a uma mudança de comportamento. 

Diante de uma falta radical, anterior àquela necessária e suportável quando o desenvolvimento emocional atingiu o registro edípico, o trabalho terapêutico não vai se traduzir pelo ato de “desfazer os nós do indizível”; será necessário “entrar no domínio da opinião”.

Termos como “engodo e mentira ineficazes”, “paraíso do artifício” ou mesmo “uma atividade legisladora por consentimento mútuo” indicam que Olieve não estava familiarizado com a ideia de que a sustentação da ilusão é um elemento necessário da constituição psíquica saudável. 

Uma vez que tal conceito é conhecido e adotado, o posicionamento subjetivo a ser adotado pelo terapeuta não precisará ser associado ao termo perverso. Mas com isso foi necessário fazer um cross-over conceitual, uma vez que este termo indica uma aproximação teórica freudiana ou lacaniana, e neste comentário foi adotada uma aproximação winnicottiana; daí é possível rescindir desta ideia de perverso.  

Neste trecho a seguir Olieve descreve algo que poderia ser traduzido em linguagem winnicottiana como sendo a necessidade do holding: “a arte do terapeuta, intraduzível pela escrita, consiste, de alguma maneira, em fornecer uma imunização contra a intensidade do afeto doloroso [grifo nosso], que incita o sujeito a causar medo aos outros para deixar de sentir medo”. Ele também descreve um mecanismo de defesa inconsciente: a identificação projetiva. 

Ele também afirma que “neste estágio, o sujeito tem necessidade de partilhar suas fantasias e não somente compreender. Mas o terapeuta deve saber que só se trata de um estágio” [..] caberá ao terapeuta “transformar o conteúdo fantasmático aterrorizador em um conteúdo simbólico mais aceitável pelo real.” 

Esta descrição o aproxima daquilo que Bion nomeia de reverie, uma operação psíquica que a mãe suficientemente boa é capaz de fazer com o seu bebê. O terapeuta olievensteiniano deverá ser capaz de fazer o mesmo com seu paciente toxicômano.  

Quando ele fala de ‘atividade legisladora por consentimento mútuo’ protagonizada pelo terapeuta, ele descreve fenomenologicamente o processo da aquisição de posições intermediárias entre a relação de dependência do produto, relação de dependência do terapeuta, em direção à autonomia. E isso se dá entre idas e vindas, entre manutenção e ruptura da continuidade da relação. 

“O que o paciente quer ao chegar é recuperar o estado inicial de encontro com a droga, antes da instalação do estado de dependência; em suas palavras ‘o sujeito mente a si próprio, embora estando consciente de que mente para si como mente ao terapeuta’ ”.

“Esta partilha abre novas dimensões para o imaginário em ação do toxicômano, não sendo mais do que a possibilidade entreaberta de seduzir o terapeuta. A relação lhe oferece assim uma semisupressão progressiva da dependência.”

A partir disso ele justifica a substituição da “atitude de escuta silenciosa” própria do analista por uma relação cuja “cinética está na sedução-dessedução, no compromisso instável, no acme e na escansão, no duo que se faz para se desfazer”. 

 E ele reafirma “não se trata aqui nem de compaixão, nem de reconforto, mas a técnica terapêutica tem sempre como objetivo a independência psíquica do sujeito, pela técnica dos compromissos sucessivos”. 

“Partindo disso, o terapeuta enfrentará a insaciabilidade do sujeito, sua intolerância desmesurada à passagem do tempo, porque subsiste este terceiro excluído. Trata-se então de introduzir um terceiro que assume, pouco a pouco, o lugar do produto.”

O que o paciente quer ao chegar é recuperar o estado inicial de encontro com a droga, antes da instalação do estado de dependência; em suas palavras “o sujeito mente a si próprio, embora estando consciente de que mente para si como mente ao terapeuta”. 

“O terapeuta deve aceitar que a cinética de uma relação meio-cúmplice, meio-perversa permite ao sujeito construir, de alguma maneira, um novo edifício psíquico mais ou menos sólido.” 

Deve-se dizer que há algo um tanto mágico em um tal tipo de relação, magia que tenta substituir a produzida pelo produto e onde o imaginário relacional, embora redutor, ocupa, em parte, o lugar do sonho acordado induzido pela droga, tomando contato com a realidade, por um aprendizado progressivo em uma certa segurança.” 

Aqui fica implícito o conceito de ilusão a ser sustentado, pela atitude e holding. É preciso favorecer o reaparecimento da capacidade de sonhar. Para isso “não é somente a palavra que tem função criadora possível”. É preciso lançar mão da ideia da “atmosfera e melodia” modulando a relação terapêutica para “libertar o sujeito da identificação imediata e algumas vezes mortal com suas imagens”; e muitas vezes “é o próprio excesso da relação que responde ao excesso do desejo.”

“Poder-se-á assim chegar a uma nova etapa do processo, a um novo estatuto do toxicômano: depois do produto, é a falta, depois o sofrimento que perde sua exclusividade, sua onipotência”.

Para que isto seja atingido, coube à relação terapêutica ser capaz de “seduzir e instruir, induzir à dependência e incitar a separar-se dela. Maneira que permite, mas não muito, ao sujeito ser carnívoro para com seu terapeuta, para incorporá-lo em lugar do produto, para que o sujeito aceite um desconhecimento de si mesmo e uma redução, desde que ela possa aliviar um pouco seu sofrimento”. 

E aqui ele distingue a psicoterapia especializada: “tecnicamente, trata-se de uma manobra de guerra que nada tem a ver com a lentidão temporal de uma cura analítica: é preciso vencer o obstáculo, contornar a resistência, seduzir, confortar, matraquear, fazer mal, partilhar, rejeitar, zombar. Em suma, deixar pouco lugar para a angústia, para a memória das passagens ao ato perverso e inverter a relação do passado com o futuro.” 

“[…] não se trata da intrusão sádica dos próprios valores do terapeuta.”

