Gênero

Joice Lanne

Trabalhando em um ambulatório voltado ao tratamento do uso/abuso de álcool e outras drogas, torna-se possível investigar como o gênero interfere nessa relação, tratando-se de ambulatório específico para a população LGBTQIA+. Diante de expressões de gênero compreendidas e vividas de maneiras distintas, torna-se necessário se debruçar sobre como este tema é sentido, compreendido e vivido por essas pessoas, já que seus enlaces podem influenciar no seu modo de viver e expressar-se ao mundo e na relação com as substâncias psicoativas. 

De acordo com a realidade presente neste ambulatório a relação com o uso de substâncias se entrelaça com o prazer que a droga proporciona, busca do alívio do desprazer sejam eles emocionais ou físicos devido a abstinência desencadeada pela interrupção no uso de substâncias, baixa autoestima dentro de uma relação consigo mesmo que repetidas vezes aparece de forma negativa, com ideias de possuem pouca potência (sexual, laboral e afetivas) e possibilidades escassas frente a essas crenças, ou uso de substâncias psicoativas para fins de relações sociais (chemsex) que com frequência são vistos pelos pacientes como facilitador trazendo desinibição, dificuldades na resolução de problemas do cotidiano, e em alguns momentos o uso se une a identidade da própria pessoa, quando alguns não se reconhecem mais distantes do uso de drogas.  

O termo gênero foi introduzido pelas feministas americanas, que buscavam reforçar o caráter social das diferenças baseadas no sexo. O uso da palavra manifestava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de palavras como sexo ou diferença sexual (Assucena & Colonese, 2022). Movimento pelo qual estamos lutando, já que ainda hoje o termo está intimamente ligado à ideia de diferenças sexuais e como elas ainda são socialmente estabelecidas. 

Este conceito não deve ser confundido com sexo pois este refere-se às características biológicas que definem o humano como feminino ou masculino (World Health Organization, 2019). Demonstrando assim a relação entre os conceitos, porém com diferenciações importantes, já que a palavra sexo busca reforçar diferenciações físicas que possuímos desde o nascimento, e gênero está envolto de relações pessoais, significados dados a estas diferenças corporais. Frente a isso existe a tentativa de não delimitar questões sociais e pessoais através do sexo de nascimento e sim na interação dessa pessoa com o ambiente. 

Outro conceito de extrema importância é a identidade de gênero que podemos compreender como uma experiência interna e individual do gênero, que pode corresponder ao sexo atribuído ao nascimento ou não, que engloba o senso pessoal do corpo, e expressões de gênero como modo de falar, maneirismos e vestimenta (ICJ, 2007).  

De acordo com Scott (1989), o tema gênero se integra nas relações sociais com base nas diferenças entre os sexos e como uma forma de significar relações de poder. Desde seus primórdios o termo em questão foi criado e utilizado visando um embate e/ou um questionamento da ordem vigente, onde o determinismo biológico já se colocava de forma proposital, visando justificar relações de poder de um gênero sob outro. Essa tentativa de delimitar de forma tão explicita as diferenças entre os sexos tem a intenção de colocar uma existência como superior a outras, abrindo caminho para que uma faça imposições sobre a outra, um caminho que seguimos até o presente momento, avançando questionando essa ordem social e regredindo ao apenas assistir como ela tem se mostrado na sociedade. 

Essa tentativa de delimitar de forma tão explicita as diferenças entre os sexos tem a intenção de colocar uma existência como superior a outras, abrindo caminho para que uma faça imposições sobre a outra, um caminho que seguimos até o presente momento, avançando questionando essa ordem social e regredindo ao apenas assistir como ela tem se mostrado na sociedade. 

Reforçando essa ideia de construção social, normas e papéis a serem desempenhados a World Health Organization (2019), afirma que gênero se refere a uma construção de papéis sociais, de relações entre pessoas e construção social de normas, relacionando isso a expressões e identidades de homens, mulheres e de outros gêneros.  

