Katia Varela Gomes
Rubens Espejo da Silva
Introdução
Neste breve ensaio traremos possíveis exemplos de atos de resistência contra uma vida plena e organizada, normatizada e livre de quaisquer drogas. Em tempos de Políticas Públicas voltadas à abstinência1, do elogio ao comedimento, da intolerância pelos diferentes modos de existência, buscamos na voracidade do legado de Lewis Alan Reed atributos indispensáveis para uma vida hedonista. Estamos vivenciando na primeira década do século XXI o recrudescimento do moralismo, o atavismo bélico como “ordem” social, o pensamento manicomial como lógica de “cuidado”, e, sem dúvida as consequências para pessoas que fazem uso de drogas serão nefastas, bem como para quem pensa e luta por uma sociedade antiproibicionista.
A vida e a obra de Lou Reed apresentam material rico para pensarmos a clínica das dependências. Em um período histórico, em que certo modo de vida era condenado ao silêncio e às sombras, suas canções, através de suas letras e personagens provocavam ruídos e “eletrochoques” culturais. Ao enunciar esse modo de vida, ele nos oferece uma aproximação de realidades não alcançáveis pela lógica racional ou um modo de vida normatizado e adaptativo, nos oferece elementos da ordem da intensidade, dos prazeres, dos desprazeres, das dores, das perdas, da solidão e da ambivalência.
Aldir Blanc comenta sobre seu processo criativo no documentário “Dois pra lá, dois pra cá”, sobre a sua vida e obra: “diziam que a psiquiatria teria me ensinado certos truques e influenciou a vida do letrista. […] Não foi a psiquiatria que abriu a cabeça do letrista. Eu, talvez, tenha feito uma boa psiquiatria na época, porque era antes músico, percussionista e letrista”.
A produção artística de Lou Reed tem o fulgor do mundo underground, em uma dupla inscrição do sofrimento e de outro modo vida. As músicas, as letras e os caminhos de seu trabalho ampliariam para outra escuta na clínica das dependências? Esse ensaio propõe uma reflexão sobre o objeto no centro de nosso olhar no cuidado das dependências – de quem tratamos?
Portanto, neste ensaio, instigados pela potência das letras e pela vida de Lou Reed, convidamos a você leitor(a) a se despir de preconceitos e se nutrir de vitaminas hedonistas. Porém, antes temos uma sugestão para leitura deste ensaio, principalmente para as pessoas que acreditam em uma única forma de cuidado às pessoas que fazem uso de drogas, ou mesmo que acreditem que seja possível uma sociedade livre das drogas. A dica, escrita em 29 de julho de 1888 numa correspondência entre Friedrich Nietzsche e Carl Fuchs, está como epígrafe do livro Nietzsche: Biografia de uma tragédia: “Absolutamente não é preciso, nem ao menos desejado, tomar partido em meu favor: ao contrário, uma dose de curiosidade, como diante de uma excrescência estranha, com uma resistência irônica, me pareceria uma postura incomparavelmente mais inteligente” (Safranski, 2011).
A gênese da revolta e os caminhos pela expressão estética
No ano de 1959, Lou Reed, então com 17 anos, foi levado ao Creedmore State Psychiatric Hospital para tratamento. O prédio de 18 andares, barras e telas de arame cobriam as janelas. Centenas de corredores que conduziam a salas de cirurgia, escritórios fechados com cadeados, mas também as salas de Eletrochoque. O tratamento de Lou: eletrochoque três vezes por semana, durante 56 dias. Os motivos para o “tratamento”, a saber: a rebeldia do jovem, a instabilidade emocional, mas principalmente uma necessidade de “curar” sentimentos homossexuais presentes (Bockris, 2016).
