Celi Cavallari
INTRODUÇÃO
Na nossa sociedade a clínica voltada aos usuários de drogas, em especial de psicoativos tornados ilícitos desde a convenção internacional nos anos 1960, enfrenta o confronto com temas sobrecarregados por preconceitos; e quando esse uso é feito por mulheres, são mobilizados ainda mais Tabus.
No século XVIII o lugar atribuído à feminilidade é o da vida privada, da administração doméstica, do casamento e, principalmente o da maternidade; nessa época, algumas publicações de Rousseau influentes até hoje, definem a necessidade de se educar as mulheres na vergonha e no pudor para conter sua natureza sexual e preservar a vida conjugal e a fidelidade, como comenta Maria Rita Kehl. (2016 p. 52).
Com o feminismo da era moderna, a partir do século XIX, as mulheres travaram lutas pela igualdade de direitos e, depois de muita repressão, conquistaram algumas melhorias nas condições de existência psicossocial. Porém é necessário reconhecer a disparidade de gênero, que ainda persiste e que recentemente recrudesceu.
Concordamos com outros autores que o desejo e a autonomia femininos são até hoje cerceados (Homem & Calligaris, 2019 p. 19). O efeito psicossocial dessa discrepância, desde antes do nascimento de alguém, corrobora com todo tipo de discriminação para além das mulheres, como gênero, raça, etnia, idade, deficiências ou classe social; diferenças que vão impactar direta ou indiretamente na relação entre direitos e deveres, possibilidades ou restrições em nosso meio.
No que se refere à sexualidade, à saúde mental e ao uso de substâncias psicoativas a repressão sobre as mulheres é sobredeterminada pela condenação moral e quando os sintomas saem de controle, a penalização recai com frequência na ameaça de perda da guarda dos filhos.
MOMENTO SÓCIO-HISTÓRICO:
A interseção entre feminismo e uso de drogas é permeada pelo atual contexto histórico, pós surto pandêmico de COVID-19, fonte de grande sofrimento psicossocial, com elevados índices mundiais de violência doméstica (Ornell et al., 2020), de crise socioeconômica que acarretou aumento de vulnerabilidade às mulheres (Ramos et al., 2022) e por muitos retrocessos referentes aos direitos humanos e à polarização política; que inevitavelmente atingem o modo de viver e as condições psíquicas individuais e coletivas.
No Brasil, a representatividade das mulheres nas esferas de poder público segue desproporcional, segundo dados do IBGE revelados pela Agência Brasil (2024) em um universo de 52,7% de eleitoras, temos o total de 12,1% de prefeitas, 23,7% de ministras e 40% de magistradas. Quanto aos cargos gerenciais nos demais setores, as mulheres são maioria apenas em áreas de cuidado, mais ocupadas pelo gênero feminino na sociedade: educação (69,4%), saúde humana e serviços sociais (70%); no que se refere aos rendimentos, as mulheres, em postos gerenciais, recebem 78,8% da remuneração paga aos homens.
Qualquer análise que fale de feminismo requer considerar a hierarquia de gênero, raça, classe, idade e deficiências que recaem sobre as mulheres, não apenas na perspectiva socioeconômica, mas do lugar que lhes é destinado na sociedade, na família e nas relações interpessoais, permeado pelo sistema de crenças que compõe sua identidade individual e coletiva.
A política mundial de drogas, por sua vez, prossegue com indicadores que continuam a revelar o fracasso do proibicionismo e da chamada Guerra às Drogas em seu objetivo de diminuição do uso. O recente relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) revela que no mundo, mais de 296 milhões de pessoas usaram drogas em 2021, um aumento de 23% em relação à década anterior (UNODC, 2023).
No contexto nacional, o Senado aprovou recentemente uma emenda constitucional (PEC 45) que enrijece ainda mais o proibicionismo aos usuários de drogas ilícitas no país, na câmara federal há um projeto de lei (1904) que torna abortos legais passíveis de pena de prisão de até 20 anos para mulheres estupradas, caso a gestação ultrapasse 22 semanas, enquanto a pena máxima para o crime de estupro é de 10 anos. Embora tenham ocorrido protestos contra o PL 1904 por todo o país, até o momento o projeto não foi arquivado.
O Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução CFM nº 2.378/2024 que trata da proibição aos médicos de realizarem assistolia fetal (procedimento recomendado pela Organização Mundial de Saúde para abortos com mais de 20 semanas de gravidez) em gestações com mais de 22 semanas originadas por estupro. A resolução foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal, porém o referido Conselho está recorrendo (Conselho Federal de Medicica, 2024). O presidente do CFM alegou que a autonomia do corpo da mulher é relativa (Instituto Conhecimento Liberta, 2024).
Nesse ano (2024) houve aumento de verbas públicas para internações nas chamadas comunidades terapêuticas, sendo raros os serviços de portas abertas com cuidados específicos para mulheres que estejam em busca de tratamento para uso problemático de psicoativos, destaque-se ainda que o índice de encarceramentos femininos relacionados às drogas aumentou substancialmente desde os anos 1990. Um momento histórico delicado, com retrocessos e instabilidades em geral, que atingem diretamente às mulheres, aos usuários de substâncias psicoativas e a todos os mais vulneráveis.
Porém, apenas com essas colocações citadas até aqui, é possível desvelar a condição das mulheres submetidas ao controle de seus corpos, pela violenta repressão física, psicológica, jurídica, institucional e social, que está generalizada e requer urgente transformação psicossocial para um equilíbrio mais salutar de toda a sociedade.
FEMININO, FEMINISMO E PSICANÁLISE
Como aventado acima, no final do século XVIII Rousseau formulou argumentos que permeiam até hoje o papel da mulher na constituição da família burguesa. Enquanto ao homem caberia o espaço político e a vida pública, as mulheres deveriam ser educadas para desenvolver sua feminilidade e desempenhar seu lugar natural na vida privada como esposa e mãe: Os defensores da sujeição feminina no século XIX seguiram os argumentos de Rousseau e Kant, segundo os quais a mulher é um animal selvagem que é preciso domar com a mão de ferro para que ela possa, pacificada, encarregar-se da paz doméstica. (Kehl, 2016)
Em meados do século XIX, o movimento feminista se organizou pela luta das mulheres por igualdade de direitos, a partir do movimento sufragista (Inglaterra e França), elas aspiravam participar da vida política, poder votar e ser eleitas; na sequência histórica as mulheres passaram a lutar pelo reconhecimento das diferenças e por maior autonomia e inserção no espaço público. Em que pese vários avanços terem sido alcançados no ocidente, a estrutura patriarcal e machista ainda vigora no dia a dia, nas esferas de poder e nos valores sociais em geral.
Embora a psicanálise tenha sido porta-voz da escuta das mulheres e tenha revelado o adoecimento das histéricas devido aos conflitos da repressão à sexualidade e das restrições impostas pela cultura, é inegável que suas formulações iniciais foram feitas por autores homens e foram influenciadas por esse lugar de fala.
Em estudos sobre psicanalistas mulheres, desde 1920 encontramos questionamentos e argumentações que, por um lado contribuíram para mudanças na teoria freudiana, que sofreu transformações profundas nessa época, mas por outro, muitas não foram incluídas. Por exemplo, Karen Horney, baseada em sua prática clínica, escreveu uma teoria para além da inveja do pênis, na qual a inveja da gravidez, do parto, da maternidade, dos seios e da amamentação estão presentes no menino. A autora refere também a importância de se levar em conta que há uma desvantagem real em ser mulher em uma sociedade patriarcal. Essa desvantagem reforçaria a inveja do pênis originária (autoerótica). (Rosa & Weinmann, 2020)
O século XX foi palco de grandes avanços do pensamento feminino em relação ao lugar sociopolítico econômico da mulher na sociedade, entretanto, movimentos políticos radicais reagiram de forma brutal contra esses avanços. Exemplar é o caso da política fascista de Mussolini no tocante às mulheres. Em seu livro Mussolini ha fatto tanto per le donne! Le radici fasciste del maschilismo italiano (“Mussolini fez tanto pelas mulheres! As raízes fascistas do machismo italiano”) Mirella Serri (2022), esclarece que Mussolini determinou a demissão em massa das mulheres que deveriam ser, a partir daquele momento, “os anjos do lar”, mas as que se viam obrigadas a trabalhar por serem solteiras ou viúvas deviam se contentar agradecidas com salários 50% menores do que os dos homens. Em 1926, a reforma escolástica previa que as mulheres seriam excluídas das cátedras de Letras e Filosofia nos colegiais, não podendo assumir cargos de direção em institutos de ensino e podendo ser educadas apenas em instituições privadas com taxas escolásticas 50% maiores em relação aos meninos, de modo a desencorajar as famílias a insistir na formação de suas filhas. Além disso, a partir de 1930 foi incluído no código penal italiano o direito masculino ao “delito de honra” que permitia que o marido assassino tivesse um abatimento de 50% da pena prevista para esse tipo de crime. Serri conclui que, com Mussolini, foi instituído o machismo de Estado.