Compactuar com o fortalecimento da definição de gênero entre pólos “masculino e feminino” é não perceber a conotação binária vigente, onde apenas as duas existências são possíveis e corretas. Abandonando o senso crítico de que outras identidades de gênero que não se encaixam nesse binarismo são tanto parte do gênero quanto as outras. Como pessoas não-binárias e travestis, que são formas de identidade de gênero que desafiam este binarismo feminino e masculino.  

Através deste termo gênero noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, porém também pode se tornar um mecanismo no qual esses termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados. Onde oferecer escuta, acolhimento e cuidado a essa população, torna-se uma forma de questionamento e de desconstrução da ordem vigente, que os coloca à margem da sociedade já que não fazem parte do binarismo colocado como correto. 

 Um discurso restrito sobre gênero que insiste no binarismo homem e mulher como a maneira exclusiva de compreensão deste termo, tem o objetivo de produzir uma operação reguladora de poder, que naturaliza a hegemonia e exclui a possibilidade de pensar sua disrupção (Butler, 2014). Essa regulação aparece em nossa sociedade através da resistência ferrenha frente ao uso de pronomes e linguagem neutra, resistência e dificuldade de chamar travestis pelo seu nome feminino mesmo no SUS, que garante esse direito, assim como o acesso e acolhimento a essa população, ou usar o nome “morto”, o nome de registro de pessoas transexuais. Toda essa resistência a respeitar as identidades de gênero, demonstram o quanto esse poder regulador pode ser violento e a partir dele o objetivo é reforçar a ideia de que outras existências não serão aceitas e respeitadas. Desfazer essas amarras é fundamental para garantir acesso a direitos básicos de saúde, cidadania, moradia, respeito e combate a agressividade e violência. 

Para Scott (2019), essa operação reguladora se refere a diversas esferas relacionadas: como a criação de símbolos culturalmente disponíveis, onde através deles conceitos normativos são criados a partir das interpretações destes símbolos, delimitando expressões e vivências de feminilidades e masculinidades como apropriados a determinados tempos históricos, sociais e de contextos. Onde a política organiza instituições e organizações sociais, e identidades subjetivas são construídas na relação com os símbolos, na vida social, nas normas e nas instituições. Estes símbolos culturalmente disponíveis podem ser compreendidos como regras ou determinações que socialmente vamos aceitando e incorporando, como por exemplo meninas receberem bonecas de presente, e meninos bolas. Esses conceitos são recebidos e interpretados e logo entendidos e seguidos como ordem, demarcando expressões e vivências de feminilidades e masculinidades como apropriados ou não.  

Dentro de uma reflexão sobre normas, regras, busca regulatória e imposição de papéis sociais, se faz necessário avaliar as consequências dessas diferenças de poder entre os gêneros. Bandeira (2014) relata que tal diferenciação no âmbito privado ou público é responsável pela produção de violência que incide sobre os corpos femininos (sendo eles uma construção segundo toda nossa reflexão neste presente texto, onde toda existência é construída, não somente por características físicas, mas através de relação consigo próprio, influências culturais, sociais, e de tempo vivido dentro da sociedade), onde essa violência irá se mostrar seja de forma física, sexual, moral, psicológica ou patrimonial. Todas essas manifestações são frutos de contextos sociais e de espaços relacionais que procuram controlar, discriminar e subjugar. Fazendo com que a liberdade e poder oferecida a um gênero influencie em como ele convive com o outro. 

Impor uma visão biológica pautada na determinação do órgão sexual ao nascimento faz parte de uma tentativa de manter uma hegemonia social. (…) Determinando assim como o outro deve se portar, vestir-se, onde frequentar e quais papéis sociais lhe são permitidos. O que reforça o estigma e papéis sociais vigentes, pelos quais se naturaliza no imaginário social uma mulher permanecer em casa voltada aos cuidados dos filhos e atividades domésticas, homens dentro do mercado de trabalho sustentando lares e travestis trabalhando nas ruas vendendo seus corpos em busca de sustento. 