“Para que este projeto parcial possa ser bem sucedido, para que não haja engano, é preciso introduzir elementos de moral social e de ética de vida. Visto que Olieve acabou de usar da metáfora do trabalho de parto, a ideia do nascimento pode associar-se ao desenvolvimento de aspectos ainda não vivenciados ou atingidos previamente e que precisarão ser experimentados e às vezes testados na relação com o terapeuta. Neste momento o trabalho se assemelha aquele que é necessário de ser feito com adolescentes. [Reale, 2002]. E para não ser mal-entendido Olieve alerta: “que não se trata da intrusão sádica dos próprios valores do terapeuta.”

Espera-se que “à angústia revoltada de um não-eu poderá responder, pouco a pouco, um eu inserido na cultura, o que torna possível uma certa renúncia a uma identidade fusional percebida no momento do espelho quebrado e tão procurada no e pelo descomedimento.”

A substituição da onipotência por uma tolerância do não-saber, estado no qual “o próprio futuro se torna instável, no sentido de que não se espera grande coisa dele, exceto o não-retorno a um limiar insuportável de sofrimento”. 

Quando isso acontece um grande passo foi dado, “uma vitória sobre a morte e a loucura, trazendo ao sujeito uma segurança que ele nunca conheceu”.

Tal como Freud, Olieve também propõe que a cura daquilo que possibilitou a instalação da dependência trará necessariamente à baila a questão do desejo sexual que “não terá mais a imprecisão andrógina do tempo em que o toxicômano buscava no objeto sexual uma unidade identificatória”.

Após uma longa digressão, onde ele adota um tom um tanto hermético e enigmático, ele retoma o fio da meada do que acontece quando a terapia especializada se aproxima do seu final possível ou desejável.  

“Então, a recordação dos efeitos do produto poderia ser metabolizada de uma outra forma: ao se apoiar sobre o lado interrompido dos efeitos do produto, o sujeito é auxiliado a relativizar as atmosferas, as melodias, inclusive as de angústias e de sofrimento. Elas continuam a existir, porém são relativizadas. Isso se faz fora de qualquer urgência psíquica. Então, onde havia escansão e acme, se reintroduz o tempo, podendo-se explorar de uma outra forma o espaço psíquico. Mas nada será jamais linear e é o arcobotante institucional e psicoterápico que deve ser um modelo de prática “democrática” em espelho, […] um lugar e um tempo onde a harmonia e a música são relativamente felizes. O que conta é tanto o modo de fazer como o fundamento de todo o trabalho dito terapêutico.”

Esta última frase ressalta o quanto o modo de fazer tem de estar em consonância com o fundamento. Estaria ele trazendo à baila aquilo que sabemos embasar a chamada teoria da técnica? Ou estaria lembrando que o fundamento para o modo de fazer se alimenta da teoria psicopatológica que subjaz a formulação de hipóteses de como a saúde não se instaurou e a psicopatologia se instilou? Além disso, a teoria também deveria descrever aspectos relacionais e objetais subjacentes ao adoecimento, razão para que se façam as adaptações da técnica. Do ponto de vista olievensteiniano a prática democrática em espelho, se faz pela relação psicoterápica entrelaçada com os dispositivos institucionais que são recrutados no projeto terapêutico de cada paciente, decididos pelo terapeuta-líder a partir da consolidação da informação do que se passa com o paciente nos vários momentos e relações terapêuticas. 

“É verdade que, no estado atual de nossos conhecimentos, não fazemos mais do que aflorar os mecanismos instaurados pela toxicomania, porém não é menos verdadeiro que entre o biológico, o relacional e o psíquico existe uma trama associativa, onde a rede psíquica e a parte voluntarista (confere a aprendizagem da leitura ou da escrita) têm um papel fundamental.” 

Curiosamente neste trecho surge um dos sentidos para o termo voluntarista, que tem uma centralidade em seu pensamento. Ele pede que tomemos por referência para entender o significado de voluntarista a situação de aprendizagem da leitura e da escrita. Para que este aprendizado ocorra é necessário que a criança faça um movimento ativo de apreensão: dirigir-se ao objeto – de conhecimento – para apanhá-lo e assim apreendendo-o, aprender. O início do aprendizado se dá pelo entrelaçamento entre o desejo e a iniciativa. 

Uma complexa trama entre desejo e gesto propicia a abertura para o processo da assimilação e aprendizagem. O que aprendemos com nossos pacientes é que o processo que leva à cura sofre uma inflexão fundamental quando ocorre uma abertura para o gesto de tomar para si, atitudes ou manejos que podem permitir não apenas atingir e manter a abstinência ou controle do uso. Além do acerto de contas da forma possível ou necessária de relação com a droga de eleição, sabemos que é também necessário instituir outros gestos e iniciativas que permitam trilhar um caminho de reaquisição de uma existência produtiva e amorosa para além da droga.

A droga […] “este objeto inerte (capaz de) produzir o prazer e o imaginário, produção que não é redutível nem a uma fantasia nem a um processo físico-químico”. 

“A ética do terapeuta se traduz por uma atitude modesta, relativa; abdicando de apregoar “critérios normativos sobre os valores do prazer e do encontro de Deus, não se tratando o uso dos produtos como bom ou mau.”

Entendemos que ele cria uma relação em espelho entre a ‘democracia psíquica’ – a ser construída – e a trama da articulação terapêutica pelo aporte da psicoterapia e dos elementos institucionais. Lançará mão destes recursos para enfrentar a maior aventura de todas uma vez que foi ‘iniciado: “Renuncia(r) a uma iniciação totalitária por uma nova iniciação que é uma vitória com as dimensões do homem […]. Aprendendo a esperar, ele aprende também a lei, como a possibilidade de um outro espelho, aderindo a ele, mesmo na ambivalência como um outro saber que é tão válido como aquele que o levou. Para ser desintoxicado, não existe outro caminho, outra imperiosa necessidade do que a substituição da dependência do produto pela dependência a esta relação terapêutica, em um primeiro momento; depois, a aprendizagem da democracia psíquica, em um segundo momento. E é extremamente difícil, quando se levou sua existência e seu imaginário ao extremo, renunciar e tornar-se um homem qualquer.”  

