Pode um corpo trans receber amor e acolhimento? Saúde mental e a impossibilidade de construir afetividade. 

Fonte: FreePik
Julia Bueno
Introdução

No capítulo seguinte, adentramos um debate sobre o amor e saúde mental, desafiando a concepção tradicional e propondo uma reflexão mais ampla sobre seus fundamentos. bell hooks1 nos guia nessa jornada, destacando a importância de uma escolha consciente em nutrir a si mesmo e ao outro, em um contexto de cuidado mútuo que transcende as fronteiras do desejo romântico. 

Ao explorarmos as dinâmicas familiares e as influências culturais, confrontamos a ideia de que o amor está intrinsecamente ligado à violência e à submissão. hooks nos convida a questionar os papéis de gênero atribuídos na expressão do amor, desafiando a narrativa de que a mulher deve servir e o homem deve reprimir seus sentimentos. 

Além disso, abordamos a influência do patriarcado, do racismo e do capitalismo na construção de experiências amorosas diferenciadas, politizando nossa compreensão sobre o tema. Demétrio e Bensusan (2019) ampliam essa discussão ao evidenciar o estigma e a vulnerabilidade social enfrentados pelas identidades trans, fruto do distanciamento do modelo binário e do silenciamento epistêmico. 

Neste contexto, somos desafiados a repensar as dimensões do amor, reconhecendo-o não apenas como um sentimento romântico, mas como um horizonte ético e político que influencia diretamente a saúde mental e as relações interpessoais. Ao refletirmos sobre essas questões, buscamos trilhar um caminho rumo a uma vivência mais saudável e inclusiva da afetividade e do amor. 

Existe saúde mental para pessoas trans? 

Quando reflito a minha experiência profissional com a comunidade trans e travesti tanto como psicóloga ou redutora de danos, sendo esse corpo que é atravessado também por ser uma travesti, reflito sobre quais são os mecanismos de adoecimento da população trans, que operam de forma invisível e silenciosa, produzindo uma sensação de falta e perda, que jogam a pessoa por uma busca incessante para preencher aquele vazio que a falta de apoio da sociedade ou, mais especificamente, que a exclusão social nos produz. Com essa licença poética para refletir sobre isso, não quero diagnosticar ou patologizar a sensação de vazio que é presente na vida humana, muito menos naturalizar a ideia de o que nos falta no fundo é amor, pois acho que amor não é algo suficiente por si só de resolver essas questões. Entretanto existe uma exclusão social generalizada em relação às pessoas trans, que opera a partir do estigma sobre suas existências. 

Com essa licença poética para refletir sobre isso, não quero diagnosticar ou patologizar a sensação de vazio que é presente na vida humana, muito menos naturalizar a ideia de o que nos falta no fundo é amor, pois acho que amor não é algo suficiente por si só de resolver essas questões. Entretanto existe uma exclusão social generalizada em relação às pessoas trans, que opera a partir do estigma sobre suas existências. 

E falando em estigma não posso deixar de pensar a redução de danos como um horizonte que pode nos ajudar a refletir sobre qual o poder do estigma no adoecimento psicológico de pessoas trans, afinal um dos princípios da Redução de Danos é enfrentar o estigma. 

Segundo Vianna (2022), a Redução de Danos incorpora também os princípios da diversidade, tolerância e respeito à liberdade de escolha. Ela se nutre da encruzilhada que abriga travestis, drogas, prostitutas e pessoas em situação de rua, construindo seu conhecimento a partir dessas experiências. O princípio da autonomia e do cuidado entre pares, citado por Vianna (2022), permitiu a inclusão de travestis que se prostituem, população de rua e prostitutas no debate e execução das estratégias de saúde na Redução de Danos. Ao abordar a Redução de Danos, a autora citada diz que é fundamental considerar a perspectiva antropológica, especialmente ao refletir sobre a vida e história dos marginalizados pela sociedade.  

No contexto da população trans e travesti, essa reflexão torna-se ainda mais crucial, pois a transfobia agrava o ciclo de violência que enfrentam, inclusive no acesso a saúde. Historicamente estigmatizada, marginalizada e perseguida, a população transgênero enfrenta desafios significativos, como falaremos mais adiante através de Jaqueline Gomes de Jesus (apud Lisboa,2023). A transfobia permeia o cotidiano dessas pessoas, refletindo-se em preconceito, desrespeito aos direitos fundamentais e diversas formas de violência, incluindo ameaças físicas e homicídios. 

