Dependência de drogas: abordagem psicodinâmica do indivíduo, da família e do grupo.

 Maria de Lurdes Zemel
 Diva Reale
 Valeria Lacks

1 . Abordagem psicodinâmica 

1.1. De que lugar falamos.

Tem sido cada vez mais frequente no meio médico o uso indiscriminado dos termos psicodinâmico e psicanalítico (Gabbard, 2009) para referir-se a certo tipo de psicoterapia que se diferencia das terapias cognitivo-comportamentais (TCC). Tal tendência acompanha transformações contemporâneas no campo da psiquiatria que tornaram menos frequentes os profissionais capazes de fazerem uso em sua clínica das abordagens compreensiva, fenomenológica ou psicanalítica do doente psiquiátrico.

Ao adotarmos neste capítulo o termo psicodinâmico, propositalmente mantivemos esta indiferenciação, optando por privilegiar pontos comuns de uma prática clínica psicodinamicamente orientada, deixando de lado grande parte das diferenças conceituais que especificam as várias escolas psicodinâmicas com as quais mais nos identificamos.

Buscaremos descrever o que consideramos constituir a centralidade da experiência clínica nos tratamentos psicoterápicos da dependência de drogas (psicoterapia individual, familiar e grupal) salientando algumas contribuições ao longo da história da clínica da dependência que se mostraram um avanço desta prática na direção de uma maior inclusão social do dependente.

Valorizar a especificidade desta clínica significa considerá-la tão mais rica quanto mais diversificados e amplos forem os conhecimentos que a sustentam. Familiarizar-se com os conhecimentos da Psicofarmacologia, História, Sociologia e Antropologia das Drogas, ajudará a contextualizar os dinamismos psíquicos e sociais a que o paciente dependente de drogas está sujeito. E desta forma, ao reconhecer a complexidade que o problema da dependência de drogas representa, melhor e mais sensivelmente serão concebidos os passos que juntos, psicoterapeuta e paciente, precisarão trilhar. 

1.2. Da importância da demanda na chegada do paciente

Na abordagem psicodinâmica, sabemos que a motivação do paciente deve ser objeto de cuidado durante todo o tratamento, com especial atenção dada ao seu início. Mais recentemente têm surgido técnicas terapêuticas de orientação teórica mista que passaram a valorizar a motivação do paciente para o tratamento. 

Um dos pontos comuns às abordagens psicodinâmicas é a grande importância dada à questão da demanda pelo tratamento. De início é necessário reconhecer e diferenciar a queixa e pedido de ajuda do paciente daquilo que, trabalhado, vai se configurar em uma demanda; em termos simples, a demanda deverá ser construída com o paciente articulando aspectos inconscientes – necessidade ou desejo – com aquilo que o paciente diz na consulta querer obter. Também caberá ao clínico distinguir aquilo que é queixa e pedido do paciente daquilo que é queixa e pedido da família. Tal distinção se impõe na clínica, pois é muito freqüente que na chegada ao consultório o paciente seja trazido por um familiar mais mobilizado para o tratamento que o próprio paciente. As consultas iniciais constituem momento crucial para realizar este trabalho específico com a demanda, mote inicial para nortear e organizar a resposta terapêutica a ser planejada caso a caso. 

O respeito à demanda inclui, além do respeito ao desejo do paciente, uma posição de maior humildade do terapeuta.

Entendemos que numa abordagem psicodinâmica vamos realizar um trabalho juntos (paciente e terapeuta) para tentarmos compreender o que levou aquele paciente fazer essa passagem do desejo ao ato, coisificando seus objetos internos e sua dependência afetiva através da dependência de uma droga (Pommereau,1996). É comum os pacientes dependentes de drogas apresentarem uma sintomatologia onde predominam ações de múltiplas naturezas e motivações variadas; tais ações podem ou não estar relacionadas diretamente ou indiretamente ao consumo de drogas; mas, em seu conjunto, acabam por configurar uma relação de tipo fetichista com o objeto (Outeiral & Grana, 1991); tal relação reflete uma parada no desenvolvimento emocional incluindo a dependência de drogas no conjunto das patologias da transicionalidade (Abadi, 1998; Winnicott, 1975). Dentro desta perspectiva a psicoterapia do dependente de drogas deverá considerar não só o comportamento de uso, mas considerar que esta pessoa, através da relação de dependência com as drogas, expressa um sofrimento e uma organização psíquica singular. E o tratamento se fará pelo encontro terapeuticamente orientado entre duas pessoas totais – paciente e psicoterapeuta. Esta orientação do psicoterapeuta deverá capacitá-lo a não ficar indefinidamente no lugar idealizado do salvador e detentor de todas as verdades, nem precipitar, nos primeiros encontros, uma desilusão rompendo a transferência necessária ao paciente. 

