Entrevista com Elisaldo Carlini – Parte 2

Essa entrevista foi realizada como parte da pesquisa de doutorado de Denis Petuco, que produziu o livro “Pomo da Discórdia”. Tanto na Tese quanto no livro apenas trechos das entrevistas e de forma anonima foram publicados. Assim, recuperamos e editamos a transcrição dessa conversa, realizada em 2015. Por conta da extensão e riqueza do material, optamos por dividir o texto e publicar em diferentes edições de nossa revista. Este é a parte final da entrevista. A primeira parte pode ser checada aqui.

Elisaldo Luiz de Araújo Carlini foi um médico, psicofarmacólogo, professor universitário e pesquisador brasileiro. É considerado referência mundial e um dos pioneiros nos estudos farmacológicos sobre o potencial terapêutico da cannabis e de outras substâncias psicotrópicas. Foi professor da UNIFESP, fundador do  Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas  (CEBRID), condecorado duas vezes pela Presidência da República por seu trabalho científico pioneiro. Fundador da ABRAMD, morreu em 16 de setembro de 2020.

SIGLAS:
ABEAD: Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas
ABRAMD: Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas
ABP: Associação Brasileira de Psiquiatria
OMS: Organização Mundial de Saúde
PT: Partido dos Trabalhadores
CEBRID: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas – UNIFESP
NEPAD:  Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas  – UERJ
USP: Universidade de São Paulo

DENIS: Gostaria de esmiuçar a emergência de algumas controvérsias neste cenário que antes não tinha controvérsias. E o senhor me diz que isto começa a surgir, fora do Brasil, ali por volta dos anos 60 e 70, neste contexto de uma desconfiança generalizada com o modelo da internação e com o modelo farmacológico de tratamento em Saúde Mental, que engloba o tema das drogas. E aqui no Brasil? Em que momento se começa a perceber a emergência de algumas vozes dissonantes?

CARLINI: Em primeiro lugar, aconteceu fora da Medicina. E na realidade, o que acabou ocorrendo foi o seguinte: como a Medicina e a Psiquiatria se sentiam ameaçadas por esta nova força, esta nova verdade que estava surgindo, foi criada a ABEAD. A ABEAD é consequência da força conservadora da Psiquiatria no Brasil, que quer manter seu status quo. São contra inclusive a desospitalização.

DENIS: Em algum momento a ABEAD foi espaço de controvérsias? Havia espaço para vozes dissonantes?

CARLINI: Acho que não, neste contexto surgiu a ABRAMD. Uma pessoa ligada ao Departamento de Psicobiologia, da qual eu era o mentor intelectual, embora não fosse uma pessoa ligada diretamente ao meu grupo, foi convidada para ser a diretora científica de um dos congressos da ABEAD. Ela idealizou o programa, começando a apresentar coisas que traziam algumas modificações. Ao apresentar isto para a diretoria da ABEAD, composta inclusive por Ronaldo Laranjeira e Sérgio de Paula Ramos. eles simplesmente não aceitaram nada daquele programa elaborado e destituíram esta pessoa que tinha sido escolhida para compor a diretoria científica.

A partir disto, elaboraram o programa deles, daquela visão hegemônica. Esta pessoa, eu me lembro, voltou em uma reunião do departamento e chorou pelo sentimento que teve. Aquilo causou uma revolta muito grande em todos nós. A Psicobiologia foi fundada aqui em 1971, ela surgiu a partir da Santa Casa, para onde fomos quando eu voltei dos EUA na década de 70. Era uma força renovadora da Psicofarmacologia, e até da Psiquiatria. A partir dessa situação. surgiu no departamento a ideia de criar urgentemente uma nova sociedade científica, aonde vozes dissonantes pudessem aparecer. Afinal, não existe ciência sem controvérsia. Então nós começamos a pensar na ABRAMD. A ABRAMD foi criada com a ideia de que não se poderia fazer apenas um congresso de Psiquiatria chamando um ou outro: era preciso que estivesse todo mundo junto. E a ABRAMD está se consolidando cada vez mais. Ela está crescendo, e eu acho que ela já está obscurecendo um pouco a visão hegemônica da ABEAD.