Torna-se perigoso adotar uma genitalização da subjetividade,  impondo o sexo biológico, fator colocado médica e legalmente  ao  nascer, como aspecto determinante, acima  da  autoidentificação, nome  social,  expressões corporais, entre  outros,  que digam  o  contrário (Almeida et al., 2020). O termo subjetividade está relacionado a percepções individuais e ao mundo interno de cada indivíduo, onde impor questões internas e individuais a genitalização trazem conflitos internos a própria pessoa que se sente pressionada a cumprir o papel social a qual lhe é imposto e cobrado. 

Impor uma visão biológica pautada na determinação do órgão sexual ao nascimento faz parte de uma tentativa de manter uma hegemonia social. Segundo Foucault (1985), esse funcionamento manifesta um poder que inibe, produz e regula modos de vida e possibilidades de interação social. Determinando assim como o outro deve se portar, vestir-se, onde frequentar e quais papéis sociais lhe são permitidos. O que reforça o estigma e papéis sociais vigentes, pelos quais se naturaliza no imaginário social uma mulher permanecer em casa voltada aos cuidados dos filhos e atividades domésticas, homens dentro do mercado de trabalho sustentando lares e travestis trabalhando nas ruas vendendo seus corpos em busca de sustento. 

Outras formas de existir 

O conceito sexo é definido através de características biológicas, porém segundo a World Health Organization (2019), o conjunto dessas características biológicas não é mutuamente exclusivo, pois existem indivíduos que nascem com características sexuais biológicas ou físicas que não fazem parte das definições tradicionais de mulher ou homem (intersexo). Confrontando assim a hegemonia presente na binaridade do masculino e feminino, ferindo assim toda uma estrutura social, que delimita o que ela compreende que é natural e esperado de cada componente dela. 

Neste texto vamos detalhar algumas possibilidades de existências e/ou identidade de gênero, como mulheres cis que são mulheres que nasceram com órgão genital feminino e se entendem como tal, homens cis que nasceram com órgão genital masculino e se identificam como tal, mulheres trans nasceram com órgão genital masculino e não se entendem como tal, homens trans que nasceram com órgão genital feminino e não se identificam como tal, e travestis que iremos abordar com mais profundidade adiante. 

Dentre as existências divergentes a binaridade de gênero estão as travestis, a quem infelizmente a marginalização e exclusão muitas vezes acabam fazendo parte de suas histórias. De acordo com Benedetti (2005), a prostituição das travestis significa não apenas sua sobrevivência financeira, mas, também, traz um pertencimento social que lhes é negado em outros espaços. Frente a essa realidade no trabalho com essa população o foco está no seu fortalecimento como indivíduos de direitos, criação de vínculos, garantia à saúde física e mental, educação em saúde, autocuidado, redução de danos e/ou abstinência total no uso de substâncias psicoativas, respeitando assim sua existência e modo de viver em sociedade.  

A violência a essa população muitas vezes ocorre para nos recordar o quanto as travestis perturbam as normas da vida sexual generificada, bagunçando dessa forma como se interpreta e se pode ver o mundo (Mason, 2002, p.57). Trazendo assim a violência como resposta, uma tentativa de reprimir e exterminar esses corpos e realidades que burlam as regras na binaridade de gênero feminino e masculino, pois se estes indivíduos não fazem parte da lei vigente, tornam-se um perigo para as ideias e regras impostas ao comportamento social tido como normal. Onde dentro da violência e marginalização busca-se o extermínio de tal realidade, o que apenas exclui essas pessoas e aumentam o número de indivíduos vivendo na miséria, e a margem da sociedade, acaba por contribuir com o uso de substâncias psicoativas, desemprego e violência. 

Nossa sociedade trata a questão de forma violenta. Segundo Bento (2014), as travestis estão dentro do campo feminino, frente a tais fatos a violência garante a reprodução das normas de gênero, trazendo a ideia de que corpos que se desviam disso não seriam dignas de luto. Onde corpos que desafiam tal lógica podem ser exterminados, sem culpa e muitas vezes sem punição.  