2. Psicoterapia individual: evolução e términos.

No início da psicoterapia do dependente de drogas é comum que as conversas sobre as drogas e seus usos ocupem muito espaço nas sessões. Neste sentido, a psicoterapia de um paciente dependente de drogas não difere de qualquer outro paciente, pois os temas trazidos na sessão são aqueles que o paciente considera de importância para sua vida.

Por outro lado, quanto maior o conhecimento geral e específico do psicoterapeuta sobre as drogas e seus usos mais a conversa com o paciente será qualificada em novas bases. Certamente, a reprodução de mitos e preconceitos nas conversas com os pacientes constitui uma das inúmeras razões pelas quais os pacientes acabam por desacreditar de profissionais despreparados com os quais eles iniciam psicoterapia e abandonam precocemente.  

A centralidade do tema drogas na fase inicial da psicoterapia de um dependente costuma ter uma forte relação com a centralidade que o uso da droga chegou a ocupar na vida do paciente. Isso significa que frequentemente há uma correlação entre a gravidade do quadro da dependência e a centralidade da droga na vida do sujeito.

“Considerar o controle do uso da droga (sobretudo da droga de eleição) como uma segunda etapa do processo psicoterápico é uma vantagem em relação à abordagem clássica.”

É preciso que o paciente inicie o enfrentamento de uma nova necessidade: desenvolver ou aprimorar recursos que lhe permitam estabelecer um novo padrão de uso. O controle do uso, muitas vezes tomará as características descritas por Zimberg (1984) como “padrão de uso controlado”. Este padrão de uso – o uso controlado – tende a ser menos frequentemente reconhecido ou mencionado até mesmo pelos profissionais de saúde que mais diretamente trabalham com dependentes de drogas pela forte polarização ideológica com que a questão da abstinência como meta única nos tratamentos da dependência foi historicamente construída (Reale,1997).

Reconhecer este uso controlado como uma conquista atingida pelo paciente, sobretudo aquele cuja dependência de drogas apresenta sua face clínica mais grave, fortalece o processo terapêutico pela validação e reconhecimento do desenvolvimento de novos recursos egóicos. Estes novos recursos não apenas melhoram o controle de impulsos como propiciam ao paciente a experiência de maior poder sobre si mesmo. 

P. usa cocaína e álcool. Sente-se mal quando usa cocaína e imagina que será perseguido pela polícia e internado à força. Depois de iniciar um trabalho regular, P. organiza seu uso – passa a usar só uma vez no final da semana. Em seguida, passa a usar eventualmente e começa a trazer novos assuntos para serem discutidos – sua relação com seu pai, suas dificuldades sexuais,etc….

Considerar o controle do uso da droga (sobretudo da droga de eleição) como uma segunda etapa do processo psicoterápico é uma vantagem em relação à abordagem clássica. Vantagem por que representa uma sintonia mais fina com a grandeza da tarefa psíquica que cabe ao dependente de drogas realizar, ao buscar modificar seu estilo de vida aditivo (Marlatt & Gordon, 1993) na direção da autonomia psíquica e independência das drogas. 

Em paralelo ao controle do uso de drogas, nas terapias dinâmicas consideramos também as modificações apresentadas na vida do nosso paciente.

R. costuma usar “Dormonid” e várias vezes, depois do uso bateu o carro violentamente. Da última vez que esteve no consultório, relatou que havia tomado “Dormonid” em menor quantidade e ao adormecer na direção parou o carro. Atrapalhou o trânsito, mas não bateu.

A habilidade do terapeuta – sua arte – é desafiada no sentido de ser capaz de ter a sensibilidade e perspicácia em alternar entre duas posições esquematicamente descritas como: 

1. uma posição mais convencional de acompanhar o paciente na direção que ele imprime às sessões abstendo-se de direcionar a conversa ou, introduzir temas não trazidos pelo paciente. 

2. tomar a iniciativa de trazer novamente à baila a questão do uso da droga em si para avaliar se os controles já adquiridos estão sendo mantidos ou se foram perdidos.