E assim Olieve vai descrevendo os términos possíveis da psicoterapia do toxicômano.

 “Aprendendo a esperar, ele aprende também a lei…”

Para ser desintoxicado, não existe outro caminho, outra imperiosa necessidade do que a substituição da dependência do produto pela dependência a esta relação terapêutica, em um primeiro momento; depois, a aprendizagem da democracia psíquica, em um segundo momento.”

Mas nem sempre as coisas terminam muito bem… pois “um certo número de toxicômanos renuncia ou pára a meio-caminho, tornando-se adeptos dependentes de personalidades carismáticas […]”. 

A ética do terapeuta se traduz por uma atitude modesta, relativa; abdicando de apregoar “critérios normativos sobre os valores do prazer e do encontro de Deus, não se tratando o uso dos produtos como bom ou mau. Além disso cabe ao terapeuta se encarregar das situações de sofrimento, deixando à livre escolha de sua vida a qualquer sujeito que se entregue a ele. E … “isso não deve ser esquecido jamais.”


1 Reproduzido a partir de Olievenstein, C. O cuidado com os toxicômanos. uma ética para uma psicoterapia perversa. In: A clínica do toxicômano: a falta da falta (1990). [tradução Francisco Franke Settineri. Porto alegre, Artes Médicas. p. 116-125.


Comentários

Atividade do psicoterapeuta: uma proposta olivensteiniana de holding

Diva Reale

A escolha deste texto “Cuidado com os toxicômanos: Uma ética para uma psicoterapia perversa”? levou em conta sua importância para conhecer o pensamento clínico de Olievenstein. Nele está presente seu estilo provocativo, o que pode explicar o quanto este texto se tornou lido e citado. Além de ter certo “apelo pop”, ele oferece uma visão mais direta de um conjunto de qualidades do contato e da relação médico ou psicoterapeuta e paciente que são defendidas como necessárias ou desejáveis para aumentar a chance de sucesso terapêutico no tratamento dos chamados grandes toxicômanos. 

Por outro lado, as cores mais primárias de seus argumentos deixam entrever um interlocutor que exercia forte efeito sobre Olievenstein. Podemos inferir quem seria este interlocutor implícito partindo daquilo que parece ser uma defesa de sua abordagem fenomenológica e clinicamente testada frente ao campo teórico lacaniano, época ainda sob vigorosa influência estruturalista.

Nos tempos atuais poderíamos considerar que parte dos argumentos perdeu potência ou pertinência em virtude do grande desenvolvimento, nas últimas décadas, do campo formado pela psicanálise e pelas práticas psicoterápicas psicodinâmicas de inspiração psicanalítica. Esse desenvolvimento resultou na ideia de clínica ampliada ou extensão da clínica (Herrmann, 2003), que busca adaptar os enquadres (Bollas, 2013) e as formas relacionais (Slochower, 2009) a fim de dar conta de casos e situações clínicas que não eram atingidos nos moldes de trabalho mais convencionais — nessa categoria de pacientes difíceis que requerem adaptações e associação de modalidades terapêuticas (Reale & Carezzato, 2017) incluem-se certamente os grandes toxicômanos tratados em Marmottan. Lembremos que desde os primórdios da psicanálise há autores que se dedicaram a estender e adaptar a psicanálise para pacientes e contextos além daqueles atendidos em consultório privado. (Ferenczi, 1932/1990; Mendoza, 2011). 

Portanto, do ponto de vista da diversificação de práticas psicoterápicas e analíticas contemporâneas, tornou-se obsoleta a contraposição entre o tratamento analítico clássico (pautado fundamentalmente na neutralidade, abstinência e interpretação da/na transferência) e a forma singular proposta como específica para envolver o grande toxicômano numa relação psicoterapêutica.

A psicanálise se expandiu, levando aqueles que se preocupam simultaneamente com sua preservação e inovação a buscar seus traços definidores em meio a tantas formas de manifestação (Green, 2003). Se alguns encontram no método a singularidade dessa prática (Herrmann, 2003), outros propõem que se faça psicanálise quando possível ou outra coisa que o paciente necessite (Winnicott, 1999).

“O quão mínimo podemos fazer para ajudar”

Winnicott, em particular, expandiu os modos de fazer psicanálise, justificando as variações da técnica como resultando da necessidade de adaptar o trabalho a partir de sua teoria do desenvolvimento emocional primitivo (DEP). Outra razão, menos alardeada, mas decerto proeminente, é que sua prática como pediatra em instituição pública o colocava em contato com milhares de crianças e adolescentes em situações de consulta muito diferentes da situação de uma análise praticada em consultório privado. E a expansão proposta por ele resultava da resposta dada por um analista criativo, sensível às necessidades dos pacientes, que levava em conta o ambiente onde a experiência clínica se construiu original. 

Chegamos a um primeiro ponto em comum: Olievenstein, um psiquiatra sensível às necessidades de seus pacientes — grandes toxicômanos — num contexto de consultas em um hospital público. “O quão mínimo podemos fazer para ajudar”, dizia Winnicott, mas a frase poderia perfeitamente ter sido proferida por Olievenstein. A duração da internação foi concebida para assegurar que um mínimo de tempo fosse gasto com a desintoxicação, para que a dependência física se resolvesse com presteza. Nenhuma concessão se fazia à tendência do paciente de regredir à dependência, estado que poria em risco a necessária distinção entre os sintomas físicos e psíquicos comuns à travessia da dolorosa abstinência da heroína, de um lado, e, de outro, os meandros de maior complexidade do acerto de contas que a dependência psíquica exige.

Quando o paciente não tinha condições de inserção social e/ou econômica para continuar o tratamento, surgia a indicação de uma temporada de acolhimento em serviço de pós-cura. Esse tempo era garantido para permitir que ele pudesse reorganizar, recuperar ou desenvolver recursos para retomar uma nova vida, longe da droga de eleição. 