Quero com isso colocar uma reflexão sobre o que a falta de apoio emocional produz, e o que será que podemos pensar sobre saúde mental da população trans e travesti que possa estar ligada a uma experiência de ruptura afetiva com a sociedade. Ser trans é também produzir no mundo uma diferença, que se materializa na incapacidade dos outros de se identificarem e se reconhecerem na sua existência, assim produzindo uma falta de empatia e afeto com sujeitos trans e travestis. 

Demétrio e Bensusan (2019) fazem uma discussão sobre direitos epistêmicos, destacando que o epistêmico está ligado à possibilidade de um grupo construir memória e saberes sobre suas realidades. Dessa forma abordam a marginalização histórica e social do corpo trans e travesti, destacando a falta de reconhecimento de sua capacidade intelectual e do saber sobre si próprias, sendo desconsideradas em sua subjetividade e capacidade intelectual. Essas identidades de gênero são tradicionalmente cerceadas por estigmas, violências, exclusões e silenciamentos, associados a uma visão que as associam a patologias, como foram classificadas no CID (Código internacional de doenças) no qual por décadas a transexualidade nomeada como doença mental. Essa visão ainda hoje é predominante na sociedade, quase uma herança cultural. Isso resulta em uma lacuna na compreensão coletiva das experiências sociais, culturais, subjetivas e políticas das pessoas trans, devido à falta de recursos interpretativos e à hegemonia cisepistêmica, que coloca a transexualidade nesse lugar de desordem. A forma como a sociedade enxerga as pessoas trans à partir de uma visão estigmatizada que jamais considera sujeitas trans enquanto cidadãs, capazes de viver em sociedade e de falarem por si. 

Essa indiferença produz marginalizações que impactam diretamente na saúde mental e emocional das pessoas trans e travestis em nossa sociedade. Ao mesmo tempo que são compulsoriamente jogadas para médicos e psiquiatras, são rejeitadas e excluídas dos equipamentos de saúde mental. 

Essa indiferença produz marginalizações que impactam diretamente na saúde mental e emocional das pessoas trans e travestis em nossa sociedade. Ao mesmo tempo que são compulsoriamente jogadas para médicos e psiquiatras, são rejeitadas e excluídas dos equipamentos de saúde mental. 

Então gostaria de refletir aqui sobre a saúde mental da população trans e travestis para explorarmos aqui sobre quais são as demandas de saúde mental dessa população. 

Jaqueline Gomes de Jesus (Lisboa, 2023) coordena o estudo global SMILE, que investiga a saúde mental da população LGBTQIA+ em países de renda baixa e média, incluindo o Brasil. O estudo busca entender as especificidades da saúde mental dessa população e propor novas abordagens. 

Jaqueline Gomes de Jesus (Lisboa, 2023) em uma entrevista para agência Brasil questiona o tipo de visibilidade que está sendo discutido no contexto trans, destacando que a narrativa muitas vezes se limita a estatísticas de violência e precariedade laboral. 

A pesquisadora ressalta que a abordagem tradicional de focar apenas em dados negativos, como violência e exclusão, impacta negativamente a saúde mental da população trans, contribuindo para questões como depressão, ansiedade e suicídio. 

A psicóloga defende uma mudança de foco na visibilidade trans, da necessidade de se reconhecer a população trans em sua pluralidade e potência, criando condições para que ela seja vista de maneiras positivas e não apenas como vítimas. O que também trouxe na minha pesquisa de mestrado, investigando a atuação de pessoas trans e travestis dentro da Redução de danos em Recife,  em que inverto essa lógica: no lugar de olhar as pessoas trans como vulneráveis que carecem de cuidados, passar a olhar essas mesmas pessoas através do que elas também produzem, como sujeitas autônomas que também se organizam socialmente. 

Cláudia Rodriguez (apud Cavalcanti et al. 2018), afirma que a violência transfóbica produz nas subjetividades das travestis níveis de aceitação do lugar da subalternidade. Ela argumenta que as constantes violências provocadas pelo Estado, pela família e pela educação naturalizam, na consciência das travestis, a subalternidade e a violência como naturais e intrínsecas à (sua?) vivência em sociedade. Na mesma direção Jaqueline Gomes de Jesus (Lisboa, 2023) destaca a importância de ações afirmativas para garantir a participação da população trans em espaços de comunicação, justiça, saúde e produção de conhecimento não apenas como usuários, mas como profissionais e produtoras de saberes. A entrevista citada ainda nos diz que visibilidade trans é fundamental para o fortalecimento mental, proporcionando um senso de pertencimento e reconhecimento. A convergência entre visibilidade trans e promoção da saúde mental é enfatizada como crucial, especialmente após a pandemia, pois é vista como garantia de saúde e cidadania plena para a população trans. 