Mas você vê como estas coisas são curiosas: A ABEAD e o Departamento de Dependência Química da ABP, que o Ronaldo domina também, é totalmente conservadora. Ela acompanhava os passos da Associação Americana de Psiquiatria. Mas até mesmo a Associação Médica Americana acabou mudando e aceitando outras formas de tratamento, a Associação Psiquiátrica Americana, há 4 ou 5 anos atrás, numa Assembleia Geral, por unanimidade, tirou um documento tornando pública a opinião de que a maconha teria o seu lugar na terapêutica de algumas doenças. Eu não sei se você conhece a posição que a ABEAD construiu…

DENIS: Sobre a maconha? O consenso? Sim, conheço, assim como conheço a resposta construída pela ABRAMD. Talvez tenha sido o primeiro documento público da ABRAMD, não foi?

CARLINI: É, mas veja: antes de existir a ABRAMD, a ABP teve um documento extremamente favorável à descriminalização da maconha. Nele consta inclusive que não há dúvida nenhuma de que o pior mal do uso da maconha é a lei, que condena os jovens à cadeia. E não há dúvidas também de que 5 dias em uma cadeia brasileira é pior do que fumar maconha diariamente por 5 anos.

DENIS: Isto é um documento da ABP?

CARLINI: Da ABP. Oficial, que saiu no jornal da ABP. Bom, este é o documento da ABP. Mudou a orientação política, saiu outro documento oficial que condena totalmente a maconha.

DENIS: É este o tal “consenso sobre a maconha”, não é?

CARLINI: É sim. Consenso sobre a maconha. Algo assim. Eu tenho os dois documentos por aqui. Eu mostro isto pros meus alunos, e digo: “Olha, entre o lançamento deste primeiro documento da ABP e este outro, não houve nenhuma mudança científica, nenhuma demonstração científica que mostrasse o mal da maconha. Pelo contrário, houve dezenas de trabalhos dizendo o oposto.”. Então, como é que muda?

DENIS: Houve uma outra novidade importante para mim, que foi quando o senhor falou de algo muito pessoal e muito importante. Quando o senhor e a professora Solange são chamados a fazer esta pesquisa qualitativa com usuários de cocaína, tudo o que o senhor disse a respeito da importância deste contato com a voz dos usuários, tudo o que isto significou em termos de repensar o trabalho, a pesquisa.

Em que momento o senhor começa a perceber a possibilidade de encontrar pares, pessoas com o pensamento parecido, que olhavam para este modo como se tratava os usuários de drogas, manifestando discordâncias com aquele modelo hegemônico, que focava tudo na internação? Em que momento o senhor começa a reconhecer pessoas que pensavam parecido com o senhor?

CARLINI: Nesta reunião da OMS que houve aqui, e que depois foi em Cochabamba, onde nós fomos aprender a técnica. Ela começa a se concretizar quando ouvimos a voz de quem não tem voz nenhuma. Antes não tinha voz, tudo bem. E nós julgávamos que não tinham voz porque não tinham o que dizer. Nosso preconceito racial: o cara é analfabeto, não sabe ler, não sabe escrever, nunca teve na escola, então não pode saber nada de nada. Mas a gente começa a perceber – e eu pessoalmente começo a perceber isto, pelo meu desejo de estar junto com eles. Na década de 80, eu tinha 50 e poucos anos, eu entrei no PT. Fundei o diretório do PT do Campo Belo e fui eleito presidente deste diretório, por duas vezes. E eu cheguei a falar em algum momento: “Eu quero é dar aula para esta gente.”

 Eu me lembro de um dia que eu tive de dar uma aula em Porto Alegre, cedo, falando sobre drogas para um grupo de psicanalistas. Dei a aula, voltei para São Paulo e à noite eu fui ensinar para cerca de 10 empregadas domésticas, mais uns 10 ou 15 trabalhadores da construção civil, todos analfabetos, porque era um curso noturno de alfabetização, pelo método Paulo Freire. E aí eu comecei a perceber coisas inacreditáveis, que eu nunca iria aprender dentro de uma universidade. Por exemplo: eu não conseguia convencer aquele pessoal de uma coisa que para mim era lógica: a falta de oportunidades. Eles não tiveram oportunidades porque os pais não tinham dinheiro, porque os pais não deram instrução… Que nada! Todos eles achavam que era assim porque eles mereciam ser deste jeito! Uma cultura produzida e arraigada pela Igreja Católica, na minha opinião. Fatalista. E eu lembrava dos discursos do Padre Antônio Vieira, de que é preciso sofrer na Terra para ter direito ao Céu.