Ele foi levado à sala de operação pequena e desnuda, mobiliada por uma mesa ao lado de um monte metal do qual pendiam dois fios. Ele foi amarrado à mesa. Lou olhou fixamente para as barras de luz fluorescentes no teto enquanto o sedativo fazia efeito. A enfermeira aplicou pomada em suas têmporas e colocou uma tala em sua boca para que ele não engolisse a própria língua. Em segundos, condutores ligados a fio grossos foram conectados à sua cabeça. A última coisa que viu antes de perder os sentidos foi uma ofuscante luz branca. (Bockris, 2016, pp. 12-13)
De acordo com o seu biógrafo Victor Bockris (2016), os pais de Lou não queriam o sofrimento do rapaz, apenas desejavam obediência e, claro, uma conduta de vida “normal”. Essa experiência marcou Lou de forma indelével. Ele escreveria mais tarde: “EU ODEIO PSIQUIATRAS. EU ODEIO PSIQUIATRAS”. O filósofo francês Michel Foucault, no livro Os Anormais desnuda de forma mais “sutil” o que Lou sentiu nos “nervos”: “O duro ofício de punir vê-se assim alterado pelo belo ofício de curar” (Foucault, 2018, p. 21). Não só os pais de Lou Reed encaravam a homossexualidade como uma anormalidade, mas a cidade pequena de Freeport em Long Island, onde Lou crescia também. O lado rebelde e excêntrico deveria ser extirpado ou no mínimo ocultado. Portanto, Lou precisava ocultar seus sentimentos e o fez, mas não sem sequelas. Em 1979 declarou numa entrevista:
Eu me ressenti. Era um entrave muito grande. Desde os treze anos, eu poderia ter me divertido sem pensar sobre essa merda. Que perda de tempo. Se o amor é o fruto proibido, então você passa a maior parte do tempo brincando com o ódio. Quem precisa disso? Eu me sentia passado para trás. (Bockris, 2016, p. 21)
Lou Reed tinha que fugir do controle familiar que obviamente resultava em punição e reclusão travestidos de cuidados. Ele não só fugiu, como criou a canção “Kill your sons” onde vocifera o ressentimento contra os pais, contra o tratamento psiquiátrico recebido. Segue trecho da canção:
Em Creedmore me trataram muito bem Mas em Payne Whitney foi ainda melhor E quando pirei no PHC Fiquei tão triste – não recebi nenhuma carta lá Todas as drogas que tomamos, foi realmente muito divertido Mas quando chaparam você com cristais Therozine pra fumar Você se engasgou com um filho da mãe Você não sabe? Vão matar seus filhos Até que eles fujam fujam fujam fujam fujam fujam2 Lou Reed (Sally Can´t Dance, 1974)
Essa experiência provocou marcas e sofrimento para Lou Reed, no entanto supomos que possa também ter encontrado uma forma para lidar com essas vivências, transformando em produção artística a sua dor e ambivalência incontidas de suas vivências. Ele afirmou que a composição havia lhe devolvido os batimentos cardíacos e o fez voltar a sonhar (Bockris, 2016). Quantas vezes na clínica das dependências, ouvimos o relato da necessidade do uso de substâncias psicoativas, principalmente, as do tipo estimulantes para aceleração do batimento cardíaco, para o aumento da excitabilidade das sensações, para trazer algum significado à existência ou pela impossibilidade de sonhar.
Alguns acontecimentos em sua história podem ser marcadores de uma forma de expressão das dores, do ódio e da vingança vividos nesses dias no Hospital Psiquiátrico. Reed resolve sair da casa dos pais e da cidade em que vivia, mudando-se para Lower East Side que serviram de alimento ao seu ímpeto criativo: “O bairro era a argila, como disse Allen Ginsberg, da qual nasceu a sensibilidade apocalíptica, o interesse na arte mística, os restos marginais, o lixo da sociedade.” (Bockris, 2016, p. 84). O sentimento comum e compartilhado pautava-se na concepção de que a sociedade era a prisão do sistema nervoso e em um enaltecimento das explorações pessoais para transformá-las em produção artística. Essa convivência e cenário urbano serão transformados em fonte de inspiração para a escrita das letras de Lou Reed.
Outro momento marcante na ruptura com o formato estético da época foram os shows multimídia do grupo Velvet Underground, tendo como empresário Andy Warhol, que coreografou o grupo para “eletrificar a humanidade” com sua performance. O show multimídia “Explodin Plastic Inevitable” (EPI) fez a sua primeira apresentação em um jantar de convenção de médicos psiquiatras que convidaram Warhol para discursar, esse por sua vez, sugeriu exibir alguns filmes. Os filmes exibidos integravam cenas de sadomasoquismo e “um bando de jovens sarnentos vestindo jeans sujos e jaquetas executaram uma canção urrada sobre heroína.” Nesse show performático, Lou chegou ao clímax com seu hino à nulificação, entoando: “And I guess that I just don´t know”3. O evento foi noticiado no New York Times no dia seguinte sob o título “Tratamento de Choque para Psiquiatras” (Bockris, 2016, p. 102).
