Resistência: Redução de Danos e Autorregulação.

                                                                                                Celi Cavallari

A própria liberdade pode ser niilista, se não estiver

a serviço da vida ela pode transformar-se em escravidão…

Ignazio Silone

Pensar resistência, redução de danos e autorregulação traz uma inevitável indagação: a que se resiste contra a Redução de Danos? Como é viável resistir à diminuição de consequências admissíveis aos possíveis riscos do uso problemático de drogas? Apesar de registros demonstrarem que o uso de drogas acompanha a história da humanidade: Escohotado (1998) se refere ao uso recreativo ou medicinal de ópio na Europa desde XXV a.C., de cerveja em XXII a.C., seguido de daturas e de mandrágora, na Mesopotâmia e do cânhamo em IX a.C., pelos assírios; além de destacar que no Código de Hamurabi, em XVIII a.C., já havia regulamentação para impedir a adulteração do vinho e garantir sua qualidade. 

Porém, no século XX, convenções internacionais constituídas a partir de 1909, na conferência de Xangai, culminaram na explicitação da guerra contra as drogas desde 1971 e trouxeram proibições ao uso não médico de substâncias psicoativas e seus derivados, principalmente das plantas: papoula, coca e maconha (Carneiro, 2017). O proibicionismo, que prometeu um mundo livre de drogas, desdobrou no seu oposto, pois fracassou em sua principal premissa, a de que as pessoas não usem drogas consideradas ilícitas (Cavallari & Sodelli, 2010); e ao invés de liberdade, resultou em um número crescente de encarceramentos e na marginalização incalculável de pessoas que não se adequaram à abstinência (Boiteux, 2017).  

Carneiro (2017) nos dá uma pista sobre a resistência à Redução de Danos, quando analisa o caráter da guerra às drogas com duração constante, que utiliza forças militares para controle social dos povos e limita os direitos fundamentais sobre a autodeterminação; ou seja, essa política polarizada, do tudo ou nada, do controle sobre o outro, acirra a repressão, recrudesce estigmas e tabus, além de dificultar o processo individual de autoconhecimento e autorregulação. A desconsideração pelos direitos, atrelada à falta de flexibilidade e solidariedade, contribuem para aumentar os danos individuais e coletivos, ao invés de reduzi-los.

Sobre resistência, Roudinesco (2019) afirma que resistimos à invasão dos exércitos, mas não à invasão das ideias. Na guerra às drogas, muitas vezes resistir às forças militares corrobora com a interrupção de inúmeras vidas e até hoje existem mais de 40 países que aplicam a pena de morte para infrações relacionadas a drogas. Porém, no campo das ideias ocorre um fenômeno ainda mais surpreendente, há um consentimento mundial sobre o proibicionismo e, sejam quais forem as tendências políticas ou religiosas (Carneiro, 2017), a crença de que as drogas devem ser coibidas, impera; contraditoriamente, o mercado internacional de drogas ilícitas continua cada vez mais aquecido. 

Se por um lado, a resistência se manifesta como defesa, como ocorre durante o processo psicanalítico, por outro, pode representar a luta pela liberdade, como na Resistência francesa, diz Roudinesco (2019) e conclui que em geral, novas ideias costumam gerar resistência como sintoma de seu progresso dinâmico

A Redução de Danos nasceu quando médicos ingleses resistiram à política proibicionista norte americana na década de 1920 e um grupo de psiquiatras propôs que os clínicos gerais ministrassem prescrições racionadas de heroína aos usuários, a partir da constatação de que a política pública de abstinência total seria ineficaz para aqueles que não conseguissem ou não quisessem ficar abstinentes. Então, na Inglaterra em 1926 foi aprovado o Relatório Rolleston, com o objetivo de impedir a piora dos sintomas de saúde decorrentes do uso contínuo de heroína (Marks, 1997).

Em 1930, essa política de saúde foi introduzida no Brasil e chamada de método decrescente para tratamento de toxicômanos. Porém, há registros de críticas em jornais do Rio de Janeiro que acusavam as farmácias por estarem contribuindo com o vício de pessoas que portavam receitas médicas e de que as casas de saúde estavam se tornando paraísos artificiais (Torcato, 2016). Estas notícias revelam que já nesta época a relação com o uso problemático de drogas era coercitiva e que, enquanto a mídia difundia censura à nova tentativa, o investimento em saúde passava para segundo plano e o discurso proibicionista ganhava cada vez mais força.