Uma das questões importantes a pensarmos é trazida por Chinazzo et al. (2021) que falam de um estudo que aplica o modelo de estresse de minoria à população trans, destacando uma associação significativa com resultados negativos na saúde mental da população LGBTI, como sintomas depressivos, ideação suicida e tentativas de suicídio. Esse estudo evidencia a vulnerabilidade social das pessoas trans no Brasil, devido ao preconceito e à discriminação. Nesse estudo se percebe que as pessoas trans que têm menos passabilidade de gênero foram associadas a uma piora no quadro de saúde mental, por conta das constantes violências que encontram. Sara York et al. (2020) diz que as marcações de passabilidade servem para enxadrezar os corpos trans, ou seja, eles são usados na nossa sociedade para atribuir o valor de humanidade ou dignidade de uma pessoa trans através dos marcadores binários de homem e mulher. Assim  uma pessoa trans é mais respeitada quanto mais ela consegue se parecer com o gênero que se identifica, e daí vem a ideia da passabilidade. 

Chinazzo et al. (2021), por fim, ainda demarcam que o apoio e acolhimento social às pessoas trans foram identificados como fatores de proteção. Ou seja, o apoio social é capaz de promover conforto e acolhimento,  o oposto que a vulnerabilidade,  ajudando a melhorar quadros de depressão e suicídio. Concluem que é fundamental a  promoção de ações para reduzir o preconceito, oferecer cuidado afirmativo à identidade trans e ampliar o suporte em saúde mental.  

Políticas públicas também devem atuar nessas questões de forma abrangente, não se limitando apenas aos procedimentos de afirmação de gênero, como apenas a oferta de cirurgias ou hormônios.

Políticas públicas também devem atuar nessas questões de forma abrangente, não se limitando apenas aos procedimentos de afirmação de gênero, como apenas a oferta de cirurgias ou hormônios. O ​​​​enfrentamento do estigma e produção de inserção social são fundamentais no processo e esse processo envolve apoio psicológico e social, questões como desenvolver habilidades emocionais para enfrentar a discriminação, assim como apoio jurídico são fundamentais. A saúde emocional de pessoas trans é constantementes habalada, como já citado por Jesus, suícidio e depressão são comuns na nossa comunidade e muitas vezes essas questões estão relacionadas a questões econômicas, dívidas e a falta de empregabilidade precisam ser enfrentadas, portanto projetos de geração de renda e empregabilidade na comunidade trans são estratégias de enfrentamento ao suícidio e geração de saúde mental. O cuidado com o processo de afirmação de gênero deve ser visto como parte integrante de uma abordagem abrangente de saúde para a população trans, mas não deve ser o único foco. 

O que o amor tem a ver com a saúde mental? 

Fiquei bem reflexiva sobre como começar a discutir sobre amor, afinal de contas não quero ser leviana ou romântica, a ponto de afirmar que “All We Need is love”, como uma hippie órfã dos anos 70, nem de longe é minha intenção. Mas eu quero refletir sobre o que acontece com a falta de laços afetivos e sociais, que nos fornecem apoio, suporte e identificação, na produção de saúde mental (ou na falta dessa produção), ou o que Chinazzo et al. (2021) nomeou como pontos de vulnerabilidade na saúde mental de pessoas trans, como a falta de apoio e de acolhimento social. 

Então nada mais justo do que trazer aqui para refletir a bell hooks (1999) com o livro Tudo Sobre Amor. Apesar do livro ser de 1999, as reflexões presentes nele até hoje se mostram atuais e relevantes. A autora definitivamente é uma potência inegável sobre a importância da sua produção nessa reflexão. Mas afinal o que é o amor então? 

hooks (1999) vai nos trazer que quando lemos ou ouvimos falar em amor, logo pensamos no amor romântico, temos o amor como um substantivo.Mas na contramão dessa ideia ela define o amor como uma ação, o amor é uma atitude, se manifesta em atos visíveis no mundo. 