Para que o paciente possa conquistar os recursos psíquicos que lhe permitam estabilizar-se nessa vida almejada, um trabalho de natureza psicoterápica precisa ser feito. A psicoterapia sobre a qual Olievenstein discorre nesse texto é aquela praticada dentro da cadeia terapêutica que constituía o modelo de cura francês, cujo centro era o hospital público Marmottan. 

Poderíamos ficar tentados a pensar que a qualidade ressaltada como intensidade, que segundo Olievenstein substituiria a psicanálise pautada na ideia de estrutura psíquica, seria uma forma de substituir ou compensar a impossibilidade de assegurar a continência oferecida em condições de atendimento numa instituição pública, mais limitado em sua capacidade de prover sessões frequentes, sendo muitas vezes difícil manter até mesmo um ritmo mínimo de sessões semanais.

A proposta para o psicoterapeuta é que ele se coloque de forma a ser ativo, driblando a lentidão analítica agravada pela dificuldade de instituir uma situação de produção de associação livre, interrompida pelo risco iminente de angústias maciças, que se manifestam pelas frequentes e notórias passagens ao ato. 

Frente a este alto risco ele concebe que a atividade do psicoterapeuta venha a contornar o obstáculo da “resistência” (provocada pelo anestesiamento da consciência produzido pela droga ou pela “memória embelezada” do prazer da droga, diria Olievenstein). Para isso, vale seduzir, reassegurar, matraquear, fazer mal, compartilhar, rejeitar, “ficar na moita”. Essa atividade preconizada para o começo do tratamento tem por finalidade reduzir ao mínimo o espaço para a angústia e evitar a recaída pela angústia (afeto negativo) ou pela alegria/excitação (afeto positivo). As frases “bebo para esquecer” (algum acontecimento negativo) e “bebo para comemorar” (acontecimento positivo), usadas pelo senso comum para desqualificar as razões do alcoólatra para beber, oferecem, ao contrário, uma excelente evidência da pouca capacidade para processar variações de afeto, experimentadas como excesso pulsional que leva ao transbordamento manifesto na recaída. 

Olievenstein apresenta três duos indissolúveis que desafiam o psicoterapeuta, fazendo às vezes de uma resistência de porte considerável: 

  1. Duo indissolúvel do sujeito com o produto, a droga, real e imaginária.
  2. Duo do sujeito com a dependência. 

Aprendemos com os pacientes que a dependência não é um fenômeno apenas passivo, físico-químico, mas ativo — ou voluntarista, como nomeia Olieve. É um modo de existência, uma relação com a vida que permite evacuar aquilo que sabemos serviu para formar o sujeito toxicômano desde o espelho partido. A busca pela desmedida se forma a partir do estado do espelho partido, culminando no flash da experiência fusional com a droga, base da repetição que configura o estabelecimento da dependência.

  1. Duo do sujeito com o sofrimento da desintoxicação.

O que religa os três duos é uma memória mais ou menos censurada, que evoca o prazer e a falta de forma impiedosa e desmedida, isto é, isolada e não comunicável entre si. Tal lembrança introduz uma culpa modificada: o erro está na falta, a falta é seu erro. 

A existência dessas poderosas experiências sensoriais, que não se deixam comunicar apenas por palavras, configura um excesso de sensorialidade e pulsionalidade que convoca uma abordagem terapêutica amplificada: a palavra aliada ao manejo dos recursos oferecidos pela cadeia terapêutica institucional. 

O trabalho do psicoterapeuta se estabelece com o início da queda do ápice, atingido pela fusão do exterior com o interior, do sujeito com o objeto. Ou dito de outra forma, o trabalho do psicoterapeuta se constitui quando a montagem toxicomaníaca fracassa em seu intento de oferecer um modo de existência autossustentável (Reale, 2015). 

“Esse estado de ‘busca do prazer perdido’ pode explicar parcialmente o caráter compulsivo que o uso de doses crescentes adquire para muitos usuários problemáticos […]”

Lembremos que a base para construir sua teorização vem da experiência clínica com os heroinômanos, o que é sempre enfatizado por Olievenstein.

Vejamos o que colhemos em nossa experiência com cocainômanos. Inúmeros pacientes, cocainômanos de longa data, relatam seu pesar de não serem mais capazes de experimentar o mesmo prazer que antes era associado ao efeito da droga. Esse estado de “busca do prazer perdido” pode explicar parcialmente o caráter compulsivo que o uso de doses crescentes adquire para muitos usuários problemáticos, pois não seria aceitável creditar esse aumento apenas ao mecanismo psicofarmacológico da tolerância, sobretudo em pacientes que fazem uso regular e contínuo da substância. E nunca é demais lembrar: se os aspectos subjetivos não interferissem nos efeitos da experiência pessoal com droga, não haveria razões para as diferenças nos padrões de consumo.

A compreensão sobre a existência de poderosos mecanismos projetivos em ação permite ao terapeuta não reagir simplesmente aos desafios colocados na relação com o paciente; tal como descrito por Olievenstein, o terapeuta poderá fornecer uma relativa imunização contra “a intensidade do afeto doloroso, que incita o sujeito a causar medo aos outros para deixar de sentir medo” (Olievenstein, 1990, p. 120).

Olieve propõe que o imaginário em ação do toxicômano convoca uma postura ativa do terapeuta. Essa atividade seria uma forma de proteger  ambos e a relação terapêutica dos efeitos de uma postura reativa do terapeuta, esta, sim, indesejável. Como aprendemos com Winnicott reagir é perder a continuidade da forma de ser emocionalmente conhecida; é pôr em risco o vínculo estabelecido ou que está se estabelecendo. A relação terapêutica deve ser capaz de suportar pelo tempo necessário uma posição meio-cúmplice, meio-perversa, para que um novo edifício psíquico possa ser construído. 

Bollas oferece, em seus dois artigos (1992a, 1992b), uma apresentação da função múltipla do analista; ao longo das sessões, a relação e as intervenções do analista acabam por se prestar à provisão de objetos analíticos capazes de provocar o surgimento e desenvolvimento de expressões que caracterizem manifestações do verdadeiro self do paciente.