 Na década de 1980, a Redução de Danos (RD) ocupou o espaço internacional, especialmente depois da chegada da Aids, pela premência de estratégias mais imediatas e práticas na área de saúde pública para prevenir a transmissão do HIV e das Hepatites entre usuários de drogas injetáveis. 

No Brasil, a partir das necessidades de saúde pública provocadas pela epidemia de AIDS, o Governo Municipal de Santos iniciou em 1989 a distribuição de seringas para a prevenção do HIV entre usuários de drogas injetáveis. Esta estratégia de Redução de Danos gerou muita polêmica e foi interrompida pelo Ministério Público, por ser interpretada como incentivo ao uso de drogas (Mesquita, 1994).   

“o preconceito associado ao uso de drogas e o proibicionismo cego ofereceram resistência a alternativas em saúde e atrasaram ou impossibilitaram políticas públicas mais eficazes de prevenção e de tratamento no Brasil”

Com esta medida proibitiva que impediu ações de Redução de Danos, nos anos seguintes a infecção pelo HIV por via sanguínea aumentou significativamente e contribuiu para a disseminação do vírus na sociedade brasileira como um todo, pois pessoas que se infectavam por compartilhamento de insumos (como seringas e agulhas) continuavam tanto a transmitir por via endovenosa como por via sexual, além de permanecerem vulneráveis à reinfecção.

Novamente o preconceito associado ao uso de drogas e o proibicionismo cego ofereceram resistência a alternativas em saúde e atrasaram ou impossibilitaram políticas públicas mais eficazes de prevenção e de tratamento no Brasil, assim como em alguns outros países. Uma hipótese plausível para a ocorrência deste entrave é que a criminalização do consumo de drogas fica associada ao castigo e à condenação pela transgressão ao ato ilícito, enquanto a Redução de Danos e o cuidado são encarados como permissividade ao prazer proibido. A diminuição de riscos e danos é tratada como menos importante, tanto para prevenir doenças potencialmente transmissíveis devido às formas de uso, quanto para impedir o aumento da frequência ou da quantidade do uso de alguma substância psicoativa, que poderia acarretar maiores prejuízos à saúde; para dar lugar e relevância à suposta ordem repressiva. Nesse contexto, com a sobreposição da área da segurança em detrimento de ações inter, trans e multidisciplinares de cuidado, os usuários ficam cada vez mais vulneráveis pelo desamparo biopsicossocial.

Em contraponto, a Bahia em 1995 inaugurou o primeiro Programa de Redução de Danos e trouxe novas perspectivas de atenção aos usuários, como descreve Mascarenhas (2016):

 “Vários fatores contribuíram para esse caráter vanguardista. Na década de 90, especialistas brasileiros da área de saúde se aproximaram da experiência do Centre Medical Marmottan de Paris, França. Essa aproximação e intercâmbio franco-brasileiro contribuiu para uma nova perspectiva na abordagem do fenômeno das drogas. Uma perspectiva que considera a singularidade do indivíduo e sua personalidade, as características da substância e o contexto sociocultural na análise da drogadição. Nesse sentido, a chegada do discurso e das práticas baseadas na teoria psicanalítica também contribuiu para a adoção de modelos e estratégias individualizadas com respeito à liberdade e autonomia do sujeito. O início da epidemia de HIV/Aids no Brasil, na década de 80, também influenciou para que as práticas de troca de seringas fossem adotadas. Além disso, esse pioneirismo só foi possível por meio da coragem dos profissionais que trabalhavam no Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas (Cetad-Ufba1) naquele momento, como Antônio Nery Filho e Tarcísio Andrade. “

Embora a Redução de Danos tenha ingressado em vários países com o intuito de impedir compartilhamento de insumos perfurocortantes para evitar a infecção de pessoas que usavam drogas injetáveis, a chegada da pandemia de HIV/Aids apresentou novos desafios e exigiu mudanças nos centros de atendimentos clínicos para toxicômanos, abriu novas possibilidades de interlocução entre profissionais e pacientes, revelou-se como estratégia eficaz também para acessar os usuários e ampliar a prevenção e o tratamento do uso problemático ou dependente de drogas.

No hospital Marmottan em Paris, o posicionamento e solução encontrados por Olievenstein, frente ao conflito entre o modelo de cura francês para os toxicômanos e a adoção da prescrição de metadona como medida recomendável de RD, também foi polêmico e desdobrou em mudanças, pois os atendimentos foram divididos em setores diferentes (Reale, 2019). 