A autora conta que procurou diversos significados de amor, mas que o que ela mais gostou estava presente em um livro de auto-ajuda escrito pelo psiquiatra M. Scott Peck. NA trilha menos percorrida. Nele o autor define o amor como “a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa” (fonte, pg) assim ela começa a falar do amor como um ato de vontade que implica uma escolha. hooks provoca ao dizer que não temos que amar, nós escolhemos amar. 

Ela ainda aprofunda nos ilustrando com a imagem de um bebê sendo cuidado. Antes mesmo da fala desse bebê, existe uma interação a partir do afeto. Através de olhares, barulhos e sorrisos o bebê expressa alegria em ver seu cuidador ou cuidadora, assim demonstrando afeição. Essa afeição que somos capazes de demonstrar é apenas um dos ingredientes do amor. A autora então aprofunda essa noção sobre o amor dizendo que para amar misturamos vários ingredientes além da afeição, como carinho, reconhecimento/ identificação, respeito, compromisso, confiança mútua, e, também, honestidade e comunicação aberta.  

Com isso hooks nos provoca para pensar no amor, não atrelado ao sentimento de afeição, mas sim como aquilo que o está no tecido invisível das relações que é capaz de ser mapeado, com ações concretas no mundo, reforçando que não estamos falando do amor romântico. O amor é uma ação. 

Ela nos mostra um ponto crítico na nossa experiência com o amor, que é que quando somos jovens aprendemos a amar de forma falha e que isso compromete o nosso caminho em direção ao amor. Aprendemos que amor é um sentimento, assim confundimos o amor com a sensação de quando sentimos atração por alguém. Quando fazemos isso dedicamos a nossa energia mental e emocional à pessoa, investindo nossos sentimentos e emoções. Ela chama esse processo de investimento emocional de “catexia”. A ​​catexia é diferente do amor, porém constantemente ainda a confundimos. Ela nos provoca com isso refletindo se quando nos sentimos ligados a outra pessoa, costumamos chamar isso de amor, porém essa sensação pode estar mais ligada a catexia. 

Essas reflexões dela são complexas, ainda mais para nós no Brasil, que vivemos em lares desiguais, cheios de violências intrínsecas e que temos que aprender a amar e cuidar dos nossos familiares, mesmo em situações de desigualdade, humilhações e outros efeitos colaterais da nossa sociedade tão demarcada pelo patriarcado, pela transfobia e da discriminação racial.

Ela faz essa distinção entre catexia e amor, afirma que o amor está ligado a um sentimento de desejo de cuidado espiritual e emocional com a outra pessoa, um desejo que está para além daquele momento. Assim ela nos convida a refletir sobre como muitas vezes acreditamos estar amando, mesmo quando negligenciamos ou magoamos a outra pessoa.  

Essas reflexões dela são complexas, ainda mais para nós no Brasil, que vivemos em lares desiguais, cheios de violências intrínsecas e que temos que aprender a amar e cuidar dos nossos familiares, mesmo em situações de desigualdade, humilhações e outros efeitos colaterais da nossa sociedade tão demarcada pelo patriarcado, pela transfobia e da discriminação racial. Entretanto o que essas reflexões nos trazem é que devemos compreender qual é de fato a nossa noção de amor, para podermos escolher estar em relações funcionais, que possam de fato nos nutrir e produzir um crescimento espiritual e emocional de fato, como hooks nos diz, afinal quando o que sentimos de fato é o amor, temos uma vontade de nutrir o nosso crescimento espiritual e o da outra pessoa. Não existe amor quando existe abuso ou negligência. 

A medida do amor é o amor próprio. 

A partir dessas reflexões, te convido para pensar nos caminhos para esse tal amor. Com isso não quero evocar a ideia de amor-próprio liberal, muito presente hoje em dia na vida dos nossos digitais influencers,  com palavras lindas e imagens perfeitamente produzidas, em apartamentos caríssimos e com rotinas diárias que cabem alimentação saudável, exercícios físicos e trabalhos rentáveis que respeitam sua subjetividade. Com essa estética tentam nos fazer acreditar que o que proporcionou aquela vida maravilhosa foi o amor-próprio. De fato, não é nem de longe o que quero refletir aqui e nem o que bell hooks (1999) vai nomear de amor-próprio. 

hooks traz importante reflexão sobre os caminhos para o que ela vai nomear de amor-próprio. Ela assim questiona qual a medida do amor que devemos receber em nossas vidas. O amor que damos a nós mesmas, ​​​​está relacionado a forma do amor que aceitamos receber dos outros. 