Isso fica mais fácil de reconhecer quando o psicoterapeuta em questão é um analista cuja formação o capacitou para uma leitura dos movimentos transferenciais e contratransferenciais. A partir dessa leitura formam-se aos poucos hipóteses psicodinâmicas que podem servir de guia para a condução das intervenções. No caso do psicoterapeuta olievensteiniano com formação psicanalítica, as operações podem ser entendidas como parte daquilo que é englobado pelo termo holding. Oferecer continência (Slochower, 2009) implica uma vastidão de ações (incluindo, no limite, uma presença silenciosa, algo pouco usado nos períodos iniciais do tratamento dos grandes toxicômanos). Por período inicial estou me referindo a uma etapa na qual o paciente precisa cumprir a primeira grande tarefa do tratamento de um grande toxicômano ou grande adicto: tornar-se capaz de adquirir maior controle e estabilidade num uso menos propiciador de sintomas, ou em algumas situações ser capaz de sustentar a abstinência total em relação à droga de eleição.

É consenso entre os clínicos especialistas em adição a drogas que dificilmente o paciente — sobretudo o grande toxicômano — consegue adquirir a capacidade de manter um uso controlado (Zimberg, 1984) sem antes ter sido capaz de sustentar um consistente período de abstinência (Reale & Carezzato, 2017). Da maneira como a psicoterapia específica é apresentada, seu principal objetivo seria assegurar que o paciente se desvencilhe do estilo de vida aditivo (Marllatt, 1993). Isso se dá quando a montagem toxicomaníaca vai desmanchando o que permite que o paciente dê seus primeiros passos para a construção de uma vida que pare de gravitar em torno da droga e se robusteça contra o imperativo da desmedida, das passagens ao ato, que antes o desorganizavam e sinalizavam a insuficiência de recursos psíquicos e de defesas mais desenvolvidos.

Uma questão final pede problematização: como é o término dessa psicoterapia específica? O tema da alta constitui comumente um não-dito, ou simplesmente um problema não resolvido nos serviços de saúde mental. 

No contexto em que essa psicoterapia foi descrita e desenvolvida — um hospital público, especializado no tratamento de toxicômanos —, o término pode sobrevir à conquista de alguma estabilidade no “desmanche da montagem toxicomaníaca”, atestada pela construção de uma vida que não ocorra em torno da droga, saída da vida restrita em torno do círculo vicioso da droga (o estilo de vida aditivo): busca da droga/recursos para financiar a droga, período dedicado ao uso, recuperação dos efeitos, abstinência, reinício do ciclo. 

No texto “O lugar e objeto das terapias transicionais no tratamento dos grandes toxicômanos”, Olievenstein (1990, p. 114) é categórico: “Com o avanço da cura, deve-se estabelecer a evolução para a ortodoxia”. E ele continua respondendo a um interlocutor, a meu ver um psicanalista ortodoxo (francês? lacaniano?), que exige explicitação dos limites dessa psicoterapia específica: “O sujeito que tiver feito um tal caminho […] não poderá terminar seu percurso com este terapeuta transicional”. Quando seu “Ego ortopédico” estiver suficientemente consolidado, prossegue Olievenstein, empregando a expressão usada por Lacan para desqualificar as psicoterapias vis-à-vis à psicanálise, “o toxicômano escolherá por si mesmo abandonar sua identidade. Das duas, uma, ou se contentará com esta cicatrização, ou irá adiante, fazendo a escolha de uma análise ortodoxa” (Olievenstein, 1990, p. 114-115). 

Um primeiro ponto a considerar: como não era psicanalista, Olievenstein não poderia dar outra solução para o final da psicoterapia específica. 

Um segundo ponto: essa distinção entre a psicoterapia especializada e a psicanálise ortodoxa, faz sentido se pensarmos que ele propõe um término de tratamento numa instituição pública, onde comumente predominam psicoterapeutas sem uma formação psicanalítica propriamente dita. Ele não podia prever todo o desenvolvimento do campo das psicoterapias e da psicanálise, que se ampliou com a experiência clínica acumulada nos últimos 30, 40 anos. Nem que surgiriam novas formas de responder às necessidades psicopatológicas das novas configurações subjetivas dos pacientes contemporâneos; o volume considerável de publicações dedicado a essa construção atesta este desenvolvimento.

Entendemos que a diversificação de interesses e relações, bem como a capacidade de dar início à sustentação em alguma medida de uma vida produtiva e amorosa, indica a saída da montagem toxicomaníaca. A consolidação dessa conquista e a ampliação do escopo das demandas que podem surgir durante essa fase, pode estabelecer as condições para uma transição da psicoterapia específica, através do estabelecimento de novos ajustes relacionais, modificando as condições do holding e, eventualmente, do enquadre, na direção de uma psicoterapia psicanalítica mais comum. Esta direção será sustentada se houver uma potência terapêutica que permanece viva e torne viável o ajuste relacional entre paciente e analista para viabilizarem juntos esta nova etapa. 


REFERÊNCIAS

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Da opinião à alteridade: a clínica transicional de Olievenstein

Marcelo Soares da Cruz

O campo do tratamento das dependências de drogas se constituiu historicamente por uma série de tendências distintas, que deram origem ao heterogêneo e até divergente cenário contemporâneo. Entretanto, apesar dessa diversidade, uma preocupante nota comum perpassa as diferentes abordagens. Nota-se um achatamento, na percepção de quem trata, da complexidade de dinâmicas psíquicas envolvidas no drama relacionado aos diferentes enlaces com as drogas. As dimensões biográfica e subjetiva têm sido profundamente negligenciadas pelas propostas de atenção seja de políticas públicas, seja de ofertas clínicas. Em seu lugar, tem prevalecido uma simplificação perigosa, na qual a evidência estatística se sobrepõe à polissemia, capaz de ser absorvida apenas pela porosidade sensível de um clínico apto a considerar, de forma complexa e profunda, o paciente que sofre pelas consequências de sua dependência. Diante desse panorama, torna-se relevante revisitar as contribuições de Claude Olievenstein em “Cuidado com os toxicômanos: Uma ética para uma psicoterapia perversa”, texto que se mantém como referência viva, embora escrito na década de 1980. 