Eu fui discutir se eles sabiam o que era a fome. Eu não sei se você conhece o método Paulo Freire, tem aquele negócio da palavra geradora… Evidentemente que saiu “panela”. E eu comecei a ensinar “panela”. Começa com “pa”. E tinha um cara, que fez com que todos nós chorássemos, o João Pequeno. Ele era um pretinho deste tamanho, magrinho, muito bondoso, humilde para burro. Mas ele não aprendia coisa nenhuma. Passamos pelo “pa”, e ele não foi capaz de gerar nenhuma palavra que começasse com “pa”, “papagaio”, seja lá o que fosse. E todo mundo na classe – primeira diferença fundamental: aqui, nas minhas classes de colégio particular ou aqui na universidade, quando você não sabe, a classe não tem solidariedade. E eu acho que aqui na Medicina, até preferiam que a pessoa não aprendesse para não haver disputa. Lá não: todos ficavam solidários com o João Pequeno. Bom, mas aí chegou a sílaba “pe”, e o coitado do João Pequeno mais uma vez não conseguia, demorava, até que saiu: Pelé!

Todos nós choramos. Eu chorei, porque não aguentei a emoção. Todo mundo bateu palmas para ele. E aí aconteceu um milagre, um dos milagres que eu vi na minha vida. Juro. Eu considero um milagre: o João Pequeno, a partir daquele momento, começou a participar mais e se tornou um aluno comum. O bloqueio mental que este cara teve na vida se esvaiu. Olha, aquilo é de uma emocionalidade que até hoje eu fico meio embargado.

Pergunte-lhes se Deus daria comida farta para você, e dificuldade pra eles.”. E eu fiz a pergunta, perguntei se eles achavam que Deus faria esta distinção, e eles responderam que não. “Então é a Terra! É a gente!”.

Mas conversando com o pessoal todo, ainda repetiam: “Nós merece o que tem, nós não presta, nós não sabe nada, isto é coisa de Deus, ele é que quer assim…”. Aí eu fui falar com o padre: “Olha, isto é coisa tua, não é minha. Como é que eu faço? Que é que a gente pode dizer quando eles dizem que foi Deus quem quis assim?”. E ele me ensinou uma coisa, para mostrar que eles estavam enganados em sua interpretação de Deus: “Você chega para eles e pergunta se eles acham que Deus os considera seus irmãos. Eles vão dizer que sim, pois Deus é igual para todos. Então você lhes pergunta por que é que Deus deu uma vida de um jeito para eles, e de outro para você. Pergunte-lhes se Deus daria comida farta para você, e dificuldade pra eles.”. E eu fiz a pergunta, perguntei se eles achavam que Deus faria esta distinção, e eles responderam que não. “Então é a Terra! É a gente!”. Aí a gente constrói uma maneira de contactuação, de entender o que é a ignorância, que na verdade é um saber oculto…

DENIS: Paulo Freire trabalhava muito isto. Ele jamais ia para o enfrentamento com as ideias dos estudantes. Tem uma história do Paulo Freire muito parecida com esta, em que os camponeses achavam que ele é quem tinha de ensinar, porque ele era o doutor. E ele não enfrentava. Ele dizia: “Ok, eu concordo. Mas, por que é que eu sou doutor e vocês não?”, e eles diziam: “Ah, é porque o senhor estudou.”. “Ok, eu também concordo. Mas por que é que eu estudei e vocês não?”. “Ah, porque o seu pai tinha condição e o nosso não tinha.”. “Concordo de novo. Mas por que é que meu pai tinha condição e o de vocês não?”. “Ah, é porque Deus quis assim.”. E aí o Paulo Freire dizia: “Tá, mas… Quem aqui é pai?”. Todos eram. Aí o Freire escolhe um a esmo e pergunta quantos filhos ele tinha. Eram 6. “E o senhor mandaria um dos seus filhos pra estudar em Recife, deixando os outros 5 aqui na roça, trabalhando de sol a sol?”. “Não, eu não faria isto. Não seria justo.”. E aí o Freire arremata: “Pois se o senhor, que é pai, não faria isto com os seus filhos, o senhor acha que Deus, que também é pai, faria isto?”. E aí os camponeses param e dizem: “É, o senhor tem razão. Não é Deus. É o patrão.”.