Em sua juventude, Lou sofreu passivamente a brutalidade de um tratamento por eletrochoque na tessitura de uma lógica normativa. Anos mais tarde, ele experimenta aplicar outro tipo de “tratamento de choque” aos médicos psiquiatras que assistiam passivamente e atônitos essa performance, no entanto, dessa vez no âmbito de uma peça musical que buscava romper um padrão estabelecido, “eletrificou” a plateia com seus tons de raiva e vingança, refletindo a essência criativa de sua união com Warhol. Os efeitos provocados pelo show foram descritos pelo escritor Stephen Kock (Bockris, 2016):
O esforço para criar um ambiente explosivo, mais precisamente implosivo, capaz de estilhaçar qualquer foco imaginável dos sentidos foi muito bem sucedido. Tornou-se impossível dançar, ou fazer qualquer coisa que não se sentar e ser bombardeado – apedrejado. O show me fez perceber pela primeira vez o quanto as então admiradas teorias atacando o ego como a raiz de todos os males e infelicidades haviam se tornado para a vanguarda a base de uma metáfora de sadismo sexual profundamente engajada, para explodir a mente, atacar os sentidos, entendi como a obliteração do ego não era o ato de libertação alardeado naqueles dias, mas um ato de completo ressentimento e vingança totalmente emaranhados no nível mais profundo com nós de frustração. (p. 118-119).
O processo criativo de Lou Reed percorre os caminhos do uso experimental ao uso nocivo e suas vivências com pessoas do cenário underground. Essas vivências alimentavam suas criações e estórias sobre as adicções, o tráfico, a prostituição – ou seja, enredos sobre a vida e a morte. Suas letras apresentam uma crítica à sociedade hipócrita, desigual e cruel, e a situação do uso de substâncias psicoativas, não apenas um deleite de prazeres individuais narcísicos, mas principalmente, uma forma de existir contrário a tudo que se apresentava como conduta normal. Lou era observador, condição essa que utilizou para nos apresentar biografias de vida: “Estou sempre estudando pessoas que conheço, e quando acho que as entendi, saio e escrevo uma canção sobre elas. Quando canto, torno-me elas.” (Bockris, 2016, p. 39).
O uso de drogas em um bom período de sua vida e sua sobrevivência revelam um traço realista e um conhecimento sobre os narcóticos que consumia, uma das estratégias de Redução de Danos. Os elementos criativos em suas composições, como também suas estratégias de auto cuidado, indicam caminhos que vão além de estratégias de sobrevivência, mas sobretudo formas de expressão de um sofrimento através de sua estética musical, que ganham um contorno pelos personagens que elucida.
Harvard (2004) cita que os planos de Lou Reed eram transportar a sensibilidade de Raymond Chandler e Edgar Allan Poe para o rock, sua intenção era contar estórias através das canções compostas para o Velvet Underground – “Seguindo a cartilha do cinema noir e das revistas de pulp fiction, Reed e companhia escancararam a cortina que separava a música pop do resto do mundo, mostrando que havia nela algo que ia além de canções melosas – criaram uma nova música verité – um rock noir” (p. 19). Suas canções tem o estatuto das evocações visuais cinematográficas, da ambivalência afetiva beirando o horror dos contos de Edgar Allan Poe.
É importante considerar essa configuração estética do trabalho de Lou Reed, desde o trabalho com o Velvet Underground, pois nos oferece uma aproximação com a experiência do toxicômano – pelas representações imagéticas, pela fusão de afetos de amor e ódio, de prazer e desprazer. Harvard (2004, p. 23) escreve sobre a sonoridade do primeiro álbum The Velvet Underground and Nico: “Às vezes limpa e tranquila, em algumas passagens sombria e triste; desistindo em certos momentos e então, subitamente, seguindo em frente, borbulhando, fervendo, afluentes se misturando, fluindo sempre como água. Em cada uma das incríveis canções”. Poderia facilmente ser a descrição do percurso de um toxicômano ou ainda dos caminhos e oscilações de nosso psiquismo.