Abrams e Lewis (2000) destacam que a prevenção e a Redução de Danos sempre caminharam juntas desde sua origem, que práticas de saúde pública são estratégias de RD, como o rastreamento de doenças infecciosas ou a limpeza do suprimento de água, e que o modelo de Redução de Danos contribui com a interação entre a saúde pública e a medicina ao expandir limites e trazer novas respostas a algumas demandas.  

 Em 1997, foi aprovada em São Paulo a primeira lei que regulamentou Redução de Danos no país e em 2003 o Ministério da Saúde assumiu a Redução de Danos como política ampliada para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas: 

“…baseada em dispositivos extra hospitalares de atenção psicossocial especializada, devidamente articulados à rede assistencial em saúde mental e ao restante da rede de saúde. Tais dispositivos devem fazer uso deliberado e eficaz dos conceitos de território e rede, bem como da lógica ampliada de redução de danos, realizando uma procura ativa e sistemática das necessidades a serem atendidas, de forma integrada ao meio cultural e à comunidade em que estão inseridos, e de acordo com os princípios da Reforma Psiquiátrica.” (Ministério da Saúde, 2003)

Até 2003, a Redução de Danos no Brasil ficou atrelada à prevenção do HIV/Aids e outras doenças transmissíveis por uso de drogas injetáveis e somente nesse período foi incluída na área de saúde mental. A lógica ampliada de RD contribuiu para a reinserção da narrativa sobre as questões referentes ao uso e abuso de drogas na atenção básica de saúde e em toda a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), em consonância com a Reforma Psiquiátrica. 

“É na política do cuidado que a RD tem lugar.”

Com a inclusão da Redução de Danos, a relação estabelecida com quem faz uso de drogas muda de perspectiva, pois cada pessoa é considerada em seu direito de escolher e de se responsabilizar sobre a própria vida; há um relacionamento de respeito mútuo, no qual a franqueza e a dignidade são partes inerentes; as dificuldades são pensadas em conjunto. Há maior flexibilidade, diferente das abordagens autoritárias, que decidem em nome do usuário e, muitas vezes, apesar dele; e que impõe a abstinência a qualquer custo. Como aponta Carlini:

“(…) a redução de danos (…) oferece bases científicas ao que é hoje um grande desafio político na nossa sociedade de espírito democrático ainda cambaleante: a adoção de políticas sociais que reconheçam a legitimidade da pluralidade de modos de vida e que atuem a partir da aceitação dessa realidade. A abordagem de redução de danos evita atuações punitivas para comportamentos não-consagrados pela maioria, estabelecendo metas pragmáticas e isentas de julgamento de valor para minorar os riscos que tais comportamentos impingem àqueles que o praticam e à sociedade como um todo.” (Carlini, 2000, p XI)

A relação de respeito às singularidades e de tolerância favorece que seja possível a cada profissional colaborar com a pessoa usuária de drogas para que ela desenvolva autoconhecimento e possa reconhecer seus limites físicos, psíquicos e sociais. Aprender a negociar consigo mesma também amplia a possibilidade de enfrentar a diminuição da frequência e da intensidade do uso, além de contribuir com a percepção da necessidade de cuidar de outros aspectos da vida. É na política do cuidado que a RD tem lugar.

Importante salientar que grande parte das pessoas que usam drogas consideradas ilícitas, o fazem de maneira recreativa ou eventual e não apresentam problemas relacionados às substâncias; essas pessoas, quando são ativas, produtivas, trabalham e pagam seus impostos, raramente chegam aos serviços especializados, pois não apresentam sintomas referentes ao uso e evitam até falar publicamente sobre isso, a não ser com seus pares ou com terapeutas que lhes garantam sigilo ético, pois temem ser estigmatizadas (Cavallari, 2000).  Como esse uso autorregulado é mantido em segredo, no geral fica a impressão de que todo uso é problemático, pois as pessoas só tomam contato com o tema quando o uso já saiu do controle e se tornou público.