Relatos de situações envolvendo maiores riscos pessoais ou contra terceiros sugerem que algum grau de desorganização psíquica pode estar ocorrendo, o que justifica uma investigação ativa de como está o uso de droga. Além disso, impõe-se a investigação das motivações inconscientes da recaída e da relação destas com circunstâncias e eventos externos. 

Durante esta fase da psicoterapia variações mais intensas de respostas emocionais a acontecimentos psíquicos mobilizados dentro ou fora da psicoterapia costumam ser acompanhados de incremento do uso de droga. Tanto as emoções positivas quanto as negativas são capazes de produzir certo desequilíbrio. 

Esta fase da psicoterapia da dependência de drogas é aquela que pode ter a mais longa duração. Será tanto mais longa quanto maior a necessidade de ter no analista/terapeuta uma presença não reativa que sirva de suporte para que suas novas aquisições psíquicas possam se consolidar internamente. 

Pode-se avaliar clinicamente se a psicoterapia está ou não progredindo prestando atenção na evolução ao longo do tempo do conjunto de variáveis que são identificáveis em uma recaída: quantidade de droga usada, via de administração, freqüência da recaída, tipo de droga usada, duração da situação de uso etc. 

O processo terapêutico passa a incluir a discussão de questões que não se diferenciam daqueles trazidos por pacientes sem problemas de dependência de drogas. A especificidade da psicoterapia vai se diluindo na proporção em que os recursos defensivos utilizados pelo paciente para enfrentar sua vida se diversificam e deixam de incluir necessariamente o uso da droga. A boa evolução do tratamento do dependente parte de uma monotonia da resposta – toda dificuldade redunda em incremento do uso de droga – para uma diversidade de respostas. 

Não são raros os pacientes que abandonam seus tratamentos antes do fim. Quando o vínculo formado sobrevive às intempéries típicas da clínica da dependência de drogas e permite que o processo psicoterápico chegue ao final, pode-se verificar que uma certa estabilidade psíquica foi conquistada. Esta estabilidade psíquica é aquilatada também por uma nova relação com a droga (que inclui, em muitos casos, abstinência da droga de eleição) e corresponde à consolidação de uma nova configuração psíquica mais rica e emocionalmente desenvolvida. 

3. A família e a psicoterapia.

O uso/ abuso de drogas traz muito sofrimento para toda a família envolvida no problema. Em geral, essa família também é muito doente no estabelecimento de suas relações.

Kehl (2003) e Roudinesco (2003) mostram em seus trabalhos a idealização da família tradicional e dentro dessa idealização supomos que o uso de drogas é de responsabilidade somente das desorganizações familiares.

Focando a abordagem psicoterápica do usuário/dependente, muitas podem ser as posições da família.

3.1. Quando o trabalho é de psicoterapia individual

Algumas vezes, quando o usuário é um adolescente ou tem uma dependência grave, temos que contar com o apoio da família para a manutenção do nosso trabalho de psicoterapeutas. É a família que mantém a psicoterapia do ponto de vista financeiro e garantindo o cumprimento formal da presença do paciente. A família tem que estar “de acordo” com o trabalho desenvolvido.

Mesmo contando com essa ajuda é preciso que o psicoterapeuta/psicanalista cuide de manter sua relação exclusiva com seu paciente.

Em geral, as famílias que têm um membro usuário/dependente de drogas, por um dos aspectos de sua patologia que chamamos de  dificuldade em estabelecer distância entre as gerações,  sente-se no direito de trocar com o psicoterapeuta confidências sobre o paciente. Ou seja, os pais não aceitam que seus filhos podem ter desejos ou posições diferentes das suas. Sempre tentam fazer prevalecer a verdade de sua própria geração.

Diante dessas dificuldades, recomendamos que o psicoterapeuta individual do dependente nunca seja o psicoterapeuta familiar.

3. 2. Quando o trabalho é de terapia familiar.

A recomendação de terapia familiar se faz quando:

– o paciente usuário/abusador de drogas não aceita uma psicoterapia individual

– quando a família apresenta-se muito ansiosa com o uso de drogas do seu membro.

– quando a patologia familiar é muito grave e entendemos que essas relações patológicas são favorecedoras do uso/abuso.