Ainda que existisse o risco de se tornarem uma banda panfletária de aprovação das drogas ou das diversas formas de experiências sexuais, de produção cultural sensacionalista, o Velvet Underground abordou em suas canções temas que ninguém havia feito, sobre heroína, orgias, metanfetamina, servidão e punição, submissão física e emocional, violência, transgêneros, transexuais e marginais com vivência nas ruas – “A música do Velvet Underground não se propunha somente a chocar ouvintes acomodados, ela tratava da expansão do tema lírico e da permissividade da voz entre os escritores do rock, para além dos limites dos temas confortáveis.” (Harvard, 2006, p. 32).
Ao provocar esse desconforto, a trajetória artística de Lou Reed desde o Velvet Underground assume um lugar de resistência, de contra conduta como define Michel Foucault, que desenvolveremos mais adiante.
Outro ponto importante, ainda sobre a sua concepção estética, diz respeito à ambivalência presente em suas canções. Encontramos melodias doces, suaves, com letras e temas de intensidade e dores diametralmente opostos. Entre essas canções, no álbum Loaded, Oh! Sweet Nothing é um relato triste de pessoas desprezadas, humilhadas, jogadas na rua:
Diga alguma coisa para Jimmy Brown, ele não tem nada na vida Nem a camisa que veste, ele não tem nada na vida Diga alguma coisa para Ginger Brown Ele caminha de cabeça baixa Tiraram os sapatos dos seus pés E atiraram o pobre rapaz na rua E é isso o que ele diz Oh, o doce nada, ela não tem nada na vida [...] Lou Reed (Oh! Sweet Nothing, 1970)
Ainda sobre a estética de suas canções, no primeiro álbum Velvet Underground and Nico, Heroin é citada como a mais extraordinária, porque consegue traduzir uma “experiência física por meio de uma detalhada paisagem sonora”, provocou uma ruptura com as canções melosas de rock´n´roll comercial, favoreceu a liberdade em escrever sobre a vida real e sobre as situações limites da vida.
… a tumultuosa colisão da devastação da guitarra e do gemido da viola, a dinâmica oscilante entre o barulho completo e a esquelética melodia de ninar, as ousadas mudanças de ritmo e de tempo. É uma canção de um engenho programático, que o suga até o início do “barato” do dependente, com uma aceleração viciante, e subitamente chega a uma calmaria morta, como quando o estado opiáceo se inicia. (David Fricke apud Harvard, 2006, p. 111)
Heroin é como experimentar um baque de opiáceo, pelas suas variações de aceleração e calmaria, seja pelo seu ritmo alternando executado em dois acordes, seja pela letra, com mais palavras a cada verso. Poderíamos permanecer na experiência de gozo do ritmo e batidas repetitivas, onde vivenciaríamos apenas os prazeres do êxtase, mas a letra da canção integra de forma paradoxal o êxtase ao horror:
Não sei bem aonde estou indo Mas vou tentar o reino dos céus, se eu puder Porque ela me faz me sentir um homem Quando sinto o pico na minha veia Vou te contar, nada mais é a mesma coisa Quanto estou correndo apressado E me sinto igualzinho ao filho de Jesus E acho que já não sei de nada Tomei uma grande decisão Vou tentar anular minha vida Porque quando o sangue começa a circular Quando sobe pela seringa Quando estou me aproximando da morte Vocês não podem me ajudar, vocês não, caras Nem vocês, meninas meigas com sua conversa meiga Vocês todos podem ir dar uma volta E acho que já não sei de nada Queria ter nascido dez mil anos atrás Queria ter navegado os mares mais sombrios Num senhor veleiro dos grandes Ir desta aqui até outra [...] Pra longe da cidade grande Um homem não consegue se livrar De todos os demônios desta cidade E dele mesmo e dos que estão à sua volta [...] Heroína, seja minha morte Heroína, minha esposa e minha vida Porque uma agulha na minha veia Leva ao centro da minha cabeça E aí fico melhor do que se estivesse morto Porque quando ela começa a circular Já não estou nem aí mesmo Com os pobres coitados desta cidade E com todos os políticos loucos barulhentos E com todo mundo pisando em todo mundo E com todos os mortos empilhados [...] Lou Reed (Heroin, 1967)
Heroin é “uma das canções mais profundamente comoventes e incômodas” (Harvard, 2004, p. 113). Retrata uma súplica por uma condição de humanidade ao se drogar – “me faz sentir um homem, me sinto como filho de Jesus” e ao mesmo tempo, o caminho para a anulação da vida – “quando estou me aproximando da morte, vocês não podem me ajudar”. Retrata a dor insuportável diante de uma realidade objetiva e subjetiva – “os demônios desta cidade e dele mesmo, os pobres coitados desta cidade, os políticos loucos barulhentos, e com os mortos empilhados.” Reed tem a liberdade da escrita de uma realidade, de quem vive driblando a dor pela experiência toxicomaníaca.