Tais existências podem trazer a ideia de ambiguidade, na qual homens fazem sexo com indivíduos que se identificam com nome social feminino, vestem-se com roupas femininas, porém também são detentores de pênis. (…) Que em alguns momentos instigam o campo do desejo, porém em outros é coberto de ódio, quando aquele que antes desejava uma relação sexual, por vezes passa a desejar destruir aquele indivíduo que vai contra as leis da normalidade vigentes, quando os caminhos trilhados vão do tesão ao medo de ser descoberto como desejoso de algo colocado como diferente e errado.

Tais existências podem trazer a ideia de ambiguidade, na qual homens fazem sexo com indivíduos que se identificam com nome social feminino, vestem-se com roupas femininas, porém também são detentores de pênis. E que muitas vezes também penetram e não são seres apenas penetrados, função ligada ao feminino. Que em alguns momentos instigam o campo do desejo, porém em outros é coberto de ódio, quando aquele que antes desejava uma relação sexual, por vezes passa a desejar destruir aquele indivíduo que vai contra as leis da normalidade vigentes, quando os caminhos trilhados vão do tesão ao medo de ser descoberto como desejoso de algo colocado como diferente e errado. Essa relação entre desejo, medo de ser descoberto e de vergonha, muitas vezes acabam em transfeminicídio, que é o extermínio de pessoas trans, apenas por serem quem são, e por todas as representações que essa existência é carregada.  

De acordo com o  Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras, em 2022, o total de assassinatos de pessoas trans no mundo foi de 4.639, contabilizados desde o ano de 2008 a 2022, no projeto internacional Trans Murder Monitoring (TMM). (Conselho Nacional de Justiça, 2023). 

O Brasil é o primeiro colocado neste panorama da violência, responsável por 37,5% (1.741) de todas as mortes. Entre os anos de 2017 a 2022, período em que a Articulação Política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), passou a fazer essa pesquisa, houve o total de 912 assassinatos contra pessoas trans ou não binárias no Brasil.(CNJ, 2023). Pelo décimo quarto ano seguido, somos o país que mais mata pessoas trans no mundo.(Agência Brasil, 2023). 

Em 2022, foram 131 casos de morte, 140 em 2021, 175 casos em 2020, 124 casos em 2019, 163 em 2018 e 179 casos em 2017 (o ano com o maior número de assassinatos de pessoas trans na história). (Conselho Nacional de Justiça, 2023). 

As violências de gênero, demonstram como relações de poder são exercidas. Essa violência é uma expressão da função patriarcal, na qual os homens possuem o poder de determinar as categorias sociais, com autorização e/ou tolerância da sociedade para punir os desviantes. Demonstrando assim que qualquer existência que desobedece às regras de como deve se portar, vestir, e de se relacionar afetivamente pode ser punido. Com a intenção de se passar uma mensagem implícita a sociedade, onde essas expressões de agressividade são colocadas como comuns para que, quando elas virem à tona, serem tratadas com naturalidade, já que as vítimas não seguiam as regras e se portavam de forma “errada”, como se tivessem provocado ou procurado tais consequências. Visando assim a manutenção da hegemonia da expressão de gênero. 

Outra questão que exacerba a violência é a heterossexualidade compulsória.  Rubin (2017), relata que este contexto está contido no saber ocidental falocêntrico, que coloca o homem como superior, centrado na superioridade masculina em detrimento dos demais, baseando-se em diferenças sexuais. A heterossexualidade compulsória deve ser entendida como uma heterossexualidade imposta, onde apenas se interessar pelo sexo oposto é entendido como possível e correto, como homens deveriam se interessar afetivamente apenas por mulheres, e não por figuras colocadas como ambíguas, que se vestem como mulheres e também possuem falo. 