A autora nos traz uma reflexão racializada e feminista para compreendermos como somos tratadas em nossas famílias e como isso vai moldar nossas relações afetivas. Homens e mulheres são socializados em suas famílias de formas diferentes, baseado na cultura patriarcal que dita comportamentos diferentes para homens e mulheres, brancos e negros, e essas relações vão atingir nossa autoimagem e nossa autoestima. Dessa forma então hooks nos convida a refletir sobre ​​​​alguns aspectos como amor próprio, auto-percepção, insegurança pessoal e pensamentos negativos como forma de construir uma autoimagem e uma autoestima positiva. 

Nesse primeiro momento vamos pensar sobre o que ela chama de amor-próprio, o definindo como fundamental, pois ele implica em aceitar a nós mesmos como somos e valorizar quem somos de verdade. Não de forma romântica ou superficial, mas sim em um exercício de autopercepção, que envolve entender nossos desejos e como, diante do mundo, vivê-los. Isso não é fácil, principalmente quando nos deparamos com nossas próprias inseguranças e críticas internas. 

Quando falamos em amor-próprio, não nos referimos a um sentimento de se auto suprir em tudo, muito menos significa ficar sozinha ou pensar que somos perfeitas, maravilhosas, auto suficientes e que nada nos abala, livre de críticas e confrontos, muito pelo contrário. hooks nos diz que, na verdade, é sobre entendermos nossas falhas e ainda assim nos compreendermos, não de forma egocêntrica, mas sim reconhecendo as falhas como um processo que também deve ser olhado e respeitado. Isso nos permite crescer e nos tornarmos melhores. Em vez de nos sentir mal por não sermos perfeitos, criamos formas de compreender nossas imperfeições e também desvencilhar-las de forma criativa. 

Quando falamos em amor-próprio, não nos referimos a um sentimento de se auto suprir em tudo, muito menos significa ficar sozinha ou pensar que somos perfeitas, maravilhosas, auto suficientes e que nada nos abala, livre de críticas e confrontos, muito pelo contrário. hooks nos diz que, na verdade, é sobre entendermos nossas falhas e ainda assim nos compreendermos, não de forma egocêntrica, mas sim reconhecendo as falhas como um processo que também deve ser olhado e respeitado.

Outro ponto importante que hooks traz é que muitas vezes a origem das nossas inseguranças, está relacionada a experiências que tivemos no passado, como, por exemplo, a forma que fomos criticados pelos nossos familiares ou situações de constrangimento público. Quando nossos pensamentos ficam presos em lembranças tristes, em situações humilhantes ou que constantemente te colocava sobre estresses, essas lembranças vão diminuindo a auto estima e aumentando a insegurança. Se livrar dessas lembranças e pensamentos é um passo importante para o enfrentamento de nossas inseguranças e pensamento negativos. 

bell hooks então sugere que precisamos começar a aprender a dar mais valor para pensamentos positivos, como uma forma de passar a enfrentar os sentimentos de subjugação, que muitas vezes introjetamos como pensamentos negativos. Ela conta que foi relutante sobre usar frases motivacionais em sua vida, porém conforme tinha muitos pensamentos negativos decidiu se permitir. Ela dizia que os pensamentos negativos a sabotavam, e então, passou a deixar mensagens positivas para si mesma, passou a escrever palavras positivas e dizê-las em voz alta para si própria. Ela conta que isso a ajudou a mudar os pensamentos negativos. Dessa forma ela sugere um caminho possível para nos tornar mais auto confiantes e positivos em nossas mentes. É importante que pessoas que convivam com pessoas trans e travestis também aprendam a importância de elogiá-las e incentivá-las com frequência, pois é difícil se manter positiva em um mundo que a todo momento demonstra que você não é bem-vinda, essa postura envolve uma compreensão ética sobre as vulnerabilidades de pessoas trans. 

Isso Sofia Favero (2020) nomearia  de ética pajubá, que pode emergir como um horizonte, que reflete sobre a dimensão ética e crítica do cuidado. Nessa experiência, a empatia e a compreensão das vivências e realidades dos corpos trans e travestis vulnerabilizados são fundamentais. Travestis e pessoas na prostituição vivendo nas ruas enfrentam uma exclusão social marcante, onde falta apoio e os espaços na cidade não acolhem, levando-os a encontrar acolhimento entre seus iguais.  