Os frequentes impedimentos ao desenvolvimento e à autonomia das mulheres e de quaisquer pessoas vulnerabilizadas, com os quais nos deparamos na rotina, em diversas partes do mundo até nossos dias, denunciam como os abusos são encarados com naturalidade por parte de um patriarcado adoecido, fálico e sintomático, que mantém o controle dos corpos e atrapalha o necessário amadurecimento psicossocial. Tais condições de privilégios para alguns e restrições para ‘outres’, ao impor proibições dos prazeres e do conhecimento como atributos de valores morais exigidos para a inclusão social, promovem deslocamentos que constituem os tabus a serem cumpridos.
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
O cerceamento ao feminino na nossa sociedade prossegue e contribui para legitimar desigualdades de gênero, impedimentos e abusos; a violência doméstica contra mulheres é um de seus piores sintomas e é a forma de agressão mais prevalente no mundo (Ornell et al., 2020). Até a metade de 2023, a estimativa de mulheres que declararam ter sofrido violência doméstica e familiar no Brasil foi de 25.458.500 (Instituto DataSenado, 2023). Por sua vez, o Relatório Atlas da Violência de 2023 (IPEA, 2023) aponta que a taxa de homicídios em geral teve queda, mas a de homicídios femininos cresceu 0,3%, de 2020 para 2021, com mais de 10 mortes violentas a cada dia, o que coloca as mulheres como um dos maiores grupos de vítimas de violência cotidiana no país; o Instituto Sou da Paz (2024) revela que, em 2022, 68,3% das mulheres assassinadas por agressão armada eram negras.
Mountian (2017) a respeito da violência contra mulheres e LGBTTs, destaca que:
…é fundamental localizar socialmente e culturalmente a violência, ou seja, perceber que não é o álcool que faz alguém violentar mulheres e LGBTTs, mas sim um discurso machista que reitera essa violência. Não à toa, as taxas de violência contra mulheres e LGBTTs no Brasil são extremamente altas, tanto em casos de violências sexuais, quanto de homicídios. Considerar o contexto social, assim, é fundamental para políticas de redução de danos, avaliando os riscos de que as mulheres cisgêneras já sofrem em ambientes sexistas, assim como os riscos que pessoas LGBTTs sofrem em ambientes homofóbicos e transfóbicos.
Mountian, 2017, p 145-146
Se o uso de psicoativos muitas vezes é utilizado para justificar atos violentos praticados por homens, quando a usuária é mulher que faz uso de substâncias psicoativas, em geral, ocorre o oposto; ela é frequentemente criticada e culpabilizada por perder o controle ou por se colocar em exposição, em risco e, se tiver filhos é cobrada por não cumprir as designações da maternidade. Esse estigma também pode ser considerado como mais um aspecto da violência de gênero, pois dificulta às mulheres buscarem ajuda quando o uso de psicoativos se torna problemático, por temer esse preconceito.
São necessárias campanhas públicas específicas que trabalhem na perspectiva da redução de danos no cuidado com mulheres e LGBTs que estejam sob efeito de substâncias psicoativas, para evitar que haja abuso dessas pessoas em caso de estarem em condições vulneráveis; e assim restringir essa violência de gênero.