Conclusão

Frente a essa realidade se faz necessário questionar a ordem vigente, onde é possível notar que existem outras formas de viver, compreender a si próprio e de se expressar no mundo. A imposição frente à como devemos entender nossas existências tem apenas intensificado a violência de gênero, sejam contra mulheres cis, com mulheres trans e travestis. Seja através da exclusão social, dificultando o acesso ao mercado de trabalho, com salários menores mesmo exercendo a mesma função, exclusão, marginalização, impondo locais onde essas pessoas podem transitar e sobreviver, e as violências sejam elas, morais, financeiras, sexuais, psicológicas e físicas. 

Refletir e questionar-se sobre o que é gênero nos trazem reflexões profundas do que este termo pode representar, neste texto foi possível trazê-lo como integrante de uma estrutura social, que influencia como nos mostramos ao mundo e como somos influenciados por este. Pois se adotamos a ideia de que o termo é uma expressão social da questão, ele estará intermediando como vamos nos portar e o como a sociedade espera que isso ocorra. Este termo além de integrante tem um papel fundamental na estruturação de sociedade que vivemos, já que determina quem possui poder, meios de produção e quem controla o acesso a essas possibilidades. 

Além disso abre portas para questões sociais profundas que perpassam formas ditas como diferentes de existir como interexo, transexuais e travestis. Onde vamos seguir os caminhos de Frugoli & Pereira (2014), que vão direcionar o termo gênero num sentido dinâmico, sendo assim construído em relações socioculturais, reforçando a ideia do quanto este processo não é estático, mesmo considerando as conclusões sobre as diferenças sexuais e a heteronormatividade ainda sejam demarcadas como lugar comum. Se faz necessário questionar como as relações funcionam, como se transformam e são construídas, para que seja possível a adoção de novos paradigmas, mais distantes da desigualdade e opressão. 

A marginalização e exclusão reforçam o preconceito, a violência, criminalidade, uso de substâncias psicoativas, e a pobreza, o que afeta a todos nós de forma direta ou indireta, devemos nos manter atentos para que essa realidade não se torne um pretexto para a ideia de que o extermínio desses indivíduos  seja colocado no imaginário social como alternativa, nos manter atentos para colocar fim na existência dessa realidade criada pela própria violência, agressividade e segregação. 

Frente a esse cenário, trabalhar com demandas de gênero é olhar de forma individual as necessidades de cada população. Ao se trabalhar com a população LGBTQIA+, dentro da perspectiva do uso de substâncias psicoativas, podemos observar formas distintas de se relacionar, seja entre parceiros, com a própria substância em si e com a sociedade.  

O que tenho vivenciado no ambulatório com homens cis gays, são o uso de susbtâncias para a prática que Chemsex (uso de substâncias psicoativas durante e para fins sexuais), ou com correlação ao desejo de desinibição “se sentir à vontade”, com menos receio e vergonha, sejam em situações sociais como festas e baladas ou ligadas ao sexo (também a virilidade e horas de disposição para participar de tais práticas). Com uma clara dificuldade de interação íntima consigo mesmos e com seus iguais. Demonstrando que estes homens seguem buscando o papel social do homem viril, que é capaz de se manter fazendo sexo com vários parceiros ou por várias horas seguidas, demonstrando assim o desejo de cumprir determinados papéis sociais ligados ao masculino. 

Muitas vezes o uso de substâncias psicoativas entra para que essa regra possa ser quebrada e o prazer possa ser vivido de forma ampla, sem entrar em contato com o estigma, “libertando-se” assim de imposições de como se comportar durante relações sexuais. 

Uma outra questão que ocorre neste ambulatório são a reprodução de papéis sociais heteronormativos, nos quais o poder e a virilidade está em quem penetra e não em quem é penetrado, sendo este colocado como inferior. Muitas vezes o uso de substâncias psicoativas entra para que essa regra possa ser quebrada e o prazer possa ser vivido de forma ampla, sem entrar em contato com o estigma, “libertando-se” assim de imposições de como se comportar durante relações sexuais. 