Com isso faço uma provocação e um convite para que entendamos essa ética em nossas vidas, que possamos compreender as vulnerabilidades das pessoas trans e travestis que nos rodeiam, sermos positivos com as pessoas trans, elogiamos com sinceridade e demonstrar afetos positivos, são pontos muito importantes na ética dessas relações, não como formas de subjugar as pessoas trans e dar ênfase somente as vulnerabilidades, muito pelo contrário, isso envolve olhar para as potências, para as qualidades e olhá-las à partir desses signos. 

O processo de aceitar a nós mesmos pode ser desafiador segundo hooks, especialmente quando introjetamos as vozes de autocrítica. A autora diz que, no entanto, devemos, no lugar dessa autocrítica negativa, passar a praticar a autocompaixão e a se concentrar em reconhecer suas próprias qualidades. Um processo reflexivo de olhar para a sua vida e considerar de fato as coisas boas que faz. hooks ainda nos atenta a forma que o pensamento negativo nos prende em um ciclo prejudicial. Assim a autora ainda reforça que ser positivo não se trata de ignorar nossos problemas, mas sim de enfrentá-los de uma maneira mais construtiva, buscando soluções e aprendendo com as experiências. Quando nos permitimos aceitar quem somos, com todas as nossas falhas e imperfeições, abrimos caminho para um maior bem-estar emocional e autoconfiança. 

Ela também diz que quando assumimos nossas responsabilidades, damos um passo importante no desenvolvimento pessoal. Mesmo diante dos desafios que enfrentamos na sociedade, como o sexismo e o racismo, é possível encontrar maneiras criativas de lidar com eles. Ela diz que a aceitação de si mesma e a afirmação pessoal podem ser poderosas para moldar o nosso futuro e superar obstáculos. 

A autora ainda diz que ao nos dedicarmos ao autoconhecimento, autoamor e a autovalorização estamos dando passos importantes em direção a uma vida que ela nomeia como mais plena e feliz. A psicologia, segundo hooks, pode nos auxiliar nessa jornada e nos ajudar a compreender esses processos nos orientando para que nos tornemos uma nossa versão aprimorada. 

Assim então ela nos provoca afirmando que quando assumimos ​​as responsabilidades e podemos afirmar nossa identidade, esse processo é essencial para superar as barreiras sociais existentes, sem ignorar as injustiças sociais, mas criando estratégias de como enfrentá-las. Ela cita um caso clássico em nossa sociedade de uma mulher que precisa retornar ao mercado de trabalho, mas por compreender sua posição no mundo precisa fazer um pós graduação para se colocar no mercado de trabalho novamente. Embora houvesse relutância de sua família por conta da situação mudar a dinâmica de organização da casa, ainda assim ela cria estratégias para lidar com isso, pois sabe que essa situação desconfortável, vai trazer uma melhora na qualidade de vida da família como um todo. Embora muitos homens não apoiem os estudos de suas esposas, elas não os abandonam, mas no lugar disso criam estratégias de como resolver e manter seus companheiros próximos. 

hooks assim destacou a importância da auto-responsabilidade, que implica assumir o controle das nossas ações e objetivos, zelando pelo nosso próprio bem-estar. Contudo, a autora diz que é crucial reconhecer que isso não significa ignorar as injustiças como o racismo, o machismo e a homofobia, que afetam muitas pessoas, mas sim de também criar estratégias para lidar com as injustiças. 

hooks afirma que assumir responsabilidade envolve ser proativo diante das dificuldades que encontramos cotidianamente. Embora não possamos mudar facilmente as estruturas injustas da sociedade, segundo ela podemos ainda assim escolher como responder a elas. Esse poder de escolha nos permite moldar o nosso destino mesmo em meio às adversidades. 

No entanto, hooks ainda diz que existem desafios para a autoafirmação, especialmente devido à socialização machista que muitas vezes desencoraja as mulheres de serem assertivas. Esse padrão cria uma barreira para a autoafirmação pois, segundo a autora, isso leva à baixa autoestima e à supressão das opiniões próprias para agradar aos outros. Ou seja, muitas vezes as mulheres não podem dar suas opiniões em público por conta do julgamento social. Esse é um ponto inovador no debate que hooks nos traz, uma reflexão crítica em relação a gênero e raça na experiência do amor. Entretanto quero trazer para esse debate talvez um ponto fundamental, que é qual é então o lugar que as pessoas trans acabam vivendo dentro desse panorama de gênero, já que são compreendidas na nossa sociedade como um gênero diferente de homem e mulher. 