“o tratamento se caracteriza pelo foco na pessoa concreta, no sofrimento concreto e na palavra concreta, não em abstrações conceituais ou em um paciente etéreo”

Nesse trabalho, o autor enfatiza a primazia da experiência clínica como norte do fazer psicoterapêutico. Frisa a necessidade de explicitação dos não-ditos, elementos que compõem o campo de adoecimento no qual a toxicomania é fomentada. Nesse sentido, o tratamento se caracteriza pelo foco na pessoa concreta, no sofrimento concreto e na palavra concreta, não em abstrações conceituais ou em um paciente etéreo. Dessa forma, é possível aproximar a postura do autor ao trabalho desenvolvido por Bleger (1984/1963) a partir dos estudos de Politzer (1975/1928, p. 27), que destaca o drama humano como acontecimento concreto, compreensão psicanalítica de que toda manifestação humana é dotada de sentido emocional, advindo de relações concretas. Ponto fundamental nessa obra candente de Olievenstein é o ensinamento e a preocupação de não tomar o paciente toxicômano pela metade e de evitar conluios falsos ou exigências impossíveis, a fim de que a pessoa possa ser reconhecida integralmente.

Tal reconhecimento, no caso das toxicomanias, implica abrigar ambiguidades centrais da dinâmica desses casos. Essa ambiguidade se expressa na contraposição de dois fundamentos apresentados pelo autor: “jamais se termina perfeitamente” (ou seja, as coisas da vida nunca são totalmente acabadas) e “nada é mais interessante ao mundo do que as coisas do êxtase” (Olievenstein, 1990, p. 116). Tais imagens refletem o impasse dramático a ser manejado na clínica da toxicomania. Por um lado, não há como promover um tratamento sem um compromisso negociado. Por outro, esse compromisso não pode ser negociado sem considerarmos a vivência do paciente — sua experiência de quase ser Deus, mesmo que por um átimo, e, sobretudo, o sofrimento do indivíduo desintoxicado. Esse prisma traz lucidez ao trabalho clínico no campo das dependências, pois permite abrigar paradoxos e reconhecer o sofrimento envolvido nas negociações possíveis, não idealizadas, tampouco ideológicas. Perspectiva que caminha na direção oposta ao olhar simplificador ou que dê margem para ofertas sedutoras de cura imediata ou total.

Um aspecto rico para a abordagem das toxicomanias e outras adicções é o reconhecimento de Olievenstein de que essa clínica está situada muito mais no campo das intensidades do que dos sentidos ou das causalidades. O autor adota um ponto de vista epistemológico marcante ao enfatizar a necessidade de se admitir o caos como científico na composição psicopatológica da toxicomania. Segundo esse norte clínico, teorizações não operacionais ou qualquer outro a priori organizado de compreensões sobre o paciente levam a uma rigidez que ofusca a capacidade de avaliação sobre o acontecimento clínico. 

Com essa ressalva, que visa à transmissão de uma postura vívida, perspicaz e não dogmática frente ao surgimento do acontecimento, claramente anunciada no texto em questão, o autor propõe uma compreensão sobre as origens biográficas da toxicomania. Acerca da personalidade do paciente, Olievenstein (1990, 2003) estabelece uma importante distinção entre usuários de drogas e toxicômanos verdadeiros. Os simples usuários não possuem traços comuns específicos em sua infância e história pessoal. Todos podem experimentar algum tipo de droga, sem se tornar necessariamente dependentes. A manifestação ou a construção da toxicomania, por sua vez, reside na conjunção de diversos fatores: o encontro de um produto (inerte e inanimado em si), de uma personalidade e de um momento sociocultural, afirma ele. A toxicomania é um fenômeno complexo, e não pode haver dependência sem que haja uma relação estreita e permanente entre os três parâmetros mencionados. Além desses fatores, Olievenstein frisa o papel da vivência da falta no ser humano, que sempre remete à falta inerente a todos nós e determina a especificidade da dependência humana.

A partir de um olhar eminentemente clínico sobre os componentes mais profundos do indivíduo, o autor levanta um dos desafios mais relevantes relacionados às toxicomanias: o campo do sofrimento borderline. Muito frequente nos consultórios atualmente, esse tipo de sofrimento ocorre em marcante comorbidade com a dependência de drogas, em um contexto de predomínio das intensidades em detrimento dos sentidos (Ancona, 2006). 

Essa comorbidade revela uma intersecção entre os dois campos: no percurso de constituição de uma toxicomania, percebe-se um drama bastante próximo das inconstâncias e insuficiências presentes no sofrimento borderline (Cruz, 2012, 2016). No caso das toxicomanias, segundo Olievenstein, o fenômeno físico-químico é acompanhado por outro, ativo e voluntário. Este último se torna uma forma de existência e permite esvaziar tudo que chega ao sujeito depois do estágio do espelho quebrado (Olievenstein, 2003), buscado de maneira desmedida e encontrado na relação fusional com o produto. 

A experiência da falta, para essas pessoas, é ao mesmo tempo individual, incomunicável e verdade do mundo, aponta o autor. É requintadamente dolorosa, mas nem por isso melancólica, pois, mesmo que sejam expostos à incompletude, à solidão e à inelutabilidade da morte, tais indivíduos vivenciam essas experiências de maneira fusional com o produto, e não a partir de um trabalho de luto. Trata-se de fusão entre exterior e interior, sujeito e objeto (Olievenstein, 1990), condição bastante próxima da dinâmica dos pacientes fronteiriços. É essa experiência que traça o destino do toxicômano e o restitui a um estado de dependência humana que na realidade é totalmente irredutível ao seu embasamento psicoquímico. 

Também é essa vivência que explica, em parte, a diferença entre toxicômanos e usuários recreativos. Para os primeiros, a experiência de unidade é fugaz, logo emergindo uma identidade vacilante e oscilante. A partir desse momento, o indivíduo passa a ser ao mesmo tempo normal e psicótico, normal e perverso (Olievenstein, 1990). 