N. se injetava cocaína com um intervalo de um mês. Nestas ocasiões ficava sozinho em uma casa de campo da família. N. era adulto e veio sozinho procurar psicoterapia individual até que contou que encontrava sempre suas seringas arrumadas no seu armário – desconfiava que sua mãe fazia isso. Solicitamos um trabalho familiar e soubemos que era verdadeira a suspeita de N. – sua mãe arrumava suas seringas para que “ele não usasse nenhuma suja” mas ela não falava com ele sobre seu conhecimento do seu uso.

“Na terapia familiar todos os membros são convidados a participar e a discussão deve ser dirigida pelo psicoterapeuta para que todas as relações sejam discutidas e que o foco não se restrinja ao uso de drogas de um de seus membros.”

Na terapia familiar todos os membros são convidados a participar e a discussão deve ser dirigida pelo psicoterapeuta para que todas as relações sejam discutidas e que o foco não se restrinja ao uso de drogas de um de seus membros.

J. foi preso por tráfico de ecstasy  e diante desse fato sua família veio procurar ajuda. Durante 9 meses, tempo da prisão de J. trabalhamos as relações familiares sem a presença dele. Nosso principal trabalho foi lidar com a idealização dos pais de que a prisão seria a salvação de J.

Na psicoterapia familiar de usuários/abusadores de drogas nosso grande trabalho é o de restabelecer uma distância entre as gerações e o de restabelecer a lei familiar.

A respeito do restabelecimento da lei familiar, faço minhas as palavras de Pellegrino:

“A lei não existe para aniquilar o desejo, aviltando-o ou degradando-o. Ao contrário, existe como gramática capaz de articulá-lo com o circuito de intercâmbio social. A Lei é produto de Eros – não de Tânatos” (Pellegrino 1988, pp.313-314)

Muitas vezes, durante o trabalho de psicoterapia familiar, outros membros são encaminhados para psicoterapias individuais por terem tido a oportunidade de perceber seus problemas pessoais.

4 . Grupos: sua posição estratégica na terapêutica

4.1. Grupo de acolhimento e psicoterapêutico.

O grupo antes de tudo tem uma função estratégica que pode operacionalizar múltiplos objetivos dentro de um programa de tratamento. Em relação ao grupo terapêutico, a primeira decisão a ser tomada é se ele será aberto ou fechado. Tal escolha deverá refletir a filosofia de trabalho adotada pela instituição onde o atendimento se fará. 

Quando se menciona a “filosofia” de tratamento das dependências de uma Instituição, a rigor estamos ressaltando sobre qual o posicionamento ético que esta apresenta. Por exemplo, o posicionamento inclinado para a abstinência como finalidade principal do tratamento, a mais aceita pela sociedade no geral, onde o fenômeno das dependências fica compreendido no estatuto de uma doença específica, orgânica. Posto isto, com o enquadre desta objetividade, a metodologia irá caminhar com este foco. A partir daí, por exemplo, se pensará em grupos de prevenção da recaída, do desenvolvimento de técnicas psicológicas comportamentais que atendam a um fim específico que não se abrirá para perguntas existenciais mais amplas. Apresentará uma postura técnica metodológica mais diretiva, será extremamente pragmática em torno do sintoma específico que remete ao desejo pela substância, pelas memórias culturais ou afetivas que o indivíduo apresenta como disparador da fissura. 

O outro posicionamento Institucional, localizado na política de Redução de Danos, parte do valor da autonomia e suas possibilidades de amadurecimento dentro do processo psíquico, como uma forma para administrar as crises geradas pelo consumo da droga. Neste último, a droga não está compreendida como doença, mas como sintoma, produto de uma inter-relação estabelecida pela singularidade da personalidade do indivíduo, a forma e a função que o consumo de drogas se estabelece neste destino e as contribuições sociais que potencializam esta crise. 

A grande contribuição teórica para se pensar os grupos neste contexto de trabalho, vem indiretamente de Jean Paul Sartre, através da sua obra “A crítica da razão dialética” escrita nos anos 60. Fazendo uma breve sinopse, neste livro, o autor discute criticamente como o sujeito histórico emerge ou se dissipa dentro dos processos de grupalidades que tentam questionar e transformar o seu tempo. Dentro disto, observa algumas etapas no processo destas grupalidades que emergem, se constituem e depois perdem o seu vigor transformador quando burocratizam os papéis dos seus atores e se estabelece um novo jogo de poder interno que cessa seu dinamismo transformador.

Sartre compreendia que o sujeito sem a força da grupalidade, não é capaz de transformar a sua realidade histórica. Ele nomeia este momento como “serialidade” (As pessoas são um número de identidade que coexistem com o silêncio das suas solidões.) 

O primeiro momento emergente de uma grupalidade pode acontecer num momento de uma grande crise cotidiana, por exemplo, o ônibus atrasa ou apresenta um problema que afeta aquele coletivo silencioso até então no estado de “serialidade”. Neste momento, em torno de resolver este problema imediato e concreto, as pessoas do ponto de ônibus se organizam em torno desta situação para tentar resolver o problema do embarque no ônibus. Este primeiro momento, em que emerge uma grupalidade que opera uma ação na realidade e depois termina, é nomeado como Grupo em Fusão. 

Às vezes a partir da experiência do Grupo em Fusão, algumas destas pessoas resolvem fazer desta tarefa imediata um horizonte de luta que produz o desejo de que este grupo prossiga como um processo. A partir deste ponto irá se constituir a grupalidade como processo e que, para ser fundado, necessita superar os conflitos inerentes no pacto e juramento estabelecido por seus membros individualmente em torno de uma causa coletiva. No entanto, a partir daí, cada sujeito na sua individualidade lidará com os conflitos de interesse pessoal com o interesse coletivo, sempre colocando em risco este pacto-juramento. Este momento Sartre nomeia como grupo organizado. 

Por último, quando o grupo organizado cresce e se transforma a ponto de ter a necessidade de um estatuto, a divisão de poderes e papéis, aqui Sartre localiza a “morte” do poder transformador e crítico desta grupalidade, porque justamente trará dentro da sua constituição formal, o estado de “serialidade”. As pessoas se tornam um registro, um número, um cargo e uma expressão de poder que se expressa como manutenção dos seus lugares individualmente, e o espaço que a Instituição alcançou dentro da sociedade . Este  é o momento que Sartre nomeia como grupo Institucional.  

A partir desta decisão o próximo passo é a construção do enquadre. O enquadre define qual o engajamento norteará a compreensão do processo terapêutico, quais referências hermenêuticas auxiliarão as leituras das experiências vividas nestes encontros e o que será priorizado como foco nas intervenções realizadas pelo coordenador do grupo.

O engajamento do paciente tem uma relação estreita com a queixa apresentada por ele na chegada. Na clínica da dependência de drogas, é comum o paciente não expressar o desejo de querer se compreender. O que ele traz é a necessidade imediata de querer interromper o uso da substância. A interrupção do uso, anunciada no discurso, articula-se ambivalentemente ao desejo de não parar o uso e é, na maioria das vezes, atrelada a um poder mágico projetado na consulta médica ou na internação. 

“Aqui se circunscreve a necessidade de uma função acolhedora do grupo, que entendemos como uma habilidade do terapeuta de (…) não atender aos apelos de urgência e simultaneamente conseguir cumprir a tarefa de amenizar a intensidade emocional presente no pedido de ajuda.”

A primeira estratégia a ser estabelecida para a existência de um grupo é justamente poder criar mecanismos que possam acolher esta forma de chegada dos pacientes. Para tanto, é preciso evitar selar o compromisso de resolver um pedido que corre o risco de não conseguir ser sustentado pelo paciente. Aqui se circunscreve a necessidade de uma função acolhedora do grupo, que entendemos como uma habilidade do terapeuta de, ao mesmo tempo, não atender aos apelos de urgência e simultaneamente conseguir cumprir a tarefa de amenizar a intensidade emocional presente no pedido de ajuda. Esta é a principal função desempenhada por um grupo de chegada num serviço de tratamento de dependentes de drogas. 

Por ser um grupo de chegada ele precisa ser um grupo aberto, possibilitando:

1º.– a troca de pontos de vista entre os pares garantindo legitimidade para que na chegada o paciente se sinta acolhido e hospedado num novo caminho. 

2º.– a compreensão da existência de alternativas outras, que não se constituam apenas em projeções mágicas refletidas na medicação e na internação.

O primeiro ponto de empatia diz respeito aos fracassos crônicos na tentativa de controlar o consumo. As narrativas compartilhadas das múltiplas formas de perdas e seu alto custo aliviam o sentimento de solidão e exclusão que acompanham estes pacientes, cuja história acumula rupturas com a família, com o trabalho, com a namorada (o), com o casamento e consigo próprio. 

Um paciente começa falando de forma dramática a maneira como consumiu a pedra na frente dos filhos, um outro encontra semelhanças na sua experiência e acrescenta o ritual que usa para realizar o consumo. Em pouco tempo nota-se o grupo agitado conversando sobre a experiência como se estivesse na esquina da “boca”, ou seja, começa a ocorrer uma espécie de competição e troca de experiências em clima maníaco dissociado da dramaticidade inicial.

Num grupo de acolhimento é possível também fazer uma pré-triagem identificando diferentes problemáticas envolvendo o uso de drogas: 

1. o consumo dependente da droga, 

2. o abuso circunstancial a um momento específico da vida 

3. a presença de alguma comorbidade psicopatológica contribuindo para que aquele consumo da substância seja tão presente no seu cotidiano. 

O desenho de um projeto terapêutico se faz privilegiando determinadas modalidades terapêuticas, afinadas com certo posicionamento ético-político. O grupo de acolhimento ou de chegada é estratégico neste posicionamento, revelando a maneira pela qual a instituição se dispõe a hospedar o Outro, o estrangeiro, aquele que é estranho aos nossos conhecimentos e experiências de vida.

A discussão sobre hospitalidade feita por Jacques Derrida (2003), no livro “Ao falar da Hospitalidade”, tem especial interesse para refletirmos sobre um grupo de chegada/acolhimento. A dimensão política que acompanha a experiência do dependente de drogas ilícitas se expressa pela auto e hetero exclusão do sujeito, pela carga estigmatizante que acompanha as situações transgressivas desta clínica, levando o dependente a ocupar o lugar do estrangeiro-estranho na sociedade. 

“A maneira como a Instituição irá receber o dependente de drogas terá implicações, não apenas terapêuticas como também revelará qual o seu compromisso com a tarefa de encontrar e ajudar a construir um lugar de inclusão para aquele que chega como um excluído/estranho/estrangeiro.”

A maneira como a Instituição irá receber o dependente de drogas terá implicações, não apenas terapêuticas como também revelará qual o seu compromisso com a tarefa de encontrar e ajudar a construir um lugar de inclusão para aquele que chega como um excluído/estranho/estrangeiro.

Os dois tipos de hospitalidade – a incondicional e a condicional – propostas por Derrida permitem que sejam problematizadas as modalidades de acolhimento. Para viabilizar um projeto terapêutico com o compromisso de maximizar a inclusão social dos dependentes, deve-se buscar inspiração na hospitalidade incondicional descrita assim por Derrida :

 “Digamos sim ao que chega, antes de toda determinação, antes de toda antecipação, antes de toda identificação, quer se trate ou não de um estrangeiro, de um imigrado, de um convidado ou de um visitante inesperado, quer o que chega seja ou não cidadão de um outro país, um ser humano, animal ou divino, um vivo ou um morto, masculino ou feminino”.(Derrida, 2003, p.69) 

Esta abertura radical para a alteridade, tomada em sua face negativa – na figura do estrangeiro, do excluído, do estigmatizado – é encontrada na escuta psicanalítica ou psicodinâmica quando esta não fica amordaçada institucionalmente pela catalogação diagnóstica psiquiátrica. 

Ao buscar ajuda profissional para a dependência, o paciente encontra-se geralmente numa situação de crise, é movido por uma urgência em obter uma solução imediata, configurando uma tentativa de poder amenizar os danos acumulados nas relações com a família, com o grupo de pares, com o trabalho ou pelas práticas ilegais direta ou indiretamente ligadas ao uso de drogas ilícitas.

A resposta terapêutica escolhida para o grupo de chegada, tal como descrevemos acima, alinha-se com a concepção de que o contrário da dependência é a apropriação da liberdade de escolha e não necessariamente a abstinência (Olievenstein,  1990).

Por esta razão consideramos que a redução de danos (Marlatt & Bueno, 1999), tal como a abordagem psicanalítica, são caminhos possíveis para o encontro do sujeito com a sua liberdade, com a possibilidade de uma vida mais digna e de cidadão. 

4.2. Os grupos de auto-ajuda 

Vale mencionar outro tipo de grupo de acolhimento que são os grupos de autoajuda, como, por exemplo, AA e NA. Tais grupos representam uma alternativa de ajuda muito procurada por aqueles que vivem o problema da dependência de drogas. É muito comum na prática clínica ter de enfrentar a presença da procura dos pacientes por este tipo de grupo. 

Dentre outras diferenças na condução destes grupos, salientamos sua própria estrutura operativa; conforme Lima (2001, p.47): “na técnica dos AAs não há uma idealização de um terapeuta, mas um estímulo à fraternidade como busca a homogeneizar os indivíduos, diminuindo ao máximo a liderança”.

Embora reconheçamos o grande préstimo que estes grupos de auto-ajuda representam destacamos possíveis limitações quando a problemática não está focalizada apenas na droga. Dadas as fragilidades comuns aos dependentes de drogas, o mecanismo de identificação que faz operar tais grupos responde muito satisfatoriamente a suas necessidades: já se mostram mais limitados quando outros problemas do funcionamento mental se destacam como efeito determinante na conduta.

O encaminhamento dado às comorbidades não é homogêneo, dependendo do entendimento de cada grupo concreto. Às vezes o paciente pode ser incentivado a buscar tratamento e medicação psiquiátrica, às vezes desestimulado, infelizmente, sob a argumentação equivocada de que estaria trocando uma dependência por outra.

O maior problema nestes grupos se dá naquilo que podemos chamar de “cultura de corredores”. Não é durante a reunião formal que surgem as afirmativas mais ideologicamente comprometedoras, por exemplo, contra qualquer tratamento psicofarmacológico: é nos corredores que circulam estes conselhos informais, onde o fundamentalismo – traço bastante comum entre os dependentes de drogas – se manifesta sem pudor ou controle social grupal. É principalmente entre os membros mais fanáticos, normalmente aqueles mais carismáticos ou com grande capacidade de persuasão, que o problema da dependência está colocado como sendo, sobretudo, de natureza espiritual. 

5. Os pedidos de internação: de quem, para quê?

J., 26 anos, chega ao Pronto-Atendimento do hospital acompanhado da mãe que em desespero diz que seu filho precisa ser internado, pois está passando dias seguidos nas ruas usando drogas. Está descalço, pois trocou seu tênis na bocada e já não há o que o segure em casa. J. diz que a fissura é muito intensa e não está conseguindo ficar sem usar a droga. Apesar do filho concordar, é principalmente a mãe que solicita internação dizendo temer pela sua vida. J. já tinha várias internações anteriores e nunca se vinculou bem a nenhum tipo de tratamento extra-hospitalar.

A internação, como outros pedidos de tratamento, é solicitada pelo paciente ou seus familiares, na maioria das vezes como urgente, mesmo quando o uso/abuso de drogas já acontece há alguns anos. Nestas situações, tudo o que se almeja é uma solução mágica que possa neutralizar a angústia e o desespero imediatos frente à impotência para modificar alguma situação dramática recém ocorrida. A intensidade desta angústia é facilmente identificável àquela que um bebê apresenta diante dos primeiros sinais de fome.  O acolhimento desta angústia nem sempre se faz com uma internação. 

Quando a internação ocorre nessas condições é muito frequente que após um ou dois dias esse desespero desapareça e junto com ele a vontade de se tratar. 

M. está em análise individual e solicita uma desintoxicação porque parou com o uso de cocaína, mas está usando álcool abusivamente. Quer parar com o álcool: …”quero que agora tirem o álcool de mim”.

Ajudar o paciente e sua família a esclarecer o que está se passando e oferecer alternativas de escuta intensiva antes da internação pode aumentar a eficácia dessa última e, conjuntamente, preservar ou mesmo fortalecer a aliança terapêutica a longo prazo.

O momento da indicação de uma internação pode variar muito de paciente para paciente:

  • para aqueles que já haviam iniciado um tratamento, a internação pode contribuir para sua maior adesão e evitar rupturas num processo terapêutico já iniciado 
  • para aqueles que iniciam seu tratamento através da internação, o trabalho intensivo no sentido da busca de um projeto terapêutico pode significar maior rapidez em sua efetivação. 

Os principais objetivos da internação para dependentes de drogas são a desintoxicação, a reorientação do projeto terapêutico e o afastamento do meio quando práticas envolvendo risco inaceitável de vida tornaram-se presentes como o aumento da violência ou inclusão de outras atividades de natureza ilícita que deixam de ser administráveis no tratamento ambulatorial. 

Também pode ser objetivo de uma internação, o tratamento das patologias que acompanham o quadro de dependência, já que a presença de outro quadro psiquiátrico dificulta a aderência ao tratamento, além de refletir em piora do prognóstico. 

“A contribuição do olhar psicodinâmico está na atenção dada ao processo de reapropriação ou construção da autonomia do paciente dependente de drogas. O caminho não será necessariamente linear, pois na escolha desta possibilidade de entendimento contempla-se que o problema clínico da dependência de drogas articula seus condicionantes de forma complexa.”

Para todos os casos, o caráter voluntário, isto é, presença de uma demanda de tratamento é fator fundamental na indicação de uma internação; esta passou a ser a opção preferida em termos de uma maior racionalização na utilização de recursos públicos, inclusive minimizando o efeito estigmatizante de uma internação psiquiátrica. 

A internação, como qualquer intervenção terapêutica, nunca deve ser usada como uma forma de punição, portanto como conduta disciplinar. 

A internação representa uma pequena parte do tratamento e deve ser de curta duração. À exceção dos casos de síndrome de abstinência severa quando a internação é de urgência, para os casos de dependência de álcool e/ou drogas a internação só será indicada quando o projeto terapêutico ambulatorial tornar-se insuficiente para propiciar melhora no quadro clínico e/ou psiquiátrico presentes naquele momento. 

7. Conclusão.  

A contribuição do olhar psicodinâmico está na atenção dada ao processo de reapropriação ou construção da autonomia do paciente dependente de drogas. O caminho não será necessariamente linear, pois na escolha desta possibilidade de entendimento contempla-se que o problema clínico da dependência de drogas articula seus condicionantes de forma complexa. Não se localiza na lógica de uma relação causal que circunscreve e privilegia um aspecto da experiência como algo determinante daquilo que produz o sofrimento. Nestes termos, o projeto terapêutico deverá ser co-construído, privilegiando a participação ativa do paciente na sua elaboração. A eleição de qual ferramenta terapêutica será utilizada em cada momento do caminho terapêutico será a solução encontrada na negociação entre o paciente (concebido como a pessoa que sofre e que busca ajuda) e o psicoterapeuta (pessoa e profissional responsável pelo estabelecimento da relação terapêutica que é também resposta qualificada tecnicamente). Assim caberá ao profissional oferecer os meios para que este percurso do paciente redunde num caminho de maior autonomia. Às vezes este processo se inicia com uma postura refratária do paciente e adesão da família, às vezes é por intermédio da internação que uma nova possibilidade de escolha se vislumbra e em outros casos isto se forja nos processos de idas e vindas do paciente em uma psicoterapia engajada.. 

As melhoras obtidas serão concebidas processualmente como a via relacional onde as ações de cada um serão pautadas pela busca, por parte do terapeuta, de propiciar condições para que, nos embates e superação de impasses terapêuticos, a autonomia1 (Castoriadis, 2000) do paciente, ainda não conquistada, vá sendo progressivamente instituída. Por essa razão, uma flexibilidade da técnica e do uso e articulação dos programas terapêuticos institucionalizados coletivamente deverão ser desenhadas individualmente pela dupla paciente-terapeuta.


1 Entendemos aqui autonomia no sentido apresentado por Cornélio Castoriadis na obra A instituição imaginária da sociedade. No item: Autonomia e alienação. Sentido da autonomia. Individuo. e no item: Dimensão social da autonomia. Pp 122-131.


Referências

Abadi, S. (1998) Transições. O modelo terapêutico de D.W. Winnicott. São Paulo, Casa do Psicólogo. 

Castoriadis. C. (2000) A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 

Derrida, J. (2003) Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade. São Paulo, Escuta.

Gabbard, G.O. (2009) Principais modalidades Psicanalítica/psicodinâmica. IN: GABBARD, G.O., BECK, J.S.; HOLMES, J. Compêndio de Psicoterapia de Oxford. Porto Alegre, Artmed. 

Kehl, M.R. (2003)  Em defesa da família tentacular. Recuperado em 26 de jun. 2007 de http://www.mariaritakehl.psc.PDF/emdefesadafamiliatentacular.pdf

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Marlatt, G.A. & Bueno, D. (1999)  Redução de danos. Estratégias práticas para lidar com comportamento de alto risco. Porto Alegre, Artes Médicas. 

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Diva Reale, Maria de Lurdes Zemel e Valeria Lacks são membras da ABRAMD Clínica

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