Em relações sexuais relatadas neste ambulatório entre os homens cis imperam o silêncio, onde encontros são marcados via aplicativo de relacionamento, onde o espaço para o diálogo é pequeno ou inexistente, neste aplicativo encontros são marcados para a prática de chemsex, na qual dentro dessa vivência impera o distanciamento afetivo, onde o foco se torna o prazer potencializado pela substância psicoativa, e/ou mais horas seguidas de interação sexual entre duas pessoas, ou interações sexuais grupais. 

Como se a masculinidade se distanciasse da verbalização, como se o segredo fosse ligado ao masculino. (Simmel, 1999). Onde o fazer (agir) é colocado como indispensável, reproduzindo assim relações de poder entre quem penetra e quem é penetrado, onde o segundo é colocado como objeto de menor importância cobrindo assim uma figura masculina de estigmas. Reproduzindo assim estereótipos machistas que minimizam a importância da comunicação e interação afetivas, corroborando com que foi dito anteriormente com a dificuldade de relacionamento destes homens, já que suas habilidades sociais ligadas a comunicação não são trabalhadas. 

Dentro da realidade de pessoas trans e travestis, existe o uso de substâncias psicoativas em um contexto relacionado ao trabalho (prostituição), ou o uso trazido por essas pessoas como “recreativo” mesmo se mostrando como abusivo em alguns momentos. Um grande desafio a essa população é lidar com o preconceito, recusa de pessoas da família ou de fora dela frente ao uso de seu nome ou pronomes adotados. Muitas se afastam de suas famílias ou são colocadas para fora de casa, aumentando assim a sua vulnerabilidade, seja através da exposição ao uso de drogas, doenças sejam elas sexualmente transmissíveis ou não, fome, pobreza, violência e morte. 

Enfrentar as barreiras de acesso ao cuidado e tratamento da população é de responsabilidade de todos os indivíduos que trabalham na área da saúde, uma abordagem acolhedora, empática, sem inferir, ouvindo o que realmente o paciente tem a dizer, é de suma importância para uma criação de vínculo, sem o qual o cuidado em saúde não é possível. Algo que faz diferença dentro do tratamento é compreender qual é o objetivo e/ou desejo, ou até esperança, do indivíduo com relação aquele serviço em questão. Pensando de forma macro, se faz necessário a conscientização e informação das pessoas sobre os serviços de saúde existentes e suas especificidades, buscando romper barreiras. Assim como o fortalecimento da rede de cuidado e um trabalho em parceria, principalmente entre as áreas da saúde e assistência social.  

Trabalhando na linha de frente o que tenho encontrado são a falta de conhecimento dos profissionais ligados à orientação sexual e identidade de gênero, e as especificidades que essas realidades trazem aos atendimentos. Assim como dificuldades de alguns profissionais em usar os pronomes corretos, e a garantia de direito do nome social, seja ele ao falar ou no próprio sistema automatizado da instituição. Onde frente ao futuro se faz necessário reforçar o compromisso deste ambulatório na garantia de direitos dessa população, através da informação (cursos, rodas de conversa e materiais escritos) e apoio aos profissionais relacionados ao cuidado. 

Frente a estes fatos cabe a nós trabalharmos visando a diminuição da desigualdade social, fortalecimento de vínculos, ampliação de repertório, apoio na garantia de acesso a direitos como moradia, educação, saúde, educação em saúde, reflexão crítica frente a regras socialmente impostas, para que todos tenham acesso a uma vida digna, com acesso a todos os pontos que nos levam ao exercício da cidadania.  

Um fato de extrema importância que faz com que este ambulatório aconteça é a identificação entre os pares, que Freud definiu como a expressão mais antiga de uma ligação afetiva com outra pessoa (Kaufmann, 1993). Onde o grupo olha para si e consegue pertencer, onde dentro dos grupos de homens cis assuntos como autoestima, relação com o trabalho, dificuldade de se relacionar afetivamente, vão sendo colocados, onde apenas dentro dessas ligações afetivas essas demandas podem ser trabalhadas e superadas. E um pode dentro da experiência do outro pertencer a um lugar seguro, diferente do que muitas vezes é encontrado na sociedade como um todo. Trabalhando com a população trans o maior tema de impacto é a própria identidade de gênero, e como este fato impacta suas vidas seja através da exclusão social, familiar, e dificuldade de se estabilizar-se profissionalmente, onde o uso de substâncias psicoativas aparece de forma secundária dentro do tratamento. 