CARLINI: Estas coisas são incríveis. Esta história do Paulo Freire eu não conhecia. E eu achei mais interessante que a história que o padre me contou

CARLINI: Bom, ainda continuando… Esta ideia foi cristalizando na minha cabeça: que havia um saber popular que eu não conhecia e que às vezes nem mesmo eles conheciam. E isto principalmente com relação aos usuários de drogas. Nunca me lembro de ter lido um único trabalho – e eu lia muito! – em que o próprio dependente se classificava e se diagnosticava. Isto é raríssimo, se é que existe. Mas agora pode rolar de monte, com este negócio de pesquisa qualitativa. A OMS resolveu fazer um estudo internacional sobre cocaína: elegeu 13 países, e em cada país 2 centros. No Brasil foi o CEBRID e o NEPAD.

Esta ideia foi cristalizando na minha cabeça: que havia um saber popular que eu não conhecia e que às vezes nem mesmo eles conheciam. E isto principalmente com relação aos usuários de drogas.

DENIS: Eu achei lindo este percurso de sua resposta: eu perguntei se o senhor conseguia reconhecer parceiros, e aí o senhor me fala do Paulo Freire, dos estudantes, dos usuários…

CARLINI: Nenhum médico…

DENIS: Isto. Mas neste cenário de psiquiatras, de pesquisadores, de médicos… Dentre estes, o senhor já conseguia identificar algumas pessoas que também tinham estas desconfianças, que também desconfiavam deste modelo da internação?

CARLINI: Sim, sem dúvida. Nesta época eu já estava com uns 50 anos, Colegas da época, da minha faixa etária, era mais difícil. Mas os mais jovens, vários deles. Por exemplo, o Dartiu, que foi meu aluno. Eu comecei a dar palestras e muita gente que pensava politicamente da mesma maneira, vinha falar comigo. Gente que defendia a desospitalização, com uma ideologia clara. Então eu encontrava bastante gente. Marcos Toledo Pacheco Ferraz, que era professor assistente da Psiquiatria daqui, chegou um dia pra mim, sentou na minha frente e disse: “Carlini, você tem que me aceitar, para fazer doutorado.”. E respondi: “Mas Marcos, você me conhece. Eu já falei que eu só aceito alunos que trabalhem comigo em tempo integral.”. E ele respondeu: “Eu vou lhe explicar e o senhor vai ter que aceitar. Nós temos que mudar o enfoque da Psiquiatria aqui na Escola Paulista de Medicina.” Na USP nada muda, nunca, e aqui eles queriam mudar, mas havia muita dificuldade, por conta do professor Darcy de Mendonça Uchoa, que era um psicanalista dos quatro costados.

Evidentemente, ele só ensinava Psicanálise. Então o que o Marcos falou: “Tem que ter um doutor aqui, pra começar a dar uma outra ênfase na Psiquiatria de um modo geral”. Então ele fez o doutorado comigo, fez um trabalho belíssimo. Sua tese foi verificar, pela primeira vez no Brasil, os efeitos do THC quando consumido via oral. Queríamos estudar a diferença que poderia existir entre o homem e a mulher. Deu uma tese bonita, interessante, com histórias bonitas. E havia diferenças básicas entre homem e mulher: o homem sempre tinha a tendência a ter viagens mais agradáveis; e as mulheres no mau sentido. Era constrangedor, desagradável, se sentiam mal… Procuramos estudar exatamente o que é que havia de diferença no relato do efeito psicológico. E apareceu claramente um efeito, uma diferença: as mulheres, quando tinham elucubrações mentais com a maconha, fragmentos de pensamentos, ideias, as tinham muito mais no sentido erótico. Naquela época, isto resultava que elas se sentiam muito mal, porque não queriam dizer, mas acabavam dizendo. E os homens estavam numa boa, e se sentiam tesão, achavam melhor ainda. Isso gerou uma má viagem nas mulheres.

Então, na realidade, o Marcos foi o primeiro, depois vieram mais uns 2 ou 3. Teve o Miguel Roberto Jorge, o Del Porto… Com certeza estes 3. O Jair Mário, que estagiou fora, e que voltou pra cá pra terminar sua tese, mas se ligou a nós. Fora da escola, nós tínhamos os congressos e as conferências que nós dávamos. Teve gente do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, o Pagliano, do Ceará, Evaldo, de Pernambuco, Nery na Bahia.  Então, todos nós fomos, sem querer, nos juntando.

DENIS: Isto é realmente muito importante pra mim: como é que vocês começaram a se reconhecer como pares, como pessoas que tinham pensamentos parecidos, que tinham divergências parecidas?

CARLINI: Sim. Em primeiro lugar os encontros em reuniões científicas, congressos, simpósios, palestras… Lá na USP vai acontecer uma palestra de alguém que eu olho e digo: “Puxa, é o meu assunto, eu vou lá pra ver.”. E assim você vai começando a reconhecer.