Apesar de Heroin ser uma das músicas mais famosas de Lou, a droga mais associada a sua imagem era a anfetamina, com funções vitais para a sua criatividade – “permitia que ficasse acordado por três a quatro dias seguidos, alterava a sinapse de seu cérebro, eliminando boa parte da estática que havia limitado o fluxo de palavras, e dava-lhe na escrita a energia para perseguir cada visão até sua conclusão” (Bockris, 2016, p. 114). Encontramos referência ao speed em algumas dessas suas músicas e podemos observar esse processo de criação na canção White Light/White Heat, no terceiro álbum do Velvet Underground: “Luz Branca/Bagunçando minha mente/Luz Branca/Não sabe que vai me deixar cego?/Calor Branco/Comichão até as unhas dos pés”. Em outro momento da canção: “Cuidado aí, cuidado aí/Não sabe que você vai acabar morto e ressecado?/Calor Branco”. E ainda: “Oh, Luz Branca ilumina os meus olhos/Luz Branca/Não sabe que me deixa muito espantado?” (Schwartz & Galindo, 2010).
Ressaltamos a multiplicidade e ambivalência das funções e efeitos das substâncias psicoativas representadas nessa canção. White Light/White Heat faz referência à promoção da desordem em sua mente, ao mesmo tempo, que oferece iluminações, tão claras que podem cegar. A letra alterna entre luz e calor branco, sobre a expansão da consciência e da criação, como também, das sensações físicas pelos seus efeitos estimulantes e no jogo com a morte – “cuidado, não sabe que vai acabar morto e ressecado?”.
Essa temática da morte também esteve presente em suas canções, ora retratando um caminho de autodestruição e violência vivida pelos personagens, ora desejando o desaparecimento. Enquanto não desaparecemos, temos as palavras para nos enlevar:
Mago, mago, me leva em tuas asas E com cuidado recolhe as nuvens Lamento, lamento tanto não ter encantos Apenas palavras para ajudar a me enlevar Quero um pouco de magia que me enleve Quero contar até cinco Virar e me descobrir desaparecido Arrebatado através da tempestade E acordar na calmaria Lou Reed (Magician, 1992)
O Uso de Drogas como Arte de Viver
As drogas estão mais que presentes na história da humanidade, elas alimentaram, acompanharam em viagens, transformaram realidades, aliviaram dores, serviram às guerras e ainda remeteram ao sagrado e ao profano. Enfim, sua ubiquidade é inquestionável. Mas afinal, o que são as drogas para as espécies viventes do planeta, no caso nós, os humanos:
Drogas são objetos subjetivos, produzem subjetividades, são técnicas de si, moduladores humorais, cognitivos ou sensoriais, são plasmadores de estados mentais e corporais, servindo assim, na história das civilizações, como alguns dos mais eficientes instrumentos de criação de vivências e de experiências, cujos conteúdos, longe de ser apenas determinação farmacológica objetiva, são veículos para sentidos profundos, significados simbólicos e imaginários – além dos efeitos “puros” do fármaco, há um conjunto de efeitos culturalmente significativos (Carneiro, 2019, p. 30-31).
O que almejamos por meio do uso de drogas:
As drogas satisfazem carências muito diferenciadas: de paz ou de energia, de transe ou de euforia, de concentração ou de anestesia. Mas o denominador comum que se busca em todas é a sensação difusa do bem-estar. Ou mesmo de algo além de um bem-estar, um excesso de bem-estar, um ótimo bem-estar (Carneiro, 2019, p. 28).