O fato do termo gênero ser colocado como dinâmico, influenciando normais sociais também demonstra a possibilidade de ser questionado, revisado e ressignificado. Visando a desconstrução atual do conceito e suas consequências, demonstrando esperança e poder transformador de realidades. Pois quando questionamos a ordem vigente e compreendemos a sua razão de existir, podemos seguir trabalhando em sua desmistificação, fortalecendo indivíduos antes excluídos, e subestimados.  Trabalhando assim com a redução do estigma social, desmistificando crenças, fortalecendo potências, para que assim seja possível viver a própria realidade com liberdade, distante de amarras e alcançando o que no ambulatório voltado ao tratamento de uso/abuso de substâncias psicoativas para pessoas LGBTQIA+, colocamos como objetivo principal do tratamento que é a qualidade de vida. 


Referências 

Agência Brasil (2023, janeiro 27). Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. 

https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2023-01/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-transexuais-no-mundo#:~:text=Em%20relatório%20divulgado%20pela%20Antra,assassinados%20no%20país%20em%202022.

Almeida N. C. T., Miskolci, R., Dias S. M. R., & Gomes P. P. P. (2020). O banheiro público como dispositivo de gênero. Bagoas – Estudos Gays: Gêneros E Sexualidades, 13(20). Recuperado de https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/18173

Assucena, B., & Colonese, C. (2022). Discutindo gênero e saúde na formação de residentes de um hospital universitário. Saúde Em Debate, 46(spe6), 239–250. https://doi.org/10.1590/0103-11042022E621

Bandeira, Lourdes M. (2014). “Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação”. Sociedade e Estado, v. 29, n. 2, p. 449-469, maio/ago. 

Bento, B. (2014). Brasil: o país do transfeminicídio. Rio de Janeiro: Centro Latino-Americano de Sexualidade e Direitos Humanos. 

Benedetti, Marcos Renato. (2005) Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond. 

Butler, J. (2014). Regulações de gênero. Cadernos Pagu, (42), 249–274. https://doi.org/10.1590/0104-8333201400420249. 

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https://www.cnj.jus.br/observatorio-dos-direitos-humanos-violencia-contra-pessoas-trans-exige-mobilizacao-do-poder-publico/#:~:text=Entre%20os%20anos%20de%202017,ou%20não%20binárias%20no%20Brasil.

Foucault,  Michel. (1985). História  da  Sexualidade  I: A  vontade  de  saber. Rio de Janeiro: Graal. 

Frugoli, R., & Pereira, P. P. G. (2014). Tecnologias e performances de gênero: um estudo na Delegacia de Especializada de Atendimento à Mulher. Revista Brasileira De Gestão E Desenvolvimento Regional, 10(3). https://doi.org/10.54399/rbgdr.v10i3.1478

International Commission of Jurists (2007). Yogyakarta Principles – Principles on the application of international human rights law in relation to sexual orientation and gender identity. https://www.refworld.org/legal/resolution/icjurists/2007/en/58135

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Rubin, Gayle (2017) “O Tráfico de Mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do sexo”, in Políticas do sexo. Coleção Argonautas. São Paulo: Ubu Editora, pp. 9-61. 

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Joice Lanne é psicóloga e mestranda em Saúde coletiva na UNIFESP, Psicóloga e coordenadora do ambulatório NUCASP (Núcleo de Cuidados a comunidade LGBQIA+ em relação ao Abuso de Substâncias Psicoativas) no Centro de Álcool e Drogas do Instituto Perdizes/HC-USP.

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