CULTURA DE VIOLÊNCIA E TRATAMENTO. HÁ SAÍDAS?
Por muito tempo e ainda hoje, as mulheres em várias circunstâncias sofrem agressões psicossociais ao serem penalizadas quando precisam de cuidado, especialmente nas áreas relacionadas à sexualidade, à saúde mental e ao uso de drogas: internadas como histéricas, presas por fazerem abortos, submetidas à violência obstétrica, condenadas a perderem seus filhos, encarceradas (com frequência muito maior se forem negras, pardas ou em condição de vulnerabilidade), encaminhadas para as ditas comunidades terapêuticas, isoladas por suas famílias ou por suas redes sociais.
Mulheres que foram internadas nas chamadas comunidades terapêuticas se queixam de situações abusivas. Recebi uma paciente que foi internada a pedido da família, ela relatou ter iniciado um processo de crises de ansiedade durante a internação, após ter presenciado humilhações feitas com mulheres que não obedecessem às regras ou imposições naquele estabelecimento. Contou que os coordenadores da referida comunidade eram todos homens e que presenciou uma mulher ser amarrada por eles no centro da sala, quando se recusou a participar das atividades propostas. A paciente referiu que na ocasião, com muito esforço conseguiu esconder sua ansiedade, precisando se afastar para buscar respirar e retomar o fôlego, pois temia algum tipo de represália por estar em crise; disse que eram constantes as ameaças de prolongamento da internação, se não fossem cumpridas as determinações, que a consulta mensal com o psiquiatra era sempre acompanhada por um dos coordenadores e que estes ministravam as medicações e decidiam quantidades de comprimidos, conforme avaliavam o comportamento das pessoas internadas.
Ao conseguir que a família fosse buscá-la, iniciou tratamento com outra psiquiatra, que a encaminhou para psicoterapia; sua principal demanda foi tratar do stress pós-traumático, pois apresentava dificuldade para dormir, tinha pesadelos e se sentia sem condições laborativas. Embora apresentasse consciência crítica sobre a postura arbitrária da família e a inadequação do local, estava acometida por intenso sentimento de culpa e suas referências não faziam mais sentido.
Para Freud, quando nos acontece alguma desgraça, o sentimento de culpa desponta, pois inconscientemente o infortúnio é vivenciado como se fosse um castigo do destino; mecanismos primitivos são acionados e é como se houvesse um risco da perda do amor de nossas figuras parentais mais primitivas e, a depender da intensidade, tais acontecimentos podem ter efeitos disruptivos no psiquismo. Nesse caso, a internação teve efeito traumático e a paciente evidencia ter saído em condições psíquicas muito piores do que quando entrou; ao invés de encontrar nesse serviço, cuidados para elaborar seus conflitos, perceber seus sintomas, se autoconhecer, o que seria necessário nesse caso, deparou-se com situações que agravaram seu sofrimento e favoreceram o aumento de vulnerabilidade psíquica. Importante salientar que esse caso, não é a exceção, é a regra!
A internação nas ditas comunidades terapêuticas mantém o confinamento de pessoas, sem ou com quase nada de equipe técnica multidisciplinar ou de ciência, trata questões complexas como se fossem simples e no mais das vezes, o usuário sai com mais sintomas para tratar. Em geral, oferecem a doutrinação religiosa ou as informações sobre os 12 passos utilizados para a abstinência no grupo de AA (alcoólicos anônimos) como caminho de abstinência, que entendem ser a cura para todos. A utilização dessas internações forçadas endossadas pelo poder público, compõe no mínimo uma proposta de insensatez pré-científica, inadequada e antiética, com investimento de muito dinheiro público.
Nos referimos às mulheres, pois é o nosso tema, porém essa política manicomial, de descuido, que fere a Lei da Reforma Psiquiátrica, embora esteja sendo revista, ainda faz parte das políticas oficiais de governos de diferentes tendências políticas e é considerada como solução pela população. O proibicionismo tornou natural o punitivismo como forma de abordagem também na área da saúde:
O dispositivo proibicionista, acionado pela guerra às drogas, pode ser remetido às políticas públicas de caráter repressivo, que incluem a criminalização da venda, do consumo, a penalização de comportamentos de risco, bem como a violência institucional, como formas de produção de controle social sobre determinados grupos sociais mais vulneráveis(…).