Embora Freud não tenha se dedicado à elaboração psicanalítica sobre a adicção às drogas, no texto ‘Mal estar na cultura’ (Freud, 2010), reconhece que a intoxicação, por meio químico é um dos métodos mais eficazes para evitar o sofrimento e que:

existem substâncias estranhas ao corpo cuja presença no sangue e nos tecidos nos proporciona sensações imediatas de prazer, além de modificar de tal modo as condições de nossa vida perceptiva a ponto de nos tornarmos incapazes de perceber sensações de desprazer.” (Freud, 2010, p 124)

Argumenta sobre o benefício na busca pela felicidade trazido por tóxicos, que encontram um lugar fixo de apreciação na economia libidinal de indivíduos e povos. Coloca que além do ganho de prazer imediato, há independência em relação ao mundo externo, pela possibilidade da diminuição da pressão da realidade e favorecimento das condições de sensibilidade. O autor não se refere a substâncias lícitas ou ilícitas, pois aborda essencialmente esta condição possível de alteração prazerosa no psiquismo proporcionada pelo uso de substâncias.

Essa abordagem ilustra um olhar abrangente sobre os efeitos de elementos químicos no aparato mental e nos traz uma reflexão sem que haja cerceamento por dogmas proibicionistas.

“Não se trata de impor abstinência, nem de moldar comportamentos, mas de informar, de oferecer possibilidades de autocuidado”

Tanto na prevenção quanto no tratamento, o papel da Redução de Danos é estimular àquele que fizer uso de uma substância psicoativa a levar a si mesmo em consideração, para que perceba a proximidade com o risco e que preserve o quanto possível a própria saúde. A proposta de minimizar possíveis danos exige aproximação e interlocução com o usuário. Não se trata de impor abstinência, nem de moldar comportamentos, mas de informar, de oferecer possibilidades de autocuidado, com a intenção de evitar que haja avanço na direção do uso problemático ou que este piore. 

O abuso de drogas, especialmente quando a pessoa só encontra prazer no uso de substâncias e perde as outras possibilidades de satisfação, fica polarizado e requer cuidados. A regulação requer equilíbrio.

Tampouco é possível criminalizar a população mais vulnerável por sua relação com o uso de drogas, é necessário levar em consideração quanto suas condições de existência estão ameaçadas e romper com a alienação da realidade, resgatar a empatia com o sofrimento do outro, com seus motivos e com sua história; o elevado número de encarceramentos, de violências e mortes associados às drogas, especialmente entre pessoas negras e pobres, requer uma revisão atenta e ética.

“A ideia de tratamento baseado apenas na conquista da abstinência é precária e quando a repressão tem primazia sobre a saúde há uma inversão de prioridade: a droga toma o lugar da pessoa que passa para segundo plano.”

A ideia de tratamento baseado apenas na conquista da abstinência é precária e quando a repressão tem primazia sobre a saúde há uma inversão de prioridade: a droga toma o lugar da pessoa que passa para segundo plano. É como se a equipe multidisciplinar ficasse subjugada pela narrativa policialesca, com função mais fiscalizadora do que de elaboração dos engendrados fatores que compõem a adicção a drogas e que são singulares em cada pessoa. A meta da abstinência como único resultado aceitável traz complicações, pois acarreta banalização do cuidado necessário e negação pela complexidade relacionada ao uso prejudicial. 

Além disso, quando a substância utilizada é ilegal ou se o usuário pertencer à grupos sociais ou familiares mais repressores, o contexto onde ocorre o uso torna-se mais adverso e há aumento da intolerância ao usuário, que fica mais adoecido pelo receio de se expressar, de pedir ajuda, e então esconde problemas com o uso para evitar mais repressão.

Para ilustrar, cito dois exemplos:

Certa vez supervisionei um caso de uma adolescente, com pai brasileiro e mãe holandesa, que foi residir em Amsterdam; ao ficar maior de idade, experimentou maconha em um Coffee Shop, passou mal, ficou assustada e foi levada por uma policial que a acalmou e acolheu, até um hospital. Ao chegar lá, recebeu cuidados e foi orientada a se alimentar antes de fazer uso de substâncias, a não misturar maconha e álcool, a se hidratar e que, se voltasse a usar, deveria escolher dia e horário que já tivesse encerrado suas atividades; perguntaram se desejaria que seus pais fossem orientados e disponibilizaram outros contatos na área da saúde, pois toda a rede de saúde recebe formação para trabalhar com usuários de álcool e outras drogas. Ela quis chamar os pais, eles foram até lá e receberam as mesmas orientações.