DENIS: E isto começa a acontecer pelos anos 80?

CARLINI: Não. Começam a acontecer os primeiros contatos assim que eu saí daqui… Eu me formei em 57, já trabalhando com Ribeiro do Valle, pensando em drogas, em anfetaminas. Aí eu vou para os EUA para aprender Psicologia Experimental, e conhecer alguma coisa a mais sobre isto na Universidade de Yale. Passo lá 3 anos e pouco, volto, vou para Santa Casa de Misericórdia, na Escola Médica e começo a formar um nome interno, aqui. E eu fui muito ativo. Adorava dar aula. Sempre fui muito bom para cativar alunos, tanto que eu fui diversas vezes homenageado, patrono várias vezes… E muitos destes que acabavam de se formar vinham estagiar comigo, vários deles fizeram mestrado e doutorado. E aí foi se consolidando uma corja de pessoas que tinham mais ou menos um pensamento semelhante.

DENIS: Então não foi nos anos 80. Foi nos anos 90? Foi posterior estes encontros?

CARLINI: Eu não posso precisar as coisas, porque elas foram acontecendo.

DENIS: Foram acontecendo então, a partir deste momento dos anos 70, esta coisa de encontrar pessoas que olhavam para temática das drogas desconfiando do modelo hegemônico.

CARLINI: Não se tratava do tema das drogas, mas do tema das pessoas que usam drogas.

DENIS: Certo, claro, este deslocamento é importante. E é a partir daí que começa a se formar uma confraria, digamos assim?

CARLINI: Isto, uma confraria. Há cerca de 40 anos atrás.

DENIS: O senhor sente que há um momento em que este movimento de formar uma confraria acelera?

CARLINI: O movimento em si, ou o meu envolvimento?

DENIS: Talvez as duas coisas. Desta coisa de conseguir encontrar parceiros, de conseguir ter um corpo maior de parceiros, de pessoas que se preocupavam, como o senhor mesmo diz, com o ser humano que usa drogas?

CARLINI: Olha, isto começa a ganhar fôlego no período em que começa a se fortalecer a ideia de que precisávamos fundar uma nova sociedade… Enfim, com a fundação da ABRAMD. Este é o momento. Porque aí, queira ou não queira, os meus contatos estavam sendo quase que exclusivamente com o pessoal da área biológica. Eu não tinha contato com a área jurídica, com a área sociológica… Ou tinha alguns poucos contatos. Mas aí quando eu entrei pra ABRAMD, ela passa a ser o ponto de fusão destes conhecimentos todos em uma ideia nova aqui para o Brasil. 

DENIS: Alguma coisa que eu não tenha perguntado, que o senhor queira dizer?

CARLINI: Eu estou na época em que eu tenho que pensar nisso: E agora, que é que eu vou fazer? Então, eu elegi duas coisas. Primeiro: eu elegi uma função que tenho que fazer. E a função que eu tenho que fazer agora é dupla. E eu apenas tenho que controlar isto dentro do tempo que eu disponho.

Uma é a continuidade do CEBRID. Eu acho que o CEBRID já não tem Carlini, não tem Solange, já não tem Villa, já não tem todos que aqui passaram. O CEBRID é o CEBRID e tem um papel importante. Eu zelo muito para que a gente não perca este conhecimento. Neste sentido, você tem que ter a voz da ciência dentro de você. E a voz da ciência tem que ter ideologia. Mas ela tem que ser, acima de tudo, honesta. Ela não pode falsificar os dados. Ela não pode distorcer aquilo que você lê.

Por exemplo, o boletim Maconhabras, que a gente criou com os 3 jovens agora, ele tem uma função. O nome surgiu por causa das palavras com que me acusaram na Folha de São Paulo, quando realizamos o 3º Seminário Internacional da Maconha Medicinal. “Ele nada mais quer do que criar uma Maconhabras com um liberou total.”

Nós não temos aí o certo e o errado; nós temos apenas a verdade. E a verdade não é feia nem bonita, ela é a verdade. Nós vamos tentar publicar a crítica de vários artigos, na forma de texto. Acho que o CEBRID tem tido um pouco esta finalidade.