Serra, Souza, Cirillo, 2020, pg 97
A violência institucional promovida pelas chamadas comunidades terapêuticas (que não são nem comunidades, nem terapêuticas) favorecem o aumento de vulnerabilidade dos usuários desses serviços e podem incrementar o agravamento das condições psíquicas, quando as pessoas requerem atenção especializada, por já estarem em situação de constrangimento. Os atendimentos oferecidos são dogmáticos, pré-estabelecidos, superficiais e voltados para abstinência a qualquer custo. Quando são mulheres que apresentam problemas com o uso de psicoativos, essas internações, especialmente quando feitas contra a vontade, mobilizam um duplo estigma, por serem mulheres transgressoras do lugar de submissão atribuído ao feminino e por serem usuárias de psicoativos.
Destinadas a cuidar dos demais, a administrar a vida doméstica e a se conter, desde o século XIX (na era moderna), é como se estivessem em desvio de função quando fica evidenciado que seus limites transbordaram e que precisam de ajuda para o seu autocuidado. Hochgraf & Brasiliano (2023) analisam que as pacientes ficam envergonhadas pelos transtornos relacionados ao uso de substâncias, chegam a esconder dos familiares e procurar ajuda sem que estes saibam. Essas autoras destacam a importância de serviços especializados para mulheres, que possam atender necessidades específicas; referem que ao longo dos anos introduziram profissionais da área de nutrição e do direito para compor a equipe multidisciplinar do PROMUD (Programa da Mulher Dependente Química)1 e que esse fator contribuiu com a vinculação das pacientes ao tratamento, por serem escutadas em suas demandas e se permitirem cuidadas. Abordam que por muitos anos os serviços de saúde para usuários de álcool e outras drogas foram voltados principalmente para o público masculino, mas que a aderência e eficácia com as usuárias aumentam significativamente, se consideradas as singularidades femininas.
Fator fundamental para o atendimento de usuários que apresentem problemas com o uso de substâncias psicoativas é a escuta atenta que contribua com o processo de elaboração, recurso usado em atendimentos psicanalíticos, fenomenológicos e, também, naqueles realizados pelos profissionais de redução de danos. Essas abordagens estão norteadas pela singularidade de cada indivíduo. No Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e outras Drogas – CAPS AD – serviço especializado, que funciona com portas abertas aos usuários-, está preconizado que dois técnicos do serviço sejam profissionais de referência e que constituam com o usuário um Projeto Terapêutico Singular, que considere a realidade do paciente e seu projeto pessoal de cuidado: a partir da vinculação estabelecida com esses profissionais é elaborado um projeto com o usuário, que inclui desde a participação em atividades da programação no interior da unidade, até o matriciamento com outros serviços, conforme suas necessidades e um plano que favoreça seus objetivos de vida. O trabalho de redução de danos pode ser grande aliado nessa fase, no intuito de identificar qual relação o usuário estabelece com os vários aspectos de sua vida e, também, com o uso de psicoativos, sobre as substâncias de escolha, frequência, rotinas e o papel que essa relação desempenha em sua subjetividade.
O espaço reservado especificamente para atendimentos de mulheres viabiliza que possam falar e ouvir mais espontaneamente, na medida em que nos grupos mistos podem temer críticas, censuras ou preconceitos advindos de homens usuários do serviço. Com a participação de homens nos grupos, as dinâmicas estabelecidas socialmente se reproduzem e é comum ocorrer reações defensivas como: inibições, constrangimentos e medo de comentários pejorativos feitos por homens, que muitas vezes fazem parte do mesmo território dessas mulheres. Além disso, como vimos, o uso de psicoativos por mulheres é visto com maior preconceito e para que possam falar de si mais livremente, precisam se sentir menos expostas e mais acolhidas em seu processo de elaboração.