O que chama a atenção é que tanto o serviço de saúde holandês quanto os policiais demonstraram estar preparados para orientar pessoas que tiveram algum contato com substâncias psicoativas. E que o fato de a resposta dos serviços terem sido de acolhimento e orientação proporcionou segurança ao invés de uma experiência traumática. Essa adolescente relatou que não voltou a utilizar maconha, pois já havia saciado a curiosidade e os pais ficaram aliviados pela orientação que receberam.

Em outro momento, recebi um adolescente de 15 anos, morador da cidade de São Paulo, que, na primeira entrevista, me disse que estava acabado, pois usara maconha com colegas na rua, fora pego pela polícia, levado à delegacia e o delegado havia ligado para sua mãe, na frente dele e perguntado: a senhora sabe que seu filho é um drogado? O paciente e a família estavam todos em estado de choque! Os pais me perguntaram se era caso de internação e o adolescente me disse que tinha feito a maior besteira da sua vida.

Como situações tão semelhantes podem gerar procedimentos tão diferentes? Se a jovem holandesa pôde experimentar maconha e se tranquilizar com seus familiares, o jovem brasileiro ficou em pânico e com forte sentimento de culpa, assim como sua família.

Freud comenta que o sentimento de culpa, em alguns casos, ocorre antes do delito e que então seria o motivo e não a consequência. Se com nossos jovens reiteramos o lugar da culpa, será que não estamos contribuindo para que este sentimento se cristalize? Talvez seja uma hipótese plausível para compreender por que quando a repressão é mais ostensiva, a resposta é mais violenta, ou por que a guerra às drogas obtém o inverso do que se propõe. Tanto a Redução de Danos quanto a abordagem psicanalítica propõem o acesso singular com cada pessoa e buscam o autoconhecimento. Reich considera o princípio da autorregulação como central e particularmente eficaz para o desenvolvimento da clínica psicanalítica. O conceito de autorregulação revela que o indivíduo ao prescindir das inibições e resistências neuróticas, das sublimações morais e da angústia sexual, pode encontrar a ampliação da autonomia para o desenvolvimento de equilíbrios dinâmicos e flexíveis e pode descobrir uma regulação melhor em vários campos de sua existência (Dadoun,1975).

Contribuir com o desenvolvimento da autonomia e da autopercepção na clínica, possibilita ampliar o trabalho de autorregulação. A libertação das correntes psíquicas favorece a diminuição da escravidão e da dependência. 

Segundo José Gustavo Sampaio Garcia, citado por Leonardo J Eber:

“a capacidade intencional de escolha e de ação é característica essencial e exclusivamente humana e está enraizada nas funções biológicas naturais. A liberdade, na ótica reichiana, é o resultado evolutivo da auto-regulação, função que está presente em todas as formas de vida fundamental ao processo do organismo vivo e que o distingue dos sistemas não-vivos. É a aptidão que o ser vivo possui para administrar suas necessidades sem interferência externa, um princípio básico da própria existência da vida. Não se pode pensar em vida sem auto-regulação (sic). A sua falta é o primeiro passo para a doença e a decomposição  (Eber, 2006)

 As políticas de Drogas contemporâneas desprezam a complexidade humana e empurram para debaixo do tapete a dor do outro, na medida em que os diferentes se tornam invisíveis, e a autorregulação torna-se impossível, na medida em que não há liberdade de escolha. Como se fossemos todos tutelados e só nos restasse a submissão. 

A Redução de Danos se coloca como opção de liberdade de escolha, de cuidado e de resistência; e resistir, também é sobreviver, para além do genocídio físico e psíquico.


1  O CENTRO DE ESTUDOS E TERAPIA DO ABUSO DE DROGAS (CETAD), fundado em 25 de julho de 1985, é um serviço vinculado a Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia – FAMEB/UFBA. O CETAD tem como propósito promover ações que contemplem a atenção aos usuários de substâncias psicoativas e seus familiares, a prevenção e redução de riscos e danos, o estudo, a pesquisa e o ensino, com vistas à produção e difusão do conhecimento sobre as múltiplas dimensões do consumo das Substâncias Psicoativas, articulado com outras instituições representativas da sociedade e em consonância com princípios éticos. Também promove ações que contemplem a educação para a saúde e o tratamento, com vistas a estabelecer um padrão de referência para a comunidade baiana, nas suas inquietações com relação às substâncias psicoativas e em atenção à dignidade humana. Desde a sua origem, o CETAD orienta-se para a compreensão do uso das drogas e seus efeitos, considerando a complexidade da relação indivíduo – drogas – e sociedade. Tem como princípios básicos, o sigilo, a gratuidade e busca e/ou permanência espontânea para tratamento. – http://www.cetadobserva.ufba.br/pt-br/cetad/quem-somos


REFERÊNCIAS

Abrams D. B., Lewis, D. C. (2000). Prefácio. In: Marlatt G. A. e colaboradores. Redução de Danos: Estratégias práticas para lidar com comortamentos de alto risco. Porto Alegre: Editora Artmed. 