 Assim, trago  a provocação que reflete sobre qual a forma que corpos trans são vistos dentro dessa mesma sociedade. Historicamente e socialmente, o corpo trans e travesti não é considerado capaz de exercício epistêmico, não é capaz de se nomear, deve ser nomeado pelo outro. Segundo Demétrio e Bensusan (2019), o corpo trans não pode se configurar como uma autoridade epistêmica ou potência inteligível. Afinal são percebidas como outra possibilidade de gênero que é diferente da cisheteronormatividade, daquilo que é historicamente construído como normalidade / norma. São vistas como sujeitos inferiores, que devem ser nomeados. Essa nomeação, segundo Oliveira (2023), é o centro da criação do sujeito epistêmico, que produz um assujeitamento, naturalizando violências contra essas populações (que são nomeadas), que se tornam sujeitos assujeitados. Com isso quero afirmar que a forma que conhecemos as pessoas trans, vem de teorias de sujeitos que não eram trans, mas que tinham a capacidade de nomear esses corpos e descrever suas existências. As próprias pessoas trans nesse percurso foram impedidas de tal atividade, assim sempre estiveram no lugar de sujeitas a serem nomeadas e observadas. 

Com isso quero afirmar que a forma que conhecemos as pessoas trans, vem de teorias de sujeitos que não eram trans, mas que tinham a capacidade de nomear esses corpos e descrever suas existências. As próprias pessoas trans nesse percurso foram impedidas de tal atividade, assim sempre estiveram no lugar de sujeitas a serem nomeadas e observadas. 

Isso por serem vistas como distanciadas do modelo binário (que é centrada na dualidade mulher-vagina e homem-pênis, conhecido pelo modelo chamado de dimorfismo sexual), essas identidades trans foram isoladas socialmente através do estigma de uma identidade sociomoral (consideradas exóticas, anormais, monstruosas), marcadas também por violências, violações e extrema vulnerabilidade social, além do silenciamento epistêmicos, ou seja a impossibilidade de se criar tanto memória como conhecimento.  

O que justifica isso, segundo os autores, é a legitimidade epistêmica acerca das trans identidades e travestilidades, em especial, nos campos de conhecimentos marcados pela colonialidade do ser, do saber e do poder, a exemplo da Medicina e do Direito, assim como da religião, que estiveram atrelados à uma noção “patopsicomoralizante” sobre essas existências, que se manifestou na nomeação da transexualidade como uma doença mental até a segunda década do século 21 (Bento; Pelúcio, 2012), e, portanto, de subjugação e desqualificação das epistemologias/saberes trans. Os autores evidenciam que essa violência epistêmica rouba de nós, as travestis, até o conhecimento sobre nós mesmas e sobre nossos gêneros. Como citado acima Cláudia Rodriguez, afirma que a violência transfóbica produz nas subjetividades das travestis níveis de aceitação do lugar da subalternidade. 

Assim, diante dessa questão quero trazer o pensamento de hooks  que diz que em suma, ao assumirmos responsabilidade por nossas vidas e nos afirmarmos como somos, podemos superar as barreiras sociais e culturais que nos limitam. Esse processo contínuo de crescimento pessoal nos ajuda a construir uma base sólida para uma vida mais gratificante e significativa. 

Também entendemos, ao final de tudo, que o oposto do amor é o medo, pois precisamos encher nosso peito de coragem para superar as barreiras que nos assustam e nos impedem de viver uma vida plena de amor. Só assim chegaremos a um mundo ideal, em que a vida vale a pena ser vivida e é mais valorizada que a morte. 

Conclusão 

A jornada de reflexão sobre saúde mental e afetividade, à luz dos princípios da redução de danos, nos conduziu por caminhos profundos e complexos, revelando as intrincadas relações entre amor, identidade e bem-estar emocional. Ao longo desse percurso, confrontamos concepções arraigadas sobre o amor romântico, desafiando-as com uma abordagem crítica que busca transcender as fronteiras do desejo individual para abraçar uma ética de cuidado mútuo e reconhecimento das diferenças, além do enfrentamento ao estigma. 

A partir das reflexões de bell hooks (1999), mergulhamos em uma nova compreensão do amor como uma ação, um compromisso ativo de promover o crescimento espiritual e emocional próprio e do outro. Essa definição nos desafia a repensar nossas interações afetivas não apenas como expressões de sentimento, mas como manifestações concretas de cuidado, respeito e comprometimento. A obra de hooks nos leva a questionar nossos próprios padrões de relacionamento, desafiando-nos a buscar relações baseadas em uma vontade genuína de nutrir o crescimento mútuo. 