Qual seria o aspecto principal de nossa busca? – O prazer – . Zaratustra, o profeta sem Deus, assim falou: “mas todo prazer quer eternidade – quer profunda, profunda eternidade!” (Nietzsche, 2011, p. 218). Eis o paradoxo, o prazer eterno, o profundo prazer é interdito. Dito isto: “uma droga não é apenas um determinado composto com certas propriedades farmacológicas” (Escohotado, 1997, p. 27). Ela, a “droga”, transborda toda e qualquer conceitualização, mas alguns artistas descrevem a fluidez das sensações, das emoções, segue uma autoetnografia descrita por Lou Reed:
“Na época em que escrevi ‘Heroin’, eu me sentia uma pessoa muito negativa, pressionada, violenta, agressiva. Queria que essas canções exorcizassem a escuridão, o elemento autodestrutivo em mim, e esperava que outras pessoas as encarassem da mesma forma. ‘Heroin’ é muito próxima do sentimento que você tem quando injeta. Começa em certo nível, é enganadora. Você acha que está curtindo. Mas, quando bate, é tarde demais. Você não tem escolha. Vem cada vez mais forte e mais rápido, e continua a vir. A canção é tudo que a droga de verdade faz com você” (Bockris, 2016, p. 69).
No transbordo de conceito não se faz necessário conceitualizar, afinal para isso já temos os “especialistas” da OMS. O que nos foi apresentado é o inaudito em cifras musicais, poema de vidas “negadas”. Lou Reed com sua métrica e temática seria considerado o Baudelaire de Nova York (Bockris, 2016). Pensar o próprio uso e suas vicissitudes tem em Lou Reed certa arte de viver. Primeiro a admiração, depois a aproximação com os escritores Beatniks, o contato com William S. Burroughs, a inspiração em Jack Kerouac, a fortiori, poderíamos dizer que produziram este elogio à vida junky. Porém, o que é um junky? Nas palavras do próprio mestre Burroughs, no livro Junky o Drogado:
Droga pesada – junk – é uma equação celular que ensina ao usuário (junky) verdades de validade universal. Aprendi muito usando junk: vi a vida sendo medida em conta-gotas com solução de morfina. Senti a privação agônica da droga – a chamada “fissura” – e o alívio prazeroso quando as células sedentas de junk bebiam da agulha. É possível que todo prazer seja apenas alívio. Aprendi o estoicismo celular que a droga ensina ao usuário. Vi uma cela repleta de junkies fissurados, silentes e imóveis em suas misérias estanques. Eles sabiam o quanto era inútil reclamar ou se mover. Sabiam que ninguém ali podia ajudar ninguém. Não há nenhum recurso, nenhum segredo que alguém possua e possa te oferecer. Aprendi a equação junk. Droga pesada não é um meio de aumentar o prazer de viver. Junk não é um barato. É um meio de vida (Burroughs, 1984, p. 16).
Encontramos na citação acima mais do que uma definição; encontramos a produção de sentido no ato de usar drogas, enfim, a construção de uma arte de viver, uma tékhne toû bíou4 junky – uma espécie de imanência por meio do junk. Dito de outra forma, um elogio ao uso de drogas, uma filosofia junky. Portanto, temos aqui o usuário de drogas como um estóico e Lou Reed como seu arauto musical. Experimente ‘Heroin’!
Uso para ficar “normal” – Resistindo aos brutos, persistindo ao tempo!
O uso de drogas é carregado de preconceitos, obscurantismos, mas principalmente de uma inegável atração, seja pelo desejo de experimentar, ou no seu paroxismo às avessas, ou de negar seus usos – eis a mentalidade proibicionista. Para construção de um aparato médico, legal que fundamenta os “malefícios” recorreu-se e ainda se recorre aos experts do comportamento humano. Para Nikolas Rose (2011), precisamos de experts no comportamento humano para definir os “nervos”, e nós psicólogos e outros profissionais da saúde o fazemos sem criticidade alguma, é um apanágio nosso a taxinomia humana:
Temos visto uma proliferação de experts da conduta humana ao longo dos últimos cem anos; economistas, gerentes, contadores, advogados, conselheiros, terapeutas, médicos, antropólogos, cientistas políticos, peritos em políticas sociais, e assim por diante. Mas eu diria que a “unificação” dos regimes de subjetivação em termos do self tem muito a ver com o surgimento de uma forma particular de experts positivos do ser humano – aqueles das disciplinas psi, com sua “generosidade”. Por “generosidade” quero dizer que, contrariamente a visões tradicionais da exclusividade do conhecimento profissional, as disciplinas psi têm sido felizes, até mesmo ansiosas, por “entregar-se” – por emprestar seus vocabulários, explicações e formas de julgamento a outros grupos profissionais e implantá-los em seus clientes (Rose, 2011, p. 55).