Dadoun, R. (1975). Cien flores para Wilhelm Reich. Barcelona: Anagrama.

Carlini B. (2000).  Apresentação à Edição Brasileira (pp. XI). In: Marlatt G. A. e colaboradores. Redução de Danos: Estratégias práticas para lidar com comportamentos de alto risco. Porto Alegre: Editora Artmed. 

Escohotado, A. (1998). Historia de las drogas 1(pp. 77-78). Madrid: Alianza Editorial.

Boiteux, L. (2017).  Modelos de Controle de Drogas: mapeando as estratégias de política de drogas em busca de alternativas ao modelo repressivo.  In Figueiredo, R., Feffermann, M., & Adorno, R. (Orgs.), Drogas & Sociedade Contemporânea: perspectivas para além do proibicionismo (pp 183-201). Temas em Saúde Coletiva 23. São Paulo: Instituto de Saúde. 

Carneiro, H. (2017). O Uso das Drogas como Impulso Humano e a Crise do Proibicionismo. In Figueiredo, R., Feffermann, M., & Adorno, R. (Orgs.), Drogas & Sociedade Contemporânea: perspectivas para além do proibicionismo (pp 23-31). Temas em Saúde Coletiva 23. São Paulo: Instituto de Saúde.  

Cavallari, C. D., & Sodelli, M. (2010). Redução de danos e vulnerabilidades enquanto estratégia preventiva nas escolas. In Seibel, S., Dependência de drogas (pp. 795-809). 2 ed. São Paulo: Atheneu.  

Cavallari, C. D. (2000).  Redução de Danos, um modelo de prevenção aplicável em escolas. In: Pinto T, Telles IS. (orgs.). AIDS e escola: reflexões e propostas do EDUCAIDS. São Paulo: Cortez; Pernambuco: UNICEF.

Eber, L. J. Educação pela autonomia através da auto-regulação: uma perspectiva reichiana. Escritos educ., Ibirité, v. 5, n. 1, p. 26-32, jun.  2006.   Recuperado em 01 jun. 2019. de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-98432006000100005&lng=pt&nrm=iso .

Freud, S. (2010). O Mal estar na Cultura. (p. 124) In F, S. O Futuro de uma ilusão & O Mal estar na Cultura; tradução Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM.

Mascarenhas F. (2016, Março 30).  “A Redução de Danos faz Apologia ao Respeito” Recuperado de: http://atarde.uol.com.br/muito/noticias/1756280-a-reducao-de-danos-faz-apologia-ao-respeito 

Marks, J. (1997). Dosagem de Manutenção de Heroína e Cocaína. In Ribeiro, M. M., & Seibel, S. D., Drogas: Hegemonia do Cinismo (pp. 269-281). São Paulo: Memorial.

Mesquita, F. C. (1994). Perspectivas das estratégias de Redução de Danos no Brasil. In Mesquita, F.C.; Bastos, F.I. orgs. Drogas e AIDS: Estratégias de Redução de Danos. São Paulo, HUCITEC.

Ministério da Saúde. Secretaria Executiva Coordenação Nacional de DST e AIDS. (2003)  A Politica do Ministério da Sáude para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas Série B. Textos Básicos de Saúde. Brasília – DF,

Reale, D. & Cruz, M. S. (2019). Introdução. In: Reale, D & Cruz, M.S. (Eds), Toxicomania e Adições: a clínica viva de Olievenstein. São Paulo: Benjamin Editorial. 

Roudinesco, E. (2019).  Dicionário amoroso da psicanálise (pp.277-280). Rio de Janeiro: Zahar.

Torcato, C. E. M. (2016). A história das drogas e sua proibição no Brasil: da Colônia à República (Tese de Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado em 30 de março de 2021 de https://neip.info/novo/wp-content/uploads/2016/09/Torcato_Historia_Probi%C3%A7%C3%A3o_Brasil_USP_2016.pdf   


Celi Cavallari é membra da ABRAMD Clínica

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