O temor às críticas está relacionado com cobranças, ainda que não ditas, que possam advir ao serem explicitadas sua insatisfação e sua busca por prazer. A repressão ao desejo sexual feminino, se estende ao ataque a toda autonomia feminina – que está em transição -; e, principalmente ao desejo próprio. Para Calligaris, o grande objeto de ódio é o desejo sexual feminino, construído há dois mil anos (Homem & Calligaris, 2019 p. 19). Porém, para Maria Homem, a mulher a partir dos anos 1970:
começa a ter consciência desses dispositivos e vai dizer: “Quero meu corpo de volta. Se fui destituída do meu corpo, do meu desejo, do meu tesão, agora quero isso de volta”. Na verdade, esse é um processo de subjetivação. É um processo muito mais amplo de subjetivação de todos nós, homens e mulheres. De fato, homens, mulheres, homossexuais, trans, a-, multi-, enfim, pansexuais. Este é o momento em que estamos na conversa.
Homem & Calligaris, 2019 p. 23
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mountian (2017) explicita que à mulher cabe preparar os filhos com os valores da nação, embora tenha pouco poder público para transformar esses valores.
É necessário considerar a necessidade de maior empoderamento para as mulheres, de maior proteção e garantia de direitos individuais e sociais, bem como trabalhos de incentivo ao autocuidado e de saúde mental, pois disso depende o futuro das crianças e, portanto, da humanidade. Também é fundamental a ampliação do envolvimento masculino na vida doméstica e das mulheres na vida pública.
O confinamento das mulheres contribuiu para que sua interferência na pólis, fosse aquém do necessário. A sociedade é composta por todas as pessoas e o silenciamento público e a opressão sobre as mulheres têm comprometido as perspectivas de melhoria psicossocial para o futuro. Essa divisão crônica reiterou a relação de dominação e de controle, desqualificou a narrativa feminina e tornou a todos mais restritos, sem usar toda a potencialidade de soluções para uma sequência melhor, mais compartilhada, mais prazerosa, mais saudável e até mais ecológica.
Quando um bebê é retirado de uma mãe devido ao consumo de psicoativos, não é apenas a ela que isso afeta. Ao invés dos bebês serem retirados dessas mães, o estado deveria colaborar para que elas pudessem permanecer com seus filhos em melhores condições.
A Organização Mundial de Saúde divulgou que a grande pandemia mundial contemporânea é de saúde mental. Precisamos de menos guerras e de menos proibicionismos, de menos ingerência no modo de viver alheio, de menos genocídios, mais tolerância e de redução de danos. Lins retoma Reich e aborda que a repressão à sexualidade leva à destruição da vida pela educação coercitiva e pela guerra. (2017). E cita a pesquisa:
O neuropsicólogo James W. Prescott, do Instituto Nacional de Saúde Infantil e Desenvolvimento Humano, de Maryland, EUA, publicou em 1975 o resultado estatístico da análise de 400 sociedades pré-industriais e comprovou algumas teses de Reich sobre o desenvolvimento humano e social. Ele concluiu que aquelas culturas que dão muito afeto físico a seus filhos e que não reprimem a atividade sexual de seus adolescentes são culturas pouco inclinadas à violência, à escravidão, à religião organizada – e vice-versa.
Lins, 2020, pg 242-243
Faz-se necessário uma mudança de paradigmas que começa dentro de cada lar, de cada pessoa, seja ela como for, de cada grupo social. Isso só será possível se as crianças pararem de achar natural a dominação, a submissão e a desigualdade dentro de casa e no entorno, como habitual do seu meio ambiente; aliás há que se ressaltar que o respeito e o cuidado com as mulheres podem influenciar diretamente crianças e adolescentes que também precisam se sentir incluídas e respeitadas em suas peculiaridades. O respeito e a consideração por diferentes modos de viver são constitutivos de uma sociedade mais tolerante e mais democrática, que possibilite o desenvolvimento integral de seus membros, essa é a base para a saúde mental psicossocial humanizada.
[1] Do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq – HC – FMUSP.