A memória do instante em que ainda havia a fusão mantém-se muito forte e acarreta a idílica busca de uma revivescência desse momento. É esse esforço de reencontro que o autor denominou de “estágio da desmedida”, caracterizado pelo repúdio ao sentido e pela busca infantilizada de apagar uma realidade dolorosa por meio de intensidades exageradas

A masturbação, as práticas prazerosas grosseiramente irresponsáveis e a oscilação entre mania e depressão são buscadas pelo sujeito no afã de reencontrar a experiência de unidade, mesmo que efêmera. Nesse estágio da desmedida, desde criança o indivíduo procura substitutos para seu enorme vazio existencial. A busca surge em idades precoces, em que a identidade se faz e desfaz nas mesmas condições. Olievenstein (2003) frisa que uma identidade não é uma personalidade, pois revela tanto da intensidade quanto da causalidade: ela é sentida, instintiva, afetiva e pouco intelectualizada, apreensível em seus vínculos viscerais com a família. É por isso que os terapeutas se perdem na semiologia das toxicomanias, afirma o autor.

Nesse sentido, ele apresenta elementos de proximidade entre o toxicômano e o paciente borderline. Elenca eventos comuns à infância dos toxicômanos, embora não creia na tese defendida por Bergeret e Leblanc (1991), de que existiria uma estrutura psíquica estável e profunda específica dos comportamentos de dependência. Na toxicomania não há perda total do objeto e desestruturação do eu, mas sim uma partida de pingue-pongue em perpétuo suspense, rejeição-possessão, que se dá antes de tudo na relação instável com a mãe, primeiro equivalente do high and down que o futuro toxicômano viverá com a droga. Desde o início, a história desse indivíduo é arremessada em qualquer parte do processo de estruturação-desestruturação. Ela é lançada e se lança numa sucessão de equilíbrios instáveis, ainda mais instáveis que no borderline ou nos estados-limite, segundo Bergeret (1998). 

Nesses equilíbrios precários, o clima e a atmosfera são tão importantes quanto os relatos de causalidade. É nesse sentido que, desde a infância, o sofrimento da falta não pode ser apreendido senão em sua conexão com o prazer, uma erotização do circuito da busca pela intensidade exógena imediata. Na repetição e na procura ao longo de toda sua história, o toxicômano inscreve em sua memória a imagem idealizada e superestimada do prazer, ao mesmo tempo em que busca mascarar a decepção de tudo o que encontra em seu caminho e que o impelirá a transgredir cada vez mais. Mesmo antes de seu encontro com a droga, ele tenta encontrar, na dupla face de todos os caminhos da sexualidade, uma complementação à sua identidade estilhaçada (Olievenstein, 2003).

“não possuímos a chave do Graal e deveríamos saber que nosso trabalho ético e técnico consiste em não trocar uma dependência por outra”

Convém notar que a constituição psíquica e emocional do toxicômano verdadeiro de Olievenstein, assim como a do fronteiriço, não é marcada apenas pelo registro da falta, mas também da falha. Falha do ambiente que não pôde ser metabolizada e simbolizada, por ter ocorrido em momentos de vida muito precoces. Portanto, não há palavra para tal falha, que comparecerá nas nuances transferenciais e contratransferenciais do processo terapêutico e exigirá do analista perspicácia para a inauguração de aspectos psíquicos impedidos de serem integrados e reconhecidos. Nesse sentido, o paciente toxicômano e o fronteiriço precisam de um setting interno capaz de abrigar a falta, habitado por objetos psíquicos permanentes e pela presença de um outro minimamente estável (Gurfinkel, 2001), pois o objeto-outro-droga ocupa lugar vital para a sobrevivência psíquica desses pacientes.

A partir dessa consideração, Olievenstein lança uma proposta consistente de ajuda clínica, que sintetiza seu olhar. Para ele, a especificidade do cuidado com o paciente é não obter sua promessa e, ao mesmo tempo, obtê-la suficientemente. Isso significa não estabelecer limites iniciais fixos, nem fazer promessas excessivas que gerem uma morte terapêutica pela mentira. Por outro lado, a “promessa de menos” também não parece ser fecunda, por gerar desesperança, desinvestimento e medo de perda do cuidado, mesmo que parcial.

“A democracia psíquica representa a enunciação de passos para o cuidado, clareza e respeito com a realidade do dito, atenção ao fato de que a alteridade é assombrosa para tais pacientes e, por fim, cuidado com posturas ingênuas que exijam inteireza de maneira opressora.”

Assim, nessa tensão entre o tudo e o nada, entre obter ou não a promessa de cuidado, o autor propõe o que chamou de “democracia psíquica”. Trata-se de considerar o paciente em sua complexidade e ambiguidade, numa postura esperançosa e integradora, diferentemente do terapeuta que supõe e exige um paciente capaz de responder a propostas exigentes, ingênuas e verdadeiramente perversas. A democracia psíquica representa a enunciação de passos para o cuidado, clareza e respeito com a realidade do dito, atenção ao fato de que a alteridade é assombrosa para tais pacientes e, por fim, cuidado com posturas ingênuas que exijam inteireza de maneira opressora. Consiste, portanto, em um direcionamento à alteridade, autonomia, liberdade de escolha e autocuidado. Quebra de circuitos viciosos mantenedores de funções vitais por meio da droga, do ponto de vista do paciente.

Com essa proposta, Olievenstein estabelece um caminho manipulatório que não se faz possível sem ética. Segundo suas palavras, nós (os terapeutas) não possuímos a chave do Graal e deveríamos saber que nosso trabalho ético e técnico consiste em não trocar uma dependência por outra. Assim, para o autor, o terapeuta precisa se desnudar de conceituações e abstrações, abandonar a onipotência perante a memória embelezada do passado e o sofrimento atual e futuro. Esse será o único caminho de acesso para a elaboração de uma lei que, por um lado, permita a renúncia da intensidade imediata, da gratificação instantânea e, por outro, preserve um território onde possam coexistir o sensato e o insensato, o estável e o instável, o espelho e sua ruptura. 