Estamos muito imbricados neste processo, principalmente quando o assunto é o uso de drogas, pois é necessário observar e dialogar com a contradição que nos constitui, a saber: uma necessidade de curar o outro sem que no outro nada exista para ser curado. Obviamente isto não é um axioma, mas uma forma de denunciar o “legítimo” uso e abuso destes saberes produtores de corpos dóceis e aos quais Lou Reed contesta!
“Eu uso drogas porque no século 20, em uma era tecnológica, vivendo na cidade há certas drogas que você pode consumir só para se manter normal, como um homem das cavernas. Não apenas para ficar para cima ou para baixo, mas, para chegar ao equilíbrio, você precisa de algumas drogas. Elas nem te deixam chapado, elas só te deixam normal” (Bockris, 2016, p. 83).
Entendemos que o uso de drogas pode configurar formas de resistência – a contra conduta. Foucault (Lemke, 2018) desenvolve que ao lado das lutas contra a dominação política, social ou religiosa e das lutas contra a exploração econômica, emerge um novo campo de disputas: lutas contra formas de subjetivação. Lutas que consistem em ações contra “o governo da individualização”, contra a adaptação a normas sociais legitimadas cientificamente e universais como base aos modelos corporais, às relações de gênero e a outras formas de vida. Mas, antes de caminharmos para as formas de resistência, enfatizamos as formas de subjetivação pela normalização.
A norma, como é desenvolvida por Foucault (2008), ou a normalização da conduta, é diferente do modelo disciplinar, ainda que sejam complementares. A importância desse conceito contribui para a compreensão do racismo de Estado, da eugenia e da Necropolítica, sendo que essa última seria sua variação e representação extrema.
Nós nos convertemos em uma sociedade essencialmente articulada sobre a norma. O que implica outro sistema de vigilância, de controle. Uma visibilidade incessante, uma classificação permanente dos indivíduos, uma hierarquização, uma qualificação, o estabelecimento de limites, uma exigência de diagnóstico. A norma converte-se no critério de divisão dos indivíduos. Desde o momento em que é uma sociedade da norma a que está se constituindo, a medicina, posto que ela é a ciência por excelência do normal e do patológico, será a ciência régia. (Foucault, 1994 apud Castro, 2016, p. 310).
Para o desenvolvimento das concepções de norma utilizaremos a compreensão sobre conduta e do poder pastoral. Ressaltamos que o poder para Foucault, em sua forma moderna, se exerce pelo domínio da norma, isso significa dizer que não se reprime simplesmente uma individualidade, através de dispositivos disciplinares, mas a partir da valorização das condutas, impondo uma conformidade que se deve alcançar na tentativa de uma homogeneização. Disciplina e Biopolítica são os eixos que conformam o biopoder (Castro, 2016). A noção de conduta torna-se central na compreensão do autor, a partir do poder pastoral.
Foucault utiliza, em seus elementos de análise, as raízes na Antiguidade grega e judaico-cristã, fazendo oposição entre o pastor e o político. O modelo político dos gregos exerce seu poder sobre um território, com leis que devem perdurar após o seu desaparecimento. Já o modelo pastoral no judaico-cristianismo exerce seu poder sobre um rebanho, sobre uma multiplicidade em movimento. O poder pastoral é fundamentalmente um poder benfazejo, definido pelo bem-fazer, ele não tem outra razão de ser senão fazer o bem, porque o objeto essencial para o poder pastoral é a salvação do rebanho (Castro, 2016; Foucault, 2008).
A forma que o poder pastoral adquire não é inicialmente, a manifestação da sua força e da sua superioridade. O poder pastoral se manifesta inicialmente por seu zelo, sua dedicação, se configura como um poder individualizante, que guia para um objetivo: se encarregar da alma dos indivíduos, na medida em que implica numa intervenção permanente na conduta cotidiana, na gestão das vidas (Foucault, 2008).