REFERÊNCIAS:
Abdala, V. & do Brasil, C.I. (março/2024). Homens ocupam seis em cada dez cargos gerenciais, aponta IBGE. Agência Brasil. Retirado de: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-03/homens-ocupam-seis-em-cada-dez-cargos-gerenciais-aponta-ibge
Conselho Federal de Medicina (2024). Resolução 2.378/2024: CFM vai ao STF para esclarecer pontos da norma sobre assistolia fetal. Retirado de: https://portal.cfm.org.br/noticias/resolucao-2-378-2024-cfm-vai-ao-stf-para-esclarecer-pontos-da-resolucao-sobre-assistolia-fetal
Hochgraf, P. B., Brasiliano, S. (2023). História da dependência de álcool e drogas nas mulheres no mundo e no Brasil (cap. 1) In: Hochgraf, P. B., Brasiliano, S. (organizadoras) Álcool e Drogas – Uma questão feminina. São Paulo, SP: Red Publicações, p. 3 – 23. ISBN: 978-65-86458-03-9
Homem, M., Calligaris, C. (2019). Coisa de menina? Uma conversa sobre gênero, sexualidade, maternidade e feminismo. [Livro eletrônico] – Campinas, SP: Papirus 7 Mares.
Instituto Conhecimento Liberta – ICL (2024). Presidente do CFM diz que há limites para autonomia da mulher. Retirado de: https://iclnoticias.com.br/cfm-ha-limites-para-autonomia-da mulher/?utm_source=WhatsApp&utm_medium=Grupos&utm_campaign=autonomia+da+mulher
Instituto DataSenado (2023) Mapa Nacional da Violência de Gênero. Retirado de: https://www9qs.senado.leg.br/extensions/violencia-genero-mashup/index.html#/pesquisanacional/pesquisa. Acesso em 25 abril 2024.
Instituto Sou da Paz (2024). O papel da arma de fogo na violência contra a mulher – 3a Edição – disponível em https://lp.soudapaz.org/mulheres
IPEA (2023). Relatório Atlas da Violência, 2023. Retirado de: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes/276/atlas-2023-violencia-contra-mulher
Kehl, M. R. (2016). Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade – 2ª ed. -São Paulo: Boitempo. (p. 58)
Lins, R. N. (2020). A cama na varanda: arejando nossas ideias a respeito de amor e sexo. – 14ª ed – Rio de Janeiro: Best Seller.
Mountian I. (2017). Políticas de Drogas e Intersecções de Gênero, Raça e Sexualidade. In: Drogas & Sociedade Contemporânea: perspectivas para além do proibicionismo. São Paulo: Instituto de Saúde, p.159-151.
Ornell F, et al. (2020). Violência doméstica e consumo de drogas durante a pandemia da COVID-19. Retirado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679- 494X2020000100002. Acesso em 19 agosto 2022
Ramos, S.et al. (2022). Elas vivem: dados da violência contra a mulher. Rio de Janeiro: CESeC
Rosa, C. T., & Weinmann, A. O. (2020). A Sexualidade Feminina em Escritos das Pioneiras da Psicanálise. Revista Subjetividades, 20(3), e9499. http://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i3.e9499 (p.4)
Serra, C. H. A., Souza, L. A. F., Cirillo, F. R. (2020). Guerra às drogas no Brasil contemporâneo: proibicionismo, punitivismo e militarização da segurança pública. Revista Teoria e Cultura. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFJF v. 15 n. 2 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
Serri, M. (2022) Mussolini ha fatto tanto per le donne! Le radici fasciste del maschilismo italiano, Milano: Longanesi
UNODC (2023). Relatório Mundial sobre Drogas. Retirado de: https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2023/06/relatrio-mundial-sobre-drogas-2023-do-unodc-alerta-para-a-convergncia-de-crises-e-contnua-expanso-dos-mercados-de-drogas-ilcitas.html em 20/04/2024.
Celi Cavallari é psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Clínica/PUC-SP. Conselheira da REDUC – Rede Brasileira de Redução de Danos e DH. Consultora Comissão de DH e Drogas da OAB-SP, membro RENFA/Rede Proteção contra o Genocídio e do Coletivo Intercambiantes BR / SP.
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