Essencialmente, os pilares dessa proposta consistem em uma cadeia terapêutica institucional e uma palavra que se faça cumprir e, portanto, não se perverta: a evitação da morte da relação terapêutica pela mentira com promessas excessivas, assim como a morte pela falta de adesão com promessas insuficientes, devido ao medo de trocar referências dolorosas e conhecidas por outras desconhecidas. Nesse sentido, o desafio consiste em manter e modificar a promessa, anunciando cada passo para a construção da democracia psíquica. Tais passos são considerados por Olievenstein um caminho manipulador que precisa ser norteado por uma ética.

As peculiaridades dessa proposta implicam, primeiro, a busca de outra dependência, de início com o terapeuta. Um caminho velho conhecido para aplacar e preencher vazios assustadores, ou, nas palavras do autor, expedientes de “repetição da necessidade” ou “necessidade de repetição” (Olievenstein, 1990, p. 122). Outra perspectiva frente à abstinência é a reprodução, com o terapeuta, de uma relação do tipo up and down, com a marca da rejeição, nos moldes da vivência do toxicômano com seus objetos iniciais de vida. Um terceiro caminho, no desatino frente ao sofrimento causado pela ausência da droga, consiste na tentativa de substituí-la por uma droga legal. 

Seja qual for o caminho escolhido, existe o risco permanente de entrada em um looping sadomasoquista, seja pela imposição de abstinência ou outras exigências impossíveis, por parte do analista, seja pela transgressão ou recusa dos contratos, por parte do paciente. O desafio, para o terapeuta, é não competir com a droga em um braço de ferro vencido a priori. É justamente pela sustentação de um lugar diferente da oposição que a democracia psíquica pode começar a ser construída, nessa atividade legisladora produzida a dois, uma espécie de instituição da lei a partir da elaboração de delicadas inscrições de autoridade-alteridade, passíveis de serem suportadas homeopaticamente. 

Assim como não se deve enfrentar esse objeto-tábua de salvação, Olievenstein indica que um caminho interpretativo, no sentido clássico, também pode não ser promissor. Em vez de atuar no âmbito dos desvelamentos, ordenações e desembaraçamentos de sentido, essa clínica se desdobra no campo da opinião. Opinião compreendida em oposição ao conhecimento científico no sentido estrito e entendida como algo que pode ser encontrado no mundo, em um outro, na cultura. O autor oferece pistas de que a noção de opinião apresentada no texto se aproxima das referências de construção e criação. A opinião é e não é, assim como o objeto transicional de Winnicott (1975), primeira posse não-eu, inauguração da alteridade. Nesse sentido, a opinião comparece a serviço da simbolização. 

” (…) Olievenstein oferece lições de humildade. Em primeiro lugar, a de não rivalizar com um dos poucos objetos que fazem o sujeito sentir-se vivo e real, em um narcisismo que mal consegue parar em pé.”

Não se trata de psicopedagogia, nem de procurar a supressão do sofrimento pelo saber cognitivo. A opinião é entendida aqui como um material intersubjetivo capaz de enriquecer e alimentar figurações em um psiquismo impedido de construir mediações da linguagem e da imagem para conter as intensidades. Portanto, Olievenstein apresenta uma oferta clínica ativa, próxima da proposta de Green (1988) para pacientes fronteiriços que carregam a marca de uma mãe morta. Este autor sugere que a atitude clássica do terapeuta corre o risco de repetir, por meio do silêncio, a frieza e o vazio da relação que tais pacientes vivenciaram com a mãe. Por isso defende, ao contrário, que o analista funcione como um objeto vivo e interessado, ativo, acordado, testemunhando sua vitalidade por meio dos laços associativos que comunica ao analisando. É a experiência de sentir-se vivo e real, atuante no mundo com sua singularidade, que possibilita à dupla paciente-analista viver uma experiência criativa. Em contraposição à mãe morta, ao espelho quebrado e ao objeto inerte, um terapeuta vivo pode gerar, em algum nível, uma experiência de onipotência que, na concepção de Winnicott (1975), corresponde à ilusão do bebê de encontrar aquilo que criou.

Nessa relação perversa — por ser muito íntima, muito próxima, quase fusional no início —, faz-se necessária a imunização contra a intensidade do afeto bruto, brutalmente doloroso. Frente à delicadeza dessa relação e do self precariamente constituído, os compromissos instáveis, as seduções e desseduções comparecem como recursos ativos capazes de incrementar um caminho consoante com o objetivo de independência psíquica do sujeito. 

À parte as críticas relacionadas à terminologia “psicoterapia perversa”, Olievenstein oferece lições de humildade. Em primeiro lugar, a de não rivalizar com um dos poucos objetos que fazem o sujeito sentir-se vivo e real, em um narcisismo que mal consegue parar em pé. Além disso, a sedução, chamada pelo próprio autor de “perversa” devido ao diálogo com referências estruturalistas, pode ser compreendida como uma oferta para a construção gradual e possível de um objeto vivo, constituído a partir de uma referência de sentido e encontro, distante dos objetos-coisa, objetos sem rosto. Pelo cuidado de não violar selves precariamente integrados e por visar à democracia psíquica e à autonomia, tal perspectiva se opõe radicalmente à submissão e desautorização do paciente, expedientes iatrogênicos comuns nas ofertas terapêuticas atuais.


Referências

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Politzer, G. (1975). Crítica dos fundamentos da psicologia. Lisboa: Presença. (Trabalho original publicado em 1928).

Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.


Marcelo Soares da Cruz é Psicanalista, doutor em Psicologia Clínica pelo IPUSP, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Aperfeiçoamento em Transference-Focused Psychotherapy/ Personality Disorders Institute/Cornell University/ NY. Professor e supervisor do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea (Sedes Sapientiae), dos cursos O Barato no Divã, do CRR-UFSCar e da Especialização em Psicologia Clínica – Abordagem Winnicottiana da Unicsul. Coorganizador do livro “Toxicomania e Adições: A Clínica Viva de Olievenstein”, ed. Martins Fontes.

Diva Reale é membra da ABRAMD Clínica

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