Aí eu usei o termo e fundei. Nós não temos aí o certo e o errado; nós temos apenas a verdade. E a verdade não é feia nem bonita, ela é a verdade. Nós vamos tentar publicar a crítica de vários artigos, na forma de texto. Acho que o CEBRID tem tido um pouco esta finalidade. Outra coisa é a certeza de que a ética sempre é seguida no que a gente fala, no que a gente prega. Às vezes pregamos contra a verdade oficial. Mas a verdade oficial não é legitima. Ela pode ser legal, mas não é legítima. Esta é uma coisa que a gente faz questão de dizer de modo muito claro para eles.

O segundo ponto que eu acho que é importante, neste prólogo de vida, é uma pergunta que eu tenho me feito muito. [ Eu começo a pensar muito seriamente: e depois? A minha finitude, que é certa, e a minha incerteza total de uma continuidade. Há questão de uns 8 meses atrás, eu tive uma dor muito forte na perna. Tentando descobrir de tudo quanto foi jeito, sem sucesso, mandaram fazer uma tomografia computadorizada do cérebro. E saiu lá: tumor. Maligno. Na zona occipital, correspondente à perturbação da perna. E eu recebi aquilo, e pensei: “Bom, minha sentença está dada. Não posso mais ter progresso nenhum, porque não dá para passar de um ano, um ano e meio, com um tumor maligno no cérebro.”.

Eu cheguei, abandonei tudo. Foi numa sexta-feira. Aí eu fui para minha chácara, com os meus cachorros. Nem falei com a Solange, não falei para ninguém. Fiquei completamente sozinho lá. Dois dias lá. Aí aconteceu uma coisa muito estranha e muito feliz. Eu gosto demais de cachorro. Gosto adoidado. Tanto que eu tenho 11! E eu comecei a pensar nos cachorros, e pensei: “Gente, não é possível que eles morram e desapareçam. Isto que eles sentem é o que eu sinto também. Então eles devem ter um lugar para onde eles vão. E é o lugar para onde eu quero ir.”. Bom, você não acredita, mas eu passei os outros dois dias elucubrando sobre este lugar, que é o lugar onde vão estar os meus cachorros.

Pra terminar, eu encerro então com um outro pensamento, a respeito de alucinação, porque isto pra mim foi quase que uma alucinação. Tem uma síndrome, chamada “Síndrome de Charles Bonnet”. É uma síndrome alucinógena, de alucinação, em que as pessoas idosas passam a ter alucinação visual, mesmo sendo totalmente cegos. Descrevem imagens belíssimas… Charles Bonnet era um biólogo suíço, e o avô dele morava no Tirol. E ele foi visitar o avô e o encontra delirando, sentado com a família muito preocupada: “Ele está completamente louco, descreve tudo o que está vendo, que está vendo bichos bonitos, imagens…”. E o Charles Bonnet disse: “Não! Deixa! Ele está sendo feliz! Está vendo coisas! A Biologia está dando para um ele um meio de sobrevivência, em meio à escuridão total”.  E eu penso que o que eu tive foi uma Síndrome de Charles Bonnet. Eu comecei a ver no meio da escuridão. Não é uma coisa interessante isto? Eu não sei se tem gente que consegue isto com drogas. Mas eu estou a fim de escrever isto, e talvez seja o último trabalho que eu gostaria de fazer. Mas eu gostaria de ter comigo um eletrofisiologista. Você sabe que você tem, com as drogas alucinógenas (maconha, LSD…), a chamada “sinestesia”, que eu traduzi para o português como “transposição dos sentidos”, e que é uma coisa curiosíssima.

Teve uma vez que eu me submeti experimentalmente ao uso de LSD. Fui submetido a vários estímulos e vi as coisas mais incríveis de fantasia. Aí tocaram uma música de Vivaldi. E começo a ter uma alucinação em que me via claramente sentado na beira de um vulcão, e o vulcão soltando golfadas de vapor. Roxos, azuis, amarelos… E cada golfada destas era referente à cor que eu estava sentindo através da música. E o violino era uma coisa fantástica. Era um violino lento, e eu começo a ver uma espécie de serpentina coloria no ar, e eu fico olhando a serpentina, e ela vai indo, vai indo, se envolve na minha perna, e eu tenho a sensação táctil da serpentina cor violeta Como é que você estimula a zona auditiva, e você tem uma imagem, um estímulo da zona visual?

Eu acho que este é um assunto fantástico para a gente trabalhar. Nossa! Que coisa fantástica! E bonita! Eu não sei qual seria o significado disto, para a ciência. Eu sei para o homem… Para o homem, eu sei que aqueles momentos que eu tive, foram momentos de uma beleza indescritível. .

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