Ao explorar o conceito de amor-próprio, inspirados pelas reflexões de hooks e por estudos recentes sobre a saúde mental da população trans, nos deparamos com a complexidade de construir uma autoimagem positiva em meio a um contexto social marcado por preconceitos e discriminações. Reconhecemos a importância vital de reconhecer e valorizar nossas próprias qualidades, mesmo diante das inseguranças e críticas internalizadas. A autoaceitação e a autocompaixão emergem como pilares fundamentais para cultivar um senso de bem-estar emocional e autoconfiança. 

Contudo, nossas reflexões não podem ignorar as estruturas de poder que moldam nossas experiências afetivas e identitárias. A marginalização histórica e social enfrentada pela população trans e travesti lança luz sobre as interseções entre gênero, raça e saúde mental, evidenciando a necessidade urgente de combater o estigma e a discriminação sistêmica. A busca por uma sociedade mais inclusiva e acolhedora é fundamental para promover o apoio social necessário para o bem-estar psicológico de todos os indivíduos. 

Assim, ao final desta jornada, compreendemos que o amor não é apenas um sentimento, mas uma prática cotidiana que se manifesta em nossas ações e relações. Enfrentar o medo e assumir a responsabilidade por nossas vidas é o primeiro passo para construir um mundo onde o amor e o cuidado mútuo sejam os pilares de uma sociedade mais justa e compassiva. É nesse horizonte de coragem e compromisso que vislumbramos um caminho rumo a uma vivência mais saudável e inclusiva da afetividade e do amor, onde cada indivíduo é valorizado e respeitado em sua plenitude. Podendo assim encontrar apoio e acolhimento social. 


1– Sobre o nome de bell hooks ser empregado em letra minúscula: essa prática surge a partir de uma
postura da própria autora que criou esse nome em homenagem à sua avó e o emprega em letra minúscula como um posicionamento político que busca romper com as convenções linguísticas e acadêmicas, dando enfoque ao seu trabalho e não à sua pessoa. O presente texto respeita a escolha da autora. 


Referências 

CHINAZZO, Í. R. et al. (2021) Impacto do estresse de minoria em sintomas depressivos, ideação suicida e tentativa de suicídio em pessoas trans. Ciencia & saude coletiva, v. 26, n. suppl 3, p. 5045–5056

CAVALCANTI, C.; BARBOSA, R. B. BICALHO, P. P. G. (2018). Os Tentáculos da Tarântula: Abjeção e Necropolítica em Operações Policiais a Travestis no Brasil Pós- redemocratização. Psicologia Ciência e Profissão, 38(spe2), 175–191. https://doi.org/10.1590/1982-3703000212043. Acesso em: 20 abril 2024 

DEMÉTRIO, F.; BENSUSAN, H. N. (2019). O conhecimento dos outros: a defesa dos direitos humanos epistêmicos. Revista do Ceam, ISSN 1519-6968, Brasília, v. 5, n. 1, Disponível em: https://doi.org/10.5281/ZENODO.3338716. Acesso em: 20 abril 2024. 

FAVERO, S. (2020) Por uma ética pajubariana: a potência epistemológica das travestis intelectuais. Equatorial – Revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, [S. l.], v. 7, n. 12, p. 1–22. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/equatorial/article/view/18520. Acesso em: 18 abril 2024. 

hooks, B. (1999) Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Em: São Paulo: Editora Elefante . [sl: sn]. 

LISBOA, V. (jan, 2023) Saúde Mental requer visibilidade tran além da transfobia. Agência Brasil. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-01/saude-mental-requer-visibilidade-trans-alem-da-transfobia>. 

OLIVEIRA, M. R. G. de. A cobaia agora é você! Cisgeneridade branca, como conceito e categoria de análise, nos estudos produzidos por travestis e mulheres transexuais. Caderno Espaço Feminino, [S. l.], v. 36, n. 1, p. 157–178, 2023. DOI: 10.14393/CEF- v36n1-2023-9. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/69857. Acesso em: 20 abril 2024 

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Julia Bueno formada em psicologia pela Faculdades Integradas de Guarulhos-SP, especialista em psicologia política pela USP, mestra em psicologia pela Ufpe, Doutoranda em Psicologia na UFPE, pesquisadora no GEMA (Grupo de estudos de gênero e masculinidades), também é redutora de danos, psicóloga clínica, poeta e escritora do livro de poesias Amor&Revolta.

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