O poder pastoral não tem por função fazer mal aos inimigos; sua principal função é fazer o bem em relação àqueles de que cuida. Fazer o bem no sentido mais material do termo significa alimentá-lo, garantir sua subsistência, oferecer-lhe um pasto, conduzi-lo às fontes, permitir-lhe beber, encontrar boas pradarias (Foucault, 2008).
Portanto, o poder pastoral é um governo dos vivos e o biopoder, sob este aspecto, estará muito mais próximo do poder pastoral do que da soberania. Foucault analisa como o pastorado dispersou-se e adquiriu a dimensão da governamentalidade, através de um tipo de poder bem específico que tem por objeto a conduta dos homens, este entendido como o ato que envolve conduzir ou como a pessoa se conduz; como se deixa conduzir; como é conduzida e como ela se comporta.
Nessa dimensão, o poder pastoral foi contra todo tipo de desordem, efetivando-se uma correlação entre a conduta e a contra conduta, sendo essa última qualificada como mal, o mal absoluto. A contra conduta é analisada por Foucault (2008) como resistências e revoltas, e muitas são relacionadas a mulheres, no estatuto na sociedade, na sociedade civil ou na sociedade religiosa. Em síntese, a contra conduta questionava: Por quem aceitamos ser conduzidos? Como queremos ser conduzidos? Em direção ao que queremos ser conduzidos? (p. 259). Como bem analisa o autor, a resistência não seria exterior ao poder, mas surge de suas entranhas e relações.
As formas de resistência na vida e obra de Lou Reed são manifestadas pela ruptura com padrões normalizados de conduta, ao trazer em suas canções vidas e corpos não sujeitados, modos de vida qualificados como mal, corpos descartáveis pela ausência de políticas de cuidado e preservação da vida, assim como, vidas desperdiçadas destituídos de meios de sobrevivência e ao direito a uma existência singular. Enquanto, tirava da sombra e do silêncio corpos invisíveis mostrou a face da condição humana de vidas que insistem em sua singularidade:
Vou ser teu espelho, vou te refletir Caso você não saiba quem é Vou ser o vento, a chuva e o pôr do sol A luz à tua porta Pra mostrar que você está em casa Quando achar que a escuridão tomou a tua mente Que por dentro você está perturbado e amargo Me deixe te mostrar que você está cego Por favor, baixe a guarda Porque eu te vejo Acho difícil Acreditar que você não saiba A beleza que tem Mas, se não sabe, Me deixe ser teus olhos A mão que te guia na escuridão E você não vai ter medo Lou Reed (I´ll be your mirror, 1967)
1 “Nova” Política Nacional sobre Drogas – Decreto N° 9.761 de 11 de abril de 2019.
2 Todas as letras são de tradução de Christian Schwartz e Caetano W. Galindo. Atravessar o fogo: 310 letras de Lou Reed. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
3 “E acho que já não sei de nada”, tradução por Schwartz e Galindo. Atravessar o Fogo: 310 Letras de Lou Reed, 2010. Resolvemos manter a letra original no texto, em função da sonoridade e repetição do refrão com variações no ritmo e velocidade. Efeitos produzidos por essa canção, em sua gravação no disco Velvet Underground and Nico.
4 Extensão à vida individual, ou coextensividade do cuidado de si à arte de viver (a famosa tékhne toû bíou), a arte da vida, a arte da existência que, como sabemos, desde Platão e sobretudo nos movimentos neoplatônicos, virá a ser a definição fundamental da filosofia. O cuidado de si torna-se coextensivo à vida (Foucault, 2014, p. 79).
Referências
Bockris, V. (2016). Transformer: A história completa de Lou Reed. São Paulo: Aleph.
Burroughs, W. S. (1984) Junky: Drogado. São Paulo: Brasiliense.
Carneiro, H. (2019). Drogas: A História do Proibicionismo. São Paulo: Autonomia Literária.
Castro, E. (2016). Vocabulário de Foucault. Um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica Editora.
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Katia Varela Gomes e Rubens Espejo são membros da ABRAMD Clínica
Não conhecia a biografia do Lou Reed. Muito interessante compreender a composição de uma letra e música compreendendo o contexto . Ficou claro o movimento de resistência. E dá para extrapolar e pensar o quanto as desmedidas são expressões invariavelmente de resistência. Muito diferente trocar o conceito de dependência por resistência, não!?
Parabéns